©jonathan nourok
                                       
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Muitas perguntas de séria consideração são suscitadas logo no começo da leitura de Partes Humanas, de Orly Castel-Bloom, escritora israelense de grande renome, com livros traduzidos para vários idiomas, ganhadora do prêmio de Literatura de Tel Aviv de 1990 por Where am I?. Seu livro Dolly City consta da coleção de obras representativas da Unesco. Uma dessas — a maior em termos de inquietação crescente, de angústia gerada — permanece após o estranhamento da abertura, junto ao incômodo da perplexidade (há um capítulo inteiro sobre o inverno de temperaturas negativas em pleno Oriente Médio!). A questão refere-se ao desfecho da história: como se concluirá este livro?

Engrena-se na leitura e a questão se torna cada vez mais pungente, graças à forma fluida e despretensiosa do discurso, em que os capítulos parecem soltos, sem lógica, como uma bricolagem, mas, na verdade, possuindo uma estrutura intrínseca ao conteúdo. Nesse casamento de forma e tema, vemos o alinho da total mediocridade das personagens — devido ao modo como se conduzem suas vidas alienadas, criando uma melancólica sensação de vazio, insistente em todo o livro, mesmo quando há ações, pois estas não revelam novidades, nem emoções apolíneas, cunhando um retrato de vidas insignificantes —, com a "desordem dos capítulos". 

De tal modo, não há nenhum grande acontecimento, nem personagens cujos perfis ou vida escapem das cores da insignificância. Nem mesmo Liat — que se insinua como uma mulher forte e decidida e que poderia ser a grande matriarca do livro, a protagonista —, porque logo no início do livro, morre pateticamente do coração, graças ao ciúme que sentia de Shaul, o amante que nem ao menos se importa com ela, mesmo ela estando internada no hospital, sofrendo de uma gripe saudita. Também é assim com os desconstruídos personagens masculinos, caso, por exemplo, de Adir Bérgson, o "filho da montanha", que é controlado, primeiro pela mãe, depois pela irmã, passando a ceder aos desejos da namorada de ter um bebê que não desejava (quando o leitor pensa que ele ficará enfim contrariado, pois se confirma a gravidez, ele a acolhe de bom grado, como se nunca a tivesse rejeitado), e de Boaz, cuja vida é marcada pela inutilidade, um sujeito que nem sequer procura o governo para receber o seguro  desemprego, que abandona o suprimento da casa nas mãos da mulher Kati e vai em busca de conselhos místicos, pagando por isso, mesmo sem condições de arcar com esses gastos, e que acaba morto por terroristas, em uma cena que merece nossa atenção por sua carga cinematográfica (página 227, quase no finalzinho do livro). Talvez o maior evento da história seja o de não haver grandes ocorrências, e, claro, inexistir grande final.

A estrutura dos capítulos nos remete ao que parece ser um amontoado de crônicas da vida rançosa de um punhado de ilustres desconhecidos, retiradas de páginas de qualquer jornal, em qualquer parte do mundo, num misto de mundo-cão promovido pela tevê ou pelas crônicas encomendadas pelos cadernos literários que divulgam, desde o próximo talk show daquela loira famosa, ao literato da vez. Mass media. A impressão que se tem, quando se lê Partes Humanas, é de estar zapeando os canais da tevê num domingo à tarde: show de horrores, reportagem fajuta, a incrível história da menina pobre que quer ser  alguma-coisa-ilustre (pode-se usar o título: Cinderela da Favela), novelão mexicano, a exploração da violência como culpa de algum governante, etc.

É tal o fenômeno midiático inserido no texto, que a autora consegue fazer com que não guardemos os nomes dos atores. Funcionalmente, ela usa o truque de mudar os nomes, ora usa o nome completo, ora o sobrenome, simulando uma intimidade (como se fosse uma revista dessas que bisbilhotam a vida alheia, para vender fofoca) ou imparcialidade (como o grande noticiário nacional), de forma que sempre lembremos os fatos, mas nunca quem gera as ações — você por acaso lembra os nomes das pessoas que morreram no último desabamento por causas das chuvas? No texto, isso é retratado pela família "Beit-Halahmi, que vivia no bairro Ganei Aviv, em Lod" (p.16) "onde raramente havia um programa sobre atualidades na televisão ou no rádio, em que os problemas de Kati-Halahmi e sua família não fossem discutidos" (p.17). 

Com certeza, é um livro  que aponta as mudanças na sociedade israelense depois do país estar efetivamente criado. Nesse contexto, o governo promove gastos com a guerra, em detrimento do social, incrementando a pobreza, criando contingentes de mão-de-obra e azeitando a máquina capitalista que se alimenta da miséria, enquanto estimula o consumo, como pode ser visto na constante atitude de consumidora de Íris Ventura, que mesmo não tendo dinheiro, sempre está planejando a próxima compra — atente para a sua coerência "muito reflexiva", quando resolve ir à lavanderia de Adir, seu ex-namorado (que é informatizada, demandando um gasto de vinténs que ela não possui), numa atitude patética de buscar uns centavos caídos no chão para completar o  montante necessário para lavar a roupa suja. No momento em que ela consegue comprar sua máquina de lavar roupa, nova, o leitor quase vibra com sua "grande conquista", pois Castel-Bloom faz com que você se sinta participante desta saga comercial, lembrando-nos a nossa própria angústia ao desejar um bem e o sentimento de conquista quando o obtemos.

Sim, talvez o maior acontecimento seja não haver grandes acontecimentos numa história que narra a vidinha comum de gente comum, num país comum, que perdeu sua grandiosidade e enfrenta problemas, não mais por causa de seu sonho de formação, mas sim por sua situação como país. Há, efetivamente, israelitas em Israel, não somente imigrantes, há uma guerra porque o país existe e não porque quer existir, há pobreza, porque não assimilaram todas as diferenças e não são os "haverim"1 do princípio. Nessa angústia de realmente ser e não parecer é que se constrói a figura de Kati, a grande pateta, que usa o fato de ter sido rejeitada pela família do marido para se escusar de tudo o que faz de idiota em sua vida, Quando enfim começa a lutar por algo, em um estilo trabalhista de "consiga tudo pelo seu próprio esforço", percebe-se que quer algo ainda mais fútil do que ser o foco de luz de programas que exibem a sua desgraça: ela quer fazer parte do mundo de celebridades, nem que seja entrando pela porta dos fundos (e daí luta para fazer  seu curso de maquiagem para tevê).

Outro papel que merece destaque é o do presidente, que demonstra como as atividades políticas — pior, as atividades "politicamente corretas" — colocam o ser humano na engrenagem de um sistema (tal como o Carlitos, rolando nas máquinas em Tempos Modernos). Ele vive a prestar condolências pelo resultado de atos terroristas, transformando-os em parte do cotidiano, banalizando a violência, como se a guerra fosse o ato mais comum do ser humano e matar e enterrar gente fosse tão simples como comprar pão.

Esse discurso de poder, que é latente e alimenta a alienação das personagens, fica claro em todas as relações, o tema do livro é este, as relações humanas, tratado pela autora de tal forma, como se ela carregasse uma única câmera na mão, focalizando pedaços, partes de cada personagem, remetendo-nos, constantemente, àquelas perguntas que fazemos, quando vemos uma pessoa estúpida e/ou ignorante e alçamos um posto de juiz, questionando: o que será que passa na cabeça deste imbecil? Ou: será que este pobre não tem tempo de sonhar? (No Brasil, país de desdentados, sonhar com dentista é coisa  de quem mora em Utopia.)

O leitor sempre está encurralado pelas situações potencializadas pelos jogos do discurso de Orly Castel-Bloom, principalmente nos entremeios dos discursos de poder, como se ele, leitor, ficasse no cerne desses conflitos: seja o do terror (Israel e o mundo árabe), o do homem (o ex-marido de Íris, o desprezo de Adir), o da família (Tasaro e seus parentes), e o que permeia a ligação de Liat e seu amante Shaul, o poder de compra versus a necessidade real, etc.

Dado que o conceito de alteridade é suprimido, quando as perspectivas são provenientes da superestrutura ideológica, esses conflitos estão disfarçados nos desejos alienados das pessoas, que não se dão conta, e muito menos questionam a situação em que vivem — mesmo o Adir, que se imagina no Canadá, em outra realidade, não está refletindo, ele está fantasiando, portanto, não conceitua identidade, muito menos alteridade. O que esperar? Qual será o fim destas vidas, no fim desta obra? Em que se resumirá a existência humana? A crítica escondida no livro talvez responda, mas o enredo em si acaba como obra aberta justamente por ser apocalíptico, não há solução. Talvez a morte por gripe saudita, ou pelo frio ou de fome. Patético, não?

 

 


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1Amigos, remetendo à frase do início do Estado [kol israelim haverim], todos os israelenses são amigos. 

 

 

O texto foi indicado por Moacir Amâncio, professor de Literatura Hebraica, na FFLCH da USP, para publicação em Germina.

 

 

abril, 2005
 
 
 
Lígia Nice Luchesi Jorge estuda Letras (português-hebraico), 3º ano, na Universidade de São Paulo.