"Você vai ficar em casa hoje?" Ela estava lavando os cabelos e ia começar a pintá-los, quando ele perguntou. "Vou", ela disse, sem olhar para ele. "Então te vejo à noite". Deu-lhe um beijo quase sem tocá-la e saiu.

Aos sábados, jogava futebol com os amigos do clube. Ela às vezes ia junto, para tomar um pouco de sol, quando fazia tempo bom. Naquele dia, porém, não estava com vontade, e estava um pouco frio.

Ouviu o carro na garagem, o portão, a aceleração até a esquina. Olhava-se no espelho. Os cabelos estavam ficando mais ralos, perdia muitos todos os dias, quando passava a escova. O médico dissera que era assim mesmo, nada havia que fazer. No inverno cresceriam de novo: era alguma coisa relativa ao calor e ao suor.

Mas o que a incomodava é que os fios brancos cresciam em grande quantidade. Ou então eram só os castanhos que caíam. De qualquer forma, queria começar logo o tingimento.

Enquanto punha a luva de plástico, pensava como sempre na sua vida. Viviam bem e calmamente. Não terem filhos tinha sido um acordo, não uma imposição. Por certo teria gostado de crianças, como gostava dos cãezinhos. Mas não se sentira nunca preparada para ter de todos os dias lidar com aquilo. Era uma coisa para sempre, como diziam as amigas.

Tentava não pensar muito nisso, como também tentava não pensar muito no marido, nem na casa. Hoje era o dia dos cabelos. Da última vez fora à cabeleireira. Mas não tinha dado muito certo. E não se sentia bem, afinal, com aquela espécie de confissão de velhice. As amigas gostavam, como também gostavam de se mostrar as varizes, as gorduras da barriga, da bunda ou a pele do pescoço. Nunca entendera aquilo: uma competição para ver quem tem mais misérias. Era a prova da intimidade. Passado aquele momento, o que contava era a competição. E nada adiantava saber das mazelas das outras, se elas também sabiam as nossas. Era o que pensava, ao abrir o novo tubo de tintura.

Fez o ritual com atenção e com cuidado. Passava o pente no ritmo certo, espalhando a tinta por igual. Os cabelos, naturalmente ondulados, ficavam esticados, molhados, deixando ver, entre os fios arrumados pelo pente, o couro da cabeça. Contemplou a forma do seu crânio, assim modelada pelos fios molhados, e não a achou bonita. Tinha as têmporas afundadas, uma elevação cônica no alto da cabeça, e a cabeça parecia mais larga no rosto do que na nuca. Por sorte, havia o disfarce dos cabelos. Até quando, era a questão. Mas sempre podia usar perucas, pensava com horror. Devem cheirar mal, dar coceiras. Sacudiu então a cabeça, como se fosse para espantar essas idéias e viu que já era tempo.

Durante os longos minutos em que secava os cabelos, pensava no que poderia fazer. Já não queria mais ficar ali a tarde toda, esperando que ele voltasse só à noite, depois do jogo, da cerveja e do churrasquinho costumeiro. Aprontou-se, modelou bem os cabelos, como se os defeitos que vira fossem evidentes para todos e precisassem de disfarce.

Entrou no carro ainda sem saber para onde ia. Acabou no shopping center, olhando as vitrines com desinteresse.

Tomou um sorvete, culpada porque ganhava peso, e desceu para o térreo, onde tinha posto o carro.

Do lado oposto, um homem vinha caminhando em ziguezague, tentando acender um cigarro que o vento não deixava. Parecia bonito, de longe, com o paletó bem cortado e a gravata flutuando no vento. Parou e ficou olhando para ele. Quando ele a viu, pareceu um pouco embaraçado. Depois, sorriu um tanto constrangido. Como ela não parasse de olhar, embora fizesse um movimento para entrar no carro, ele se aproximou e disse "Olá". Ela sorriu. Ele talvez a achasse bonita, pois perguntou se não se conheciam. Ela disse que não, mas sempre era tempo, ou ele não achava?

Voltaram para o shopping, andaram à toa entre as vitrines e ela, para o acompanhar, tomou outro sorvete. Então ele lhe perguntou se não queria ouvir música em sua casa. Era uma segunda cantada. Tão pobre e descarada, que ela caiu no riso. Ele também ria, e só ficou sério quando ela pôs a mão sobre a dele e disse "Claro, por que não? Você vai na frente e eu sigo no meu carro".

Ela sabia talvez o que estava fazendo. Pelo menos parecia decidida. Ele lhe preparou um suco, pôs um disco, e se sentou ao lado, no sofá. O jeito que o olhava era uma mistura de coisas. Quando começaram a se apalpar, ela percebeu que tremia de excitação e que lhe estava repetindo que não ia fazer nada sem camisinha. Quando, finalmente, ainda com parte das roupas, ele colocava a camisinha, ela se despiu, respirando sofregamente.

Antes que pudesse deitar-se em cima dela, ela se pôs de quatro, e foi assim que fizeram a primeira vez. Com o rosto no chão e as mãos estendidas para a frente, ela ficou praticamente imóvel enquanto ele a empurrava com o corpo para a frente e a puxava pelas ancas para trás.

Depois, sobre ela, quando acabava pela segunda vez, ele deve ter podido ver que ela não tinha expressão alguma. Só respirava profunda e rapidamente, como se estivesse sem ar.

Assim que ele terminou, ela lhe disse que estava atrasada e precisava ir embora. Ele perguntou-lhe o nome, queria o telefone. Ou disse que queria, por princípio. Ela não disse nada. Só disse "Ciao!", sem o beijo frio e costumeiro da despedida. Ele demonstrou gostar daquilo. Pareceu aliviado, quando lhe abriu a porta e disse alguma coisa que ela já não ouviu direito.

Voltando para casa, ela logo se enfiou no banho. Quando se enxugava, percebeu que não tinha gostado da cor, afinal. Por isso pintou de novo o cabelo, experimentando a tinta mais escura que alguém lhe dissera que ressaltaria a cor dos olhos.

"Não é um dia comum", pensou, ao ouvir o barulho da porta e logo, perto de si, a voz do marido que voltava tão cedo. Desligou o secador. "Ainda pintando os cabelos, querida?", ele disse. Ela explicou que era já a segunda vez, pois a primeira tinta não prestava.

Ele a abraçou por trás, beijou-a no pescoço e disse: "Que tal se a gente fosse jantar fora, hoje? Faz tanto tempo que não tiramos um tempo só pra nós." Ela se virou, sorrindo. Achava ótima a idéia. Sentiu que ele estava excitado.

Começou a beijá-lo e sentiu que ele a levantava do chão e a carregava para a cama. Rapidamente, como nos filmes, ele tirou o abrigo, descalçou os tênis e se lançou sobre ela. Enquanto observava a intensidade do prazer dele, foi sendo tomada por uma imensa ternura. Quando ele terminou e ficou relaxado sobre ela, acariciando-lhe as costas perguntou-lhe se ele sabia que ela o amava muito. Ele respondeu que sim, enquanto deslizava para o lado e se aninhava, com o rosto ainda sobre o corpo dela. Ela então perguntou se sabia que ela nunca faria nada que o pudesse fazer sofrer. Ele disse um outro sim, já mole de sono e de prazer. E enquanto ele adormecia, ela continuou repetindo, ainda por um bom tempo: "Nunca, meu amor, nunca".


 

 

 
 
 
 
 

Começava a suar muito, naquele ponto da história. Repetida noite após noite, desde o adormecer já era previsível a hora de acordar. Primeiro, numa passagem rápida entre a vigília e o sono, deslizava sobre a superfície das palavras. As imagens surgiam, transformavam-se, deixavam-se apreender e depois escorriam para o fundo. Logo adiante tornavam a surgir e a desaparecer, até que mergulhasse no sono ou que se gerasse o sonho conhecido. Nem sempre era igual o enredo todo, mas a cena final, a da subida pelas escadas tentando se livrar das roupas coladas no corpo, era a mesma. Sentava-se de súbito na cama, ou se debatia ainda deitado, até que abrisse os olhos e sentisse o alívio de reconhecer o quarto, o espelho da porta do guarda-roupa, os cheiros conhecidos. Muitas vezes, a mulher acordava com aquela agitação e o abraçava dizendo que era um sonho apenas, que estava tudo bem.

Era bom o conforto da carne conhecida. Aninhado entre os seios, ou respirando o resto do perfume do dia no meio dos cabelos dela, sobre os ombros, adormecia outra vez, protegido até a noite seguinte.

Daquela vez, porém, a história foi além do final costumado. Começou como sempre. Estava conversando com amigos. Era a casa velha, sozinha no meio do campo, com os quartos se estendendo infinitamente, uns após os outros. A cena era usualmente na cozinha, não muito longe de onde ainda estralavam as brasas no fogão. A luz das lamparinas amarelava os rostos e a oscilação da chama produzia movimentos nas sombras projetadas na parede.

Não importava muito quem comia, ou quem bebia alguma coisa. Mas o tio mais novo, riscando a mesa com a ponta da faca, em desenhos nem fim nem começo, dizia sempre: "está na hora de ir ver os mortos".

Quando ele dizia isso, sempre começava uma outra conversa, que levava à necessidade de se protegerem, de usarem roupas especiais, para evitar o contágio. O tio abria então um baú grande que ficava ao seu lado, tirava uns trajes estranhos, que todos vestiam.

Na seqüência, o baú era empurrado para trás, descobrindo um alçapão, que se abria puxando por uma argola de ferro. Às vezes, não era preciso empurrar o baú: o alçapão estava do outro lado, no canto mais escuro e empoeirado da casa. E houve casos em que a descida se fez pelo poço do quintal, já seco e abandonado.

Desciam todos por uma escada de madeira, vertical. Como as que os pedreiros usam. Mas nunca era a mesma coisa que faziam lá embaixo. Algumas vezes olhavam cuidadosamente os túneis, que eram como catacumbas, tentando decifrar os sinais escritos na terra dura das paredes. Outras vezes, havia ali apenas uma gruta enorme, completamente escura, e tudo o que se via era o brilho imóvel dos olhos dos mortos, que eram verdes e oblongos como as pupilas de um gato. Também era possível que o final da escada levasse apenas a um outro túnel vertical, em que havia uma outra escada. Nesse caso, a presença dos mortos era apenas o seu cheiro podre. O normal, porém, era encontrar os mortos em volta de uma mesa, como estátuas de cera. Não fosse por terem as formas já apagadas pelo acúmulo do pó e por uma espécie de ataduras que cobriam grandes pedaços dos corpos, seria possível pensar que tinham morrido há pouco, ou que tinham sido surpreendidos durante um ato corriqueiro. As ataduras, unindo a esmo uns corpos a outros corpos, eram entretanto um sinal de que a cena tinha sido montada depois que todos já tinham morrido.

Dependendo da ocasião, uma coisa diferente acontecia. Ou os olhos verdes começavam subitamente a piscar e a se mover no escuro, em movimentos erráticos, mas que os tornavam cada vez mais próximos, ou o cheiro mais intenso começava a se tornar insuportável, denunciando o toque iminente de um punho descarnado, ou então os comensais adquiriam lentos movimentos de mão e boca, para logo tentarem se libertar das ataduras que os mantinham ligados aos seus lugares. O resultado, porém, era sempre o mesmo: a sensação de pavor, a fuga desabalada e a presença em toda parte de uma figura imensa, até então insuspeitada, cujo riso de prazer envolvia a todos como uma brisa úmida, de cheiro azedo e fresco.

A corrida para as escadas era a parte pior, só superada pela percepção de que as roupas que usavam como proteção eram elas mesmas as peles dos defuntos. À medida que subiam, elas iam se tornando mais estreitas, mais pesadas. Apodreciam também, o que era a sorte de todos, que as iam arrancando aos pedaços, enquanto se atropelavam e se pisavam uns aos outros na ânsia de subir.

Livres, por fim, das peles mortas e malcheirosas, emergiam um a um sobre o chão da casa velha.

Já tinha pensado nisso: não importava onde estivesse a entrada do alçapão, a saída era sempre no cômodo ao lado do quarto do avô, uma saleta que dava para dois longos corredores invariavelmente escuros.

Era quase o fim: saindo, punham-se a correr pela casa, pois o cheiro daquela presença enorme, ao mesmo tempo quente e fresco, era mais forte para qualquer lado que se corresse. Estava claro, por alguma razão, que era a própria Morte quem tinha esse cheiro azedo, atraente e aterrorizante. Era ela que ria, e também quem fazia ruídos sobre a cumeeira da casa, onde passavam, nas noites de verão, os ratos em busca de comida.

Ele, perdido dos outros, fazia sempre o mesmo caminho: evitava os corredores, entrava no quarto do velho avô, rompia as teias de aranha, sufocava com o pó que seus pés levantavam e corria para a janela. Era uma janela de madeira, tosca, de uma folha só. Tentava abri-la, em desespero, e sentia a presença mais forte, a aproximação anunciada pelo aumento do perfume horrível e entontecedor. Por fim, quando já sentia o deslocamento do ar causado pela entrada dela no quarto, conseguia abrir a janela e saltava para fora, correndo sobre a areia do pátio, no meio da noite.

Nesse momento despertava. Algumas vezes, ainda em pânico, tentando abrir a janela. Outras vezes, saltando por ela e sentindo que o terror se debruçava no parapeito para vê-lo correr, sem coragem de olhar para trás. Ou então acordava quando já corria sobre a areia, sozinho e sem direção.

Naquela noite, tinha sido diferente. Acordara sem um gemido, sem um grito, sem qualquer agitação. Apenas abrira os olhos. O quarto estava totalmente escuro.

Tinha sonhado mais, tinha ido até o fim. Saltara pela janela, correra sobre o enorme pátio de areia, que se estendia como um deserto imenso sob um céu sem nuvens e sem estrelas. Exausto, desabara sobre uma pequena duna. A casa já não era visível, nem ouvia mais os gritos dos outros correndo pelos corredores. Tudo parecia muito longe, como se nunca tivesse existido.

Encolhido, com os joelhos quase junto do queixo, estava começando a dormir. Foi então que sentiu a presença dela, tão ampla quanto a paisagem escura que não podia contemplar. Mais do que isso, percebeu que era ela aquela noite sem fim, dentro da qual ele dormia nu, como um menino. E foi justamente isso o que ele ouviu, nitidamente, vindo de nenhum lugar: de dentro da terra arenosa ou do fundo do céu chapado, antes de abrir os olhos contra o teto escuro do seu próprio quarto: "meu menino".

Molhado de suor, recompunha a memória do que tinha acontecido, ainda imóvel.

Ficou assim por alguns segundos. Depois, sem virar a cabeça, sentiu nitidamente: do lado onde dormia a mulher, que era o seu lado esquerdo, ia se erguendo sobre ele uma sombra mais pesada que a escuridão do quarto, mais densa do que o suor pegajoso que escorria agora pelo seu pescoço. Virando-se, decidiu, pela primeira vez, pelo menos tentar aceitá-la e segurá-la entre os braços.

 

 

 

[Do livro O sangue dos dias transparentes. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003]

 
 
 
 
(imagens ©guy bordin | imogen cunningham)


 

 

 

Paulo Franchetti é professor de literatura na Unicamp, onde ensina teoria literária e literatura moderna de língua portuguesa. Autor de estudos sobre literatura brasileira e portuguesa dos séculos XIX e XX, dedicou-se por vários anos ao estudo do haicai japonês e seu aproveitamento pelas literaturas modernas do Ocidente. Além de ter publicado livros de ensaios, de haicais e de contos, é crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos. Desde 2003, dirige a editora da Unicamp. Principais publicações: Coração, cabeça e estômago — Organização, apresentação crítica, notas e comentários (São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003); O sangue dos dias transparentes (São Paulo: Ateliê Editorial, 2003); Poesia, linguagem e vida (São Paulo: Pueri Domus Escolas Associadas, 2002); Nostalgia, exílio e melancolia — leituras de Camilo Pessanha (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001); O primo Basílio — Edição anotada, com estudo introdutório (São Paulo: Ateliê Editorial, 1998; 2001, 2ª edição, corrigida); Clepsydra — Edição crítica (Campinas: Editora da Unicamp, 1994 / Lisboa: Relógio d'Água, Editores, 1995, 2ª edição, revista e acrescida de documentos inéditos); Eça de Queiroz e Oliveira Martins. Correspondência, em colaboração com Beatriz Berrini (Campinas: Editora da Unicamp, 1995); Haikais (São Paulo: Massao Ohno / Aliança Cultural Brasil-Japão, 1994); Haikai — antologia e história, com Elza Doi e L. Dantas, contendo: organização, introdução e notas por P.F.; tradução dos poemas por E.D. e P.F.; estudo de história do Japão por L.D (Campinas: Editora da Unicamp, 1990; 1991, 2ª edição; 1996, 3ª edição); Alguns aspectos da teoria da poesia concreta (Campinas: Editora da Unicamp, 1989; 1992, 2ª edição; 1993, 3ª edição); Caetano Veloso, em co-autoria com Alcir Pécora (São Paulo: Abril Educação, 1981; 1988, 2ª edição; 1990, 3ª edição); Rubem Braga, em co-autoria com Alcir Pécora (São Paulo: Abril Educação, 1980). Mais aqui, em seu site oficial.
 
Mais Paulo Franchetti em Germina