RL - Você concorda com Walter Benjamim, quando este diz que o cinema é a arte maior?

 

RC - Jamais consigo hierarquizar a arte dessa forma, embora reconheça, no plano da mídia,  a supremacia de uma linguagem sobre a outra, pois ela subsiste mais em razão de preferências mercadológicas, do que pela aferição do valor estético. Para mim, uma película de Truffaut ou de Fellini podem tocar e comunicar tanto quanto uma tela de Portinari e de Da Vinci ou de Artur Bispo do Rosário e ser tão pungentes e densos como toda a obra de Clarice Lispector, o Dom Quixote, de Cervantes ou o Grande Sertão, de Rosa. A arte, seja ela literária, cinematográfica, musical, teatral, plástica, corporal é um permanente sistema de vasos comunicantes, um diálogo que se estabelece e olhares que se interceptam e que nos tornam menos imbecis e nos fazem compreender a grande aventura que é a vida.

 

 

RL - Por que suas narrativas falam somente sobre temas urbanos?

 

RC - Porque têm relação direta com minha vida. Vim de Cataguases, que, apesar de ser uma cidade do interior de Minas, tem uma forte relação com a urbanidade e a modernidade, território de tradições culturais e estéticas que remontam à década de 20 do século passado. É uma cidade de economia pouco ligada à atividade rural, com um pujante setor industrial e um razoável setor terciário, típicos de uma cultura e costumes mais vinculados às atividades urbanas. Eu não poderia falar do sertão ou retratar os velhos burgos interioranos, em que vicejam oligarquias rurais com se velho coronelato, porque não respirei essa atmosfera. Além do mais, saí aos 17 anos de lá e vim morar em Brasília, minha relação com a cidade grande é umbilical, razão pela qual transporto para minha narrativa, e até para minha poesia, os sentimentos desse mundo, fundindo a memória ancestral da vida de um território afetivo, a cidade do interior que incorporou valores cosmopolitas (também por estar situada numa região próxima aos grandes centros) e a nova realidade, que assumi como minha pátria geográfica de adoção, Brasília, com todos os influxos e influências de uma metrópole que representa a modernidade e a ruptura em todos os sentidos.

 

 

RL - O conto é tudo aquilo que é denominado conto? Como definiria conto?

 

RC – Modernamente, essa conceituação, parece-me, vem perdendo força como definidora de uma elaboração formal ortodoxa, em razão da própria urgência e velocidade da vida, que têm impulsionado a criação a refletir o próprio caos em que vivemos. O conto tradicional, assim como o romance e a poesia, vem se metamorfoseando, utilizando-se de novas abordagens, olhares, enquadramentos, construções, de modo que aquela estrutura tradicional, canônica, cedeu lugar a formas não muito rígidas e temos visto conto com estrutura poética e poesia com jeito de conto. Portanto, creio num impasse. O que é conto? Talvez a melhor definição é a que está embutida na própria pergunta e que tem relação com que um dia o mestre Mário de Andrade ousou emplacar: "Conto é tudo aquilo que o autor diz que é conto".

 

 

RL - Há os que acham que o conto é um gênero menor em comparação ao romance. Concorda?

 

RC – Vale  o que eu disse logo de início, com  minhas impressões em relação ao que é arte maior ou menor. Tenho ouvido por aí que conto, assim como poesia e crônica, não vendem, que o romance é o gênero por excelência. Essas afirmações, repito, mais de ordem mercadológica, interessam apenas aos editores, que criaram uma espécie de reserva de mercado para o romance, sei lá, um tipo de questão fechada em torno do que se publicar e sedimentou-se tanto a idéia, que se criou uma "cultura" de que só o romance tem mais apelo do leitor. Nunca se produziu tanto conto como atualmente e esse fenômeno contrasta com a pré-disposição dos editores em não reconhecer um ambiente propício à sua difusão, recusando-se a editar livros de contistas. Esse sentimento está presente também em outros países, inclusive a França, que, segundo soube por uma editora de lá, os franceses não lêem conto. E eles tiveram um Maupassant, um dos mestres do gênero.

 

 

RL - Os escritores brasileiros parecem divididos em conservadores e inventivos. Em qual dessas linhas de frente está colocada a sua obra?

 

RC – Há o conservadorismo lúcido, em que estão aqueles autores que não se estancam num modelo de produção literária e são capazes de transitar até a modernidade, seja no gênero, na linguagem, no estilo. A invenção pode ocorrer dentro do próprio cânone, demonstrando vitalidade e versatilidade do autor, aquele que é capaz de renovar e inovar dentro da tradição. Não creio que a inventividade seja apenas creditada aos que fazem ruptura, transgressão, experimentação, de forma ou de conteúdo. O diálogo com as vertentes do processo literário deve ser o grande salto dialético do autor; nem a nostalgia e a camisa de força das escolas, dos "ismos", dos gêneros, nem a vanguarda alucinada que repudia radicalmente as tradições. Creio que aquilo que escrevo funde diversos elementos desses universos. Bebo em várias fontes.

 

 

RL - Você também é poeta. Por que é tão difícil publicar poesia no Brasil?

 

RC – Porque poesia não tem mercado e não o tem pelas razões já conhecidas. Elegeu-se o romance como o primo rico da literatura. A poesia, ao lado da crônica e do conto, vem merecendo cada vez menos espaço e hoje as grandes editoras têm mais interesse em reeditar os clássicos nacionais e estrangeiros. Não obstante, há bons poetas produzindo e publicando, por pequenas editoras ou de forma independente, o que demonstra que há leitores e cultores do gênero e cada vez mais espaço, ainda que sem apelo comercial.

 

 

RL - Por que escreve?

 

RC – Porque tenho algo a comunicar, porque creio na literatura como oportunidade de renovação e crescimento espiritual e instrumento para refletir sobre o mundo e as coisas que vivemos. E também para ser lido e (in)compreendido.

 

 

RL - Quais são suas influência literárias?

 

RC – São muitas. Desde as primeiras leituras escolares (Lobato, Rubem Braga, Condessa de Sègur), passando pela fase de descobertas (Augusto dos Anjos, Drummond, Graciliano, Rosa, Bandeira, José Lins do Rego, Jorge Amado) até as escolhas ligadas a uma certa pátria psicológica, espiritual e afetiva (Kafka, Clarice, Hilda Hilst, Camus,  Faulkner, Dostoievski, Joyce, etc.) e também o verdureiro da minha infância, o ferroviário que me emprestava livros e que se dizia dotado de uma "cultura de almanaque", a barbearia de meu pai (onde pululavam histórias de vida ou morte, laboratório de uma cidade que vi se liquidificar diante da minha infância/adolescência).

 

 

RL - O que deve ter um conto, um poema, uma peça literária sua, para ser considerada de sua autoria?

 

RC -  Deve ter um pouco daquilo que matei em mim, para não ter que matar alguém; do suor que precede a toda sua confecção.

 

 

RL - Como a arte pode interferir no mundo cotidiano?

 

RC - Não acredito na arte como êmulo ideológico ou motivação partidária, mas acredito que ela precisa ser autêntica e original não apenas na forma, mas no olhar que ela lança sobre a realidade e na inquietação que ela provoque no leitor ou expectador. E que esse olhar e essa inquietação sejam motores da indignação, porque a partir do momento em que nós — tanto os que produzem, quanto os que são agentes passivos da comunicação da arte — não conseguirmos mais nos indignar, toda a produção estética terá perdido seu valor e sua função.

 

 

RL - Com quantas metáforas se faz um poema?

 

RC – Com tantas quantas forem necessárias para tirar, seja do banal ou do inusitado, sua verdadeira poesia e humanidade.

 

 

RL - Muito dos seus contos têm epígrafe. Por quê?

 

RC – Ainda que muitos condenem essa estipulação, como se o leitor tivesse que pagar pedágio para chegar ao texto, eu vejo cada epígrafe com um diálogo com outros autores e com realidades e temas semelhantes. É também uma forma de homenagear escritores e livros que me tocaram, com os quais eu, ou meu texto, mantemos empatia.

 

 

RL - Como anda a cena literária de seu estado, do estado onde mora?

 

RC – Moro em Brasília há 26 anos. E aqui não é diferente do que ocorre no resto do Brasil. Há muita gente produzindo e nesse caldeirão, encontramos o joio e o trigo. Brasília é um verdadeiro caleidoscópio da nação, um misto de gerações e procedências, o que está contemplado na própria literatura que aqui se faz.  Por ser uma cidade ainda nova, em permanente construção, Brasília começa a ter uma literatura com a sua cara. Mas a literatura que se produz aqui, desde os primórdios da cidade, vem demonstrando o bom nível de seus escritores, muitos deles premiados nacionalmente e com uma carreira consolidada.  E como em todo lugar, há também o eterno dilema editorial: como publicar? Como distribuir? Como ser absorvido no eixo Rio-São Paulo?  

 

 

RL - Você considera os escritores uma classe desunida em comparação a dos atores?

 

RC – Uma classe em permanente inquietação. E como é natural, alimentando suas dissensões, que nascem em razão de disputas por espaço na mídia e têm raízes na vaidade, no narcisismo e num exacerbado espírito de competição, que, na maioria das vezes joga cada qual num processo solitário e de convivência espinhenta, quando deveria haver solidariedade e jamais aquela concorrência que é capaz de explicitar o pior de cada pessoa.

 

 

RL - Tem algum mote que o acompanhe pela vida?

 

RC –  Escrever,  senão enlouqueço.

 

 

RL - Qual o papel do escritor na sociedade?

 

RC - Escrever. E que sua escritura não seja em vão.

 

 

 

Ronaldo Cagiano nasceu em Cataguases-MG, em 15/04/61, e vive em Brasília desde 1979, onde formou-se em Direito. É funcionário da CAIXA. Colabora em diversos jornais do Brasil e exterior, publicando artigos, ensaios, crítica literária, poesia e contos, tendo sido premiado em alguns certames literários. Participa de diversas antologias nacionais e estrangeiras.  Publica resenhas no Jornal da Tarde (SP), Hoje em Dia (BH), Jornal de Brasília e Correio Braziliense, dentre outros. Tem poemas publicados na revista CULT e em outros suplementos.  Obteve 1º lugar no concurso "Bolsa Brasília de Produção Literária 2001" com o livro de contos Dezembro indigesto, recém-publicado. Publicou: Palavra Engajada (poesia,  Scortecci, SP, 1989); Colheita Amarga & Outras Angústias (poesia,  Scortecci,  SP, 1990); Exílio (poesia,  Scortecci,  SP, 1990); Palavracesa (poesia, Ed. Cataguases, Brasília, 1994); O Prazer da Leitura, em parceria com Jacinto Guerra (contos juvenis, Ed. Thesausus, Brasília,1997); Prismas – Literatura e Outros Temas (crítica literária, Ed. Thesaurus, Brasília, 1997); Canção dentro da noite (poesia, Ed. Thesaurus, Brasília, 1999); Espelho, espelho meu (infanto-juvenil, em parceria com Joilson Portocalvo, Ed. Thesaurus, Brasília, 2000); Dezembro indigesto (contos, Sec. Cultura do DF, 2001); Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, 2004, organizador). Concerto para arranha-céus (contos, LGE Editora, Brasília, 2004). Mais aqui. 

 

 

 

junho, 2005
 
 

 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.