Mãos grandes, voz rouca, estatura pequena, uma natural sutileza viril, assim foi que vi pela primeira vez Fernanda D'Umbra numa noite em São Paulo, e como o tempo é e não é, foi lá pelos idos de 2003. Atriz que acabou de ganhar o Prêmio Qualidade Brasil de 2005, com uma trajetória incisiva, seu viés out-sider, e, que me permita o leitor o galanteio — sua realeza. Deixemo-la falar. João Filho

 

 

 

 

 

 

João Filho – Como toda grande trajetória a sua é singular, mas teve que começar do zero, como foi a sua infância?

 

Fernanda D’Umbra - Na rua. Devo isso a minha mãe. Meu pai ficou muito doente quando eu tinha uns dois anos e minha irmã tinha sete. Minha mãe decidiu tratar a coisa com naturalidade e segurou toda a onda sozinha. Ela é uma mulher muito doce. Vivíamos então com a doença dentro de nossa casa, o que era meio barra, porque meu pai era um grande cara, além de ser lindo. Foi uma merda ter ficado doente. Então deliberadamente decidimos que não seríamos mulheres amargas, e quem decidiu isso foi minha mãe. Ela me deixava livre pra brincar o dia todo. Sempre gostei de estudar e de ler, então era boa aluna, o que me livrava de broncas desse tipo. Eu, minha irmã mais velha, vários primos, e os vizinhos dávamos muito trabalho aos médicos do pronto-socorro. Somos todos cheios de cicatrizes, que um provocou no outro. Outra coisa boa é que minha mãe nunca me obrigou a nada. "Quero sair do piano". Sai, ela dizia. "Quero parar com o balé". Pára, ela dizia. Conseqüentemente, não sei tocar piano, mas desde muito cedo aprendi que poderia escolher. E nunca mais ninguém me obrigou a nada. Tipo: se nem minha mãe me obriga, quem é você pra querer fazer isso?

 

 

João - Como chegou à literatura? E o que veio primeiro o teatro ou a escrita?

 

Fernanda - Foi a Tia Vilma. Eu ficava na casa dela muitas vezes. Ela é solteira e morava com a minha avó. Família italiana, todo mundo entra e sai da casa do outro sem cerimônia. Minha tia deixava a gente mexer nas coisas dela. Então eu podia ler seus livros. Ela sempre me dava livros de presente, porque sabia que eu gostava. Meu primeiro livro do Bukowski, foi ela quem me deu aos 16 anos com a seguinte dedicatória: "Para Fernandinha, um livro que gostaria que não lesse". Com relação à literatura ainda acho que meu talento é mesmo o de leitora, então na prática o teatro veio bem antes da escrita. Pra ser muito sincera, acho que a escrita ainda não chegou, mas talvez esteja a caminho.

 

 

João – E a sua escrita? Seu blog está aí vivo e lido. E sabemos que blog é apenas uma via, qual sua relação com os leitores? Ou vê como o Antônio Lobo Antunes que diz que os leitores são como putas, nos amam e depois nos abandonam? 

 

Fernanda - Leitores são aqueles moleques que gostam de você na escola, mas não se declaram ou que querem te pegar na saída, mas não pegam. Quero dizer, eles estão aí, mas a gente não sabe o que pensam de verdade sobre nós. Agora a rede de computadores quebrou isso. Hoje o cara lê um texto seu no blog e se quiser pode te criticar, elogiar, dizer o que você causou na vida dele e essas coisas. Não me importo com a resposta dos leitores ou do público no teatro. Escrevo para ninguém. Meu blogue tem umas 150 entradas diárias. Acho muito. Não dá pra ter compromisso com toda essa gente. Gosto deles, mas não quero que saibam disso.

 

 

João – Quero saber da atriz. Prêmio é sempre bom receber, ainda mais quando é por merecimento e não bajulação. Como vê sua trajetória como atriz até agora? 

 

Fernanda - É linda. O teatro me dá muita coragem. Muito da minha fé na vida vem do fato de que eu sempre soube que seria atriz. Sempre. Então foi só esperar o tempo passar pra poder subir no palco, o que aconteceu aos quinze anos. Depois disso, devo ter feito umas 50 peças, sei lá. Recebi um prêmio esses dias. É legal, mas não é tudo isso. Eu não me preocupo em estar fora ou dentro do esquema de fama e sucesso e tal. Preocupo-me em fazer um esquema meu, que muitas vezes me leva pro teatro alternativo e outras vezes para o mainstream. Tenho tentado não ter controle total sobre a minha vida, pra ver no que dá.  Mas às vezes não resisto e puxo as rédeas.

 

 

João – Difíceis, presumo, mas fale como foram os primeiros anos em São Paulo?

 

Fernanda - Foram bons. Trabalhava de dia e estudava publicidade de noite. Era chato, mas eu era muito nova, tinha 17 anos, então um namorado, um uísque e pronto, estava tudo certo. Depois quando eu comecei a querer outras coisas, é que o negócio ficou difícil. Quando eu decidi que ia estudar teatro e viver só disso, fui altamente desaconselhada, o que me deu a certeza de que eu estava no caminho certo. Então comecei a me ferrar e aí as coisas começaram a ficar incrivelmente difíceis e boas de fato.

 

 

João – Acredita, como o romancista curitibano Cristóvão Tezza, que atores são réplicas que se postas à solta sentirão falta do tempo e do texto da peça?

 

Fernanda - Não. Isso é bobagem. Atores são uns sacanas. Principalmente os bons. Concordo com o Marcelo Montenegro: é do Domingos Oliveira a melhor definição. "Esse esse papo de artista é um troço que a gente inventa pra poder acordar mais tarde no dia seguinte".

 

 

João – Além de atuar, você dirige, produz e otras cositas más, que me parece ser uma marca do Cemitério de Automóveis, esse trânsito criativo e inteligente em várias áreas não só do teatro. Como você vê isso?

 

Fernanda - Faz muita diferença. Um ator que dirige, produz e faz otras cositas más, sabe como funciona o palco. Então o cara usa todos os recursos possíveis pra virar um personagem de ficção ali na sua frente. Além disso o cara tem que gostar muito de ler, porque a linguagem escrita é seu ponto de partida. Está quase tudo ali no texto. O quase é o ator mesmo e a interpretação que ele é capaz de ter daquele texto. E como diz o Peréio "tem que dar uma canastreada de vez em quando". Teatro não é fácil, mas pode ser. Sim, talento é fundamental. Mas fundamento é só o começo.

 

 

João – Como vê o teatro brasileiro atualmente?

 

Fernanda - Não vejo. Fico muito em São Paulo e quando vou a festivais nacionais é sempre no esquema "apresenta – bebe – dorme - toma café da manhã - e tchau - valeu!". Antes, as companhias podiam ficar mais tempo nos festivais e ver peças de outras regiões, agora os orçamentos são muito apertados então os produtores te colocam no primeiro vôo ou ônibus depois da tua apresentação. Não estou reclamando não, eles fazem o que podem. Vejo algumas coisas quando as companhias vêm pra São Paulo e viajo mais para o Rio de Janeiro. De lá conheço o dramaturgo e diretor Roberto Alvim e a Companhia Armazém, do diretor Paulo Moraes e gosto muito. Aqui em São Paulo, Os Satyros andam pondo fogo na Praça Roosevelt, com dois teatros cheios de peças. Outro dia me apareceu aqui um cara chamado Francisco Carlos, dramaturgo amazonense com mais de 40 peças escritas. Nunca tinha ouvido falar do cara. Uma vergonha! Em termos de grana e falta de incentivo do governo, nem vou falar. Aquilo é o Mistério da Cultura: ninguém sabe o que ele faz, pra onde ele atira, o que ele quer. O governo brasileiro é muito fraquinho.

 

 

João – Em casa escuta o quê? E como vão as aulas de música, ainda estuda?

 

Fernanda - Rithm'n'blues, rock, blues e música brasileira (não a de turista, a de curioso). La Carne, de Osasco. Dr. Cascadura, da Bahia (isso sim é rock'n'roll). Bêbados Habilidosos, blues de Campo Grande, banda incomparável. O Mário tem uma banda, a Tempo Instável, que faz um som sofisticado e com doses elevadas de vagabundagem. Logo deve sair um disco deles. Eu deixei a guitarra, porque não tive paciência e virei vocalista.  Se uma hora der a louca eu tento aprender guitarra novamente. Mas não sei. Sou muito preguiçosa. E cantar é foda. Tô gostando mesmo.

 

 

 

 

 


 

João – Sabendo que ia te entrevistar um amigo faz duas perguntas (vou respeitar as perguntas dele apesar de bestas): se tivesse que escolher definitivamente, pararia de escrever ou atuar?

 

Fernanda - Não sei. É para sempre? Hum.... Deixaria de atuar. E chamaria minhas apresentações de sarau. Os escritores atuam agora. E reclamam de atores que lêem poemas. Eles têm razão, mas poderia ser pior: bailarinos poderiam estar lendo poemas. (Minhas amigas vão me matar!)

 

 

João – Como é viver (digo, pagar contas) de teatro feito à unha no Brasil?

 

Fernanda - Varia. Às vezes dá, às vezes não dá. Mas não é esse desespero que gostam de apregoar. Eu tenho casa, tenho carro e vivo de teatro, fazendo as peças que eu quero. Sempre foi assim? Não. Mas há que se ter paciência e resistência física, minha gente. Quem se forma em matemática também não fico rico na semana seguinte.

 

 

João – Você é uma das fundadoras do Cemitério de Automóveis? Fale sobre.

 

Fernanda - Não. Quando eu comecei a trabalhar com eles o Grupo já tinha 15 anos. Quando o Mário Bortolotto e o Lázaro Câmara fundaram o Cemitério eu tinha 11 anos de idade. Uma criança! De 98 pra cá assino grande parte das produções e fiz umas 30 peças com o Grupo. Poucas coisas são tão divertidas quanto trabalhar no Cemitério de Automóveis. A gente produz teatro, mas produz muitas outras coisas. Terminamos há pouco de filmar Getsêmani, lançamos livros, fazemos shows... É bem intenso o negócio. Além disso, aqui eu posso ser muito autoral como atriz e isso é extremamente sedutor. O Mário me deixa enlouquecer. Ele é bom nisso.

 

 

João – No seu blogue volta e meia é postado um Laerte, o cartunista, de quem também sou fã. O que anda lendo em quadrinhos? Digaí os seus preferidos.

 

Fernanda - Tenho só um preferido: Laerte. Os outros eu gosto muito mesmo: Angeli, Lourenço Mutarelli Caco Galhardo, o Paulo Stocker. Li tudo aquilo na infância: Mônica, Luluzinha, Brotoeja, Riquinho, Recruta Zero, Disney. Então meus namorados me mostraram os quadrinhos adultos. Primeiro o Paulão, quando eu tinha uns 17, que me apresentou a Chiclete com Banana, o Manara, o Crumb, Will Eisner, os tiozinhos mestres. E o Mário, com quem me casei. E sua linda coleção de quadrinhos. Conheci Garth Ennis, Jeff Smith, Peter Begge (do genial Ódio!) e a dupla Berardi&Milazzo (deles não li Ken Parker e o Mário não me perdoa por isso).

 

 

João – Rock ou blues? E por quê?

 

Fernanda - Rithm'n'blues. Porque eu não sei.

 

 

João – Poesia. Conte de alguns impactos que esta Puta Que Manda causou em você pelo caminho.

 

Fernanda - Foram tardios. Demorei com a poesia. Mas o bom é que eu não tenho o menor compromisso com ela. Fico lendo como se fosse uma criança olhando a jaula do gorila. Só fico esperando ela se mexer. Os poetas fazem um negócio que eu acho muito difícil. Eles têm uma faca e não têm medo de usá-la. Procuro não chegar tão perto.

 

 

João – Tem livro pronto ou publicado? Se não, pretende publicar?

 

Fernanda - Não. Nem pronto, nem publicado.  Vários amigos escritores me cobram. Eu brinco dizendo que eles querem é uma desculpa para ir a outro lançamento.

 

 

João – Personas. Fale de algumas que teve que encarnar no palco e que não foram e nem serão poucas, e que são mais relevantes pra você?

 

Fernanda - A que você viu, Amsterdan, foi legal. Um trabalho cheio de detalhes, onde a composição não podia aparecer. O que interessava era o que se passava lá dentro daquela junkie carismática. E como não cair na esparrela de "fazer um grande trabalho?". É sempre uma tentação: "Fazer um trabalho do caralho". Não é isso que me interessa. Me interessa que você se ferre na platéia. Ou morra de rir, sei lá. Minhas intenções são as piores. Eu sou só uma intérprete, veja você. Então tenho que ter más intenções, já que sou praticamente o moto-boy do teatro, o cara que entrega a encomenda. O texto, a luz, a direção, o figurino, nada ali é meu. Então se eu entro só na intenção de fazer um grande trabalho, eu tô desperdiçando a minha loucura e a loucura da platéia. Essa peça do Fagundes também foi difícil porque a Diana (minha personagem) é muito digna, muito equilibrada, muito fina e elegante. Eu pensei: "Meu Deus! Por onde eu começo?". Eu sou do tipo que se joga na porta e ameaça se matar se o cara for embora. Dignidade nunca foi meu forte. Então foi bom estudar essas coisas. Fiquei mais elegante na hora do desespero. Um pouco.

 

 

João – Se considera uma urbanóide? Viveria longe de grandes cidades?

 

Fernanda - Totalmente urbanóide. Longe daqui eu morreria em algumas horas.

 

 

João – Toda mulher é um mistério, mas para um homem que gosta de mulheres (pois nem todos gostam e digo no sentido amoroso) é impossível passar sem uma, seja monogâmico ou promíscuo, vamos as perguntas que do ponto de vista masculino são consideradas supérfluas, coisas de mulher. Seu guarda-roupa. Sua maquiagem. Seus sapatos. Cabeleireiro? Manicure? Cozinha?

 

Fernanda - Nos primeiros dias do ano, decidi arrumar meus três guarda-roupas. Fiquei com vergonha. Gasto muito dinheiro com roupa. Tenho muito dinheiro? Não, gasto muito dinheiro, há uma diferença aí. É uma fraqueza de caráter. Fiquei tão envergonhada que decidi mexer nisso. Vou dar um tempo. Tenho também muitos sapatos. Uma coisa feia de se ver, mas eu acho lindo. É o tal caráter fraco. Cabeleireiro, manicure, acho um saco, mas adoro o resultado, então vou. Na cozinha sou um exemplo de talento desperdiçado pela preguiça. Sei que posso parecer imodesta, mas herdei da minha mãe o peso certo na mão para a cozinha. Mas pratos mais sofisticados, só de pegar a receita, já fico cansada. Minha mãe diz que me falta um filho pra virar uma boa cozinheira. Eu disfarço.

 

 

 

março, 2006
 
 
 
 
Fernanda D'Umbra, atriz. Escreve o blogue Sem Gelo
 
 
 
 
 
 
 
 
João Filho (Bom Jesus da Lapa, sertão, 1975). Poeta, escritor, vive em Salvador da Bahia. Publicou Encarniçado ou anotações dum comedor de cânhamo (São Paulo: Baleia, 2004). Escreve o Hypperghettos. Mais aqui e aqui.