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Rodrigo Leão – Iosif Landau, você tem influência de outras artes em sua literatura? O cinema noir é uma influência?

 

Iosif Landau - Outras artes? Influenciaram minha literatura? Com certeza, conhecia bem essas outras artes. Boêmio, margeei com malandros, pilantras, policiais biscateiros, prostitutas, na Cinelândia, na Lapa, na Praça Mauá, em Copacabana, templos e sacerdotes das artes repugnantes. Falo das décadas de 40, 50 do século passado. Hoje se eu me enfiasse nessa meleca urbana, estaria morto ou então gramaria no xilindró. E por quê? Naqueles tempos, às outras artes também pertenciam a amizade, a lealdade, a camaradagem e até a pureza no amor pago, nada de violência, covardia, tóxico pesado, a putaria era limpa, uma porrada ali, acolá, tudo bem, a gente vivia, não machucava, nem se machucava.

 

As Sete Artes da era moderna — Música, Dança, Pintura, Escultura, Literatura, Teatro e Cinema —, coloco sob um único guarda-chuva, chamado Cultura. Quem pretende ser escritor tem de ser culto, tem de ser mesmo, é dogma e ponto final, a Literatura em destaque. Quem não leu, não lê e nunca lerá, jamais será escritor e se tiver preferência por algum escritor tem de ler tudo o que ele escreveu, tudo, absolutamente tudo.

 

Eu, pessoalmente, e baseado no sublime axioma de Nelson Rodrigues do "óbvio ululante", afirmo que só existe uma arte, o CINEMA, ele engloba as demais, pois não?

 

O cinema noir, meu endeusado cinema noir ou film noir, é a linha mestra dos meus romances. O film noir é um rótulo francês para um gênero de filme americano, os franceses observaram a semelhança que existia entre os filmes americanos da década de 1940 e o "romance negro", denominação dada aos romances policiais "nova geração", editados numa coleção chamada "noir". A técnica usada nesses filmes era a iluminação sombria, que permitia ao espectador antever uma ação noir, a ambientação era mais importante que o ator. A presença da noite e das sombras no filme imprimia o tom fatalístico e de desesperança, o enredo complexo, desconexo e fragmentado acrescentava-se ao mal-estar, os flashbacks muito usados enfatizavam a sensação do "tempo perdido" e desespero, a narração na primeira pessoa evocava um passado nebuloso irrevogável, um destino já traçado. Esse gênero de filme dava impressão de um mundo-prisão, de um mundo de solidão.

 

O film noir apresenta-nos dois tipos de mulheres, a prostituta ou a "santa". Nele aparecem as duas, a mulher fatal e a virginal, e as relações familiares não são normais, a família tradicional, em que o sexo se esconde, em que o homem domina a mulher, em que a mulher é a mãe submissa. No film noir a família é perversa e pervertida, o casamento é uma chateação, estéril e sem sexo, os cônjuges procuram satisfação fora do casamento, não apenas no sexo, mas como uma tentativa de fugir à rotina, o que redunda muitas vezes em morte ou autodestruição.

 

A mulher fatal no filme noir é o personagem principal, é sedutora, é poderosa, ambiciosa, independente, promíscua, inteligente, narcísea, às vezes, é rica e foge ao domínio do homem, representa um perigo para o sexo masculino, um perigo para o sistema patriarcal, portanto, torna o homem inseguro e terá que ser punida, nos filmes é ela quem domina os olhos da câmera, mas no fim é destruída, perde seus encantos físicos.

 

O personagem masculino no film noir, na maioria das vezes, é um detetive particular ou um sujeito rejeitado socialmente, por vezes amnésico, desiludido e alienado. Esse cara durão é solitário, anti–social, angustiado, vive e trabalha no ambiente sombrio e assustador das grandes cidades, perto do meretrício, em edifícios semi-abandonados, tem o dom da ironia, seu mundo é dominado pelo crime, corrupção e crueldade, vive num mundo de pesadelo, onde lhe é proibido demonstrar emoção para se mostrar bem macho, o tough guy tem de viver em ação constante, contemplação e emoção são coisas de mulher, nem pensar em casar e constituir família, ele é um "ninguém". Fascinado pela mulher fatal, sua vida é claustrofóbica, rejeitado pela sociedade do bem, rejeitado pela boa mulher, sua sexualidade é ambígua, homossexualidade nem sonhar, ele é misógino, não se prende emocionalmente nem sexualmente à mulher, tem como amigos outros homens, a vida é muito dura para ele.

 

O film noir pode ser apenas um modismo cinematográfico, mas também espelha a perspectiva da existência humana na sociedade, o confronto com o lado obscuro, a perda da inocência, a decadência. Os personagens são prisioneiros do destino, o ingresso da mulher no mundo masculino desestabiliza o mundo masculino, o mundo de pós-guerra, como apresentado no film noir, é ainda muito atual, muito mesmo.

 

Os primeiros film noir foram baseados nos romances de Raymond Chandler, Dashiell Hammett ou James Cain. Os intérpretes masculinos eram Robert Mitchum, Fred MacMurray, Humphrey Bogart e os femininos, Mary Astor, Verônica Lake, Bárbara Stanwyck, Lana Turner.

 

Muitos film noir foram editados por Hollywood, a lista é imensa, mas eu destaco seis. O Falcão Maltês, considerado o pioneiro, com Bogart e a dupla sinistra Peter Lorre & Sidney Greenstreet, e Mary Astor. A Gun for Hire, o primeiro filme de Alan Ladd e talvez seu melhor papel, contracenando com Verônica Lake. A Dama de Xangai de e com Orson Welles, em que ele introduz a sala de espelhos com o vilão sendo caçado nas suas inúmeras figuras repetidas, Rita Hayworth, a mulher fatal. Double Indemnity com Bárbara Stanwick, soberba. O Destino Bate na Porta, com John Garfield, esplêndido ator, desaparecido prematuramente, e Lana Turner. Os Assassinos, o primeiro filme de Burt Lancaster, baseado no extraordinário conto homônimo, de Hemingway. The Asphalt Jungle, com Marylin Monroe no seu primeiro papel de destaque, e com Sterling Hayden, admirável ator, muito injustiçado pela indústria do cinema.

 

Por volta de 1959 o film noir desapareceu, não havia mais espaço para esse tipo de filme.

 

O que escrevo segue a filosofia do noir, tanto do filme como do romance, o difícil é reproduzir o ambiente e o comportamento dos personagens numa paisagem tropical como a do Rio de Janeiro.

 

 

RL - No livro Memória Tumultuada você nos conta memórias da Romênia, na época da Segunda Guerra Mundial. Como você viveu esta Guerra?

 

IL - Nasci de uma família judia, no dia 30 de abril de 1924, em Bucareste, Romênia. Em 1918 terminara a Primeira Guerra Mundial, com a Alemanha derrotada. A Romênia lutara ao lado dos vencedores e por isso foi beneficiada com a incorporação da Transilvânia e Bessarábia ao seu território, mas uma condição fora exigida: a emancipação dos judeus nascidos no país.

 

O anti–semitismo é uma praga que domina a humanidade há séculos, mas o Leste Europeu era o mais violento e a Romênia, um dos piores. Antes de 1918 o judeu nascido na Romênia era considerado estrangeiro, sujeito à naturalização. Mesmo depois de 1918 o anti–semitismo romeno não cessou, mas com a nova cidadania e o término das restrições, houve melhoria substancial para os judeus. Alguns fizeram fortuna, outros tiveram bons empregos, médicos e advogados judeus se tornaram famosos.

 

Meu pai enriqueceu como comerciante e industrial. O dinheiro (quem não sabe que dinheiro é poder?) permitiu–lhe ter acesso aos políticos, dirigentes, donos do poder. Ele freqüentava os clubes da alta sociedade, era habilidoso, simpático, alegre, conseguiu fazer amizade com muitos não judeus. Eu levava uma vida de príncipe, só senti o anti–semitismo no colégio: numa turma de 60 éramos seis judeus. Tapas, deboches, quase diários, alguns reagiam, como eu, outros não, mas nada que assustasse demais. 

 

A Segunda Guerra Mundial nada mais foi que a continuação da Primeira, o Pacto de Versailles, depois da derrota da Alemanha, asfixiou por completo aquele país, era apenas uma questão de tempo para que surgisse um "salvador", que reerguesse o orgulho germânico, que desafiasse aquele Pacto impossível. Infelizmente, o "herói", para dominar o povo alemão, para se tornar politicamente forte, escolheu o anti-semitismo como bandeira, fato que não assustou em nada o resto da Europa. Os judeus já eram perseguidos há séculos e o rastilho do nazismo espalhou-se com imensa velocidade.

 

É interessante mencionar que a Alemanha nunca fora anti–semita e que os judeus ali nascidos consideravam–se alemães autênticos, mas Hitler conseguiu convencer que os judeus eram culpados pelos males que afligiam o povo germânico. Deu certo para ele.

 

Com o advento do nazismo na Alemanha, o anti–semitismo aumentou sua virulência. Nos moldes da facção nazista alemã, surgiu, em 1940, a facção romena denominada Guarda de Ferro. A História foi até certo ponto clemente com os judeus romenos, a Alemanha não invadiu a Romênia em troca da permissão da passagem de suas tropas rumo ao front russo e a participação de tropas romenas na guerra com a Rússia.

 

Ironicamente, podemos admitir a "sorte". A solução final de Himmler não atingiu os judeus romenos, entretanto, nas províncias de Bucovina e Bessarábia inúmeros judeus romenos foram trucidados, certamente, devido a vários fatores predominantes: o anti–semitismo enraizado nas tropas romenas e potencializado pela presença de tropas alemãs e do comando alemão, como também a atuação das polícias romenas e das autoridades regionais dominadas pelo ódio.

 

300 000 judeus morreram ao todo, vítimas de atrocidades.

 

Em 1938, fui estudar na Inglaterra num colégio particular perto de Londres, na cidade de Reading, em lugar um pouco afastado e localizado num vilarejo chamado Maiden Erlegh, portanto, Maiden Erlegh School.

 

O colégio funcionava numa típica propriedade rural de nobre inglês, o edifício principal era um primor de arquitetura do século 18. Nos dormitórios havia acomodações para dois; salão de recreio e jogos; salão de refeição cinematográfico: tudo emanava história e tradição anglicana, tudo nobreza. A propriedade era imensa. Campo de futebol, rugby, hockey sobre grama, quadras de tênis, bosque e lago, campo para o jogo de pólo a cavalo, piscina coberta e aquecida, um colégio para milionários.

 

Fiquei ali por mais de dois anos, onde aprendi a gostar da literatura, fiz amizades com gregos, indianos, belgas e até ingleses, participei de esportes — era titular do time de futebol, rugby e remo (o Tâmisa por perto). Esbanjei dinheiro em Londres, onde, nos fins de semana, residia na embaixada romena (o filho do primeiro ministro era meu amigo), vestia-me do bom e do melhor das lojas de Bond Street, vivia em farras nos arredores de Picadilly Circus, fui muito feliz naqueles tempos.

 

No verão, encontrava-me com a família na França, numa estação de águas. Não pretendo alongar-me muito, usem a imaginação: um príncipe, um afortunado, um ser abençoado.

 

Em 1938, agosto, ameaça de guerra. Chamberlain viaja para Munich, para encontrar-se com Hitler, a minha família estava em Aix les Bains, a França decretou mobilisation genérale. Pânico, debandada geral, viajamos para Paris num trem superlotado, em Paris a família decidiu voltar para Bucareste e eu voltei para o colégio inglês.

 

1939, Hitler invade a Polônia, declaração de guerra em setembro. Meu pai, alertado por um amigo político, de que ele seria caçado pela Guarda de Ferro, no dia seguinte, por ser judeu e rico, embarca para Paris com minha mãe e irmã no meio da noite, deixando tudo pra trás, nem mesmo se despedindo da mãe e das irmãs. Acaba em Lisboa e dali parte para o Brasil, onde desembarca em meados de 1940, no Rio de Janeiro. Nada foi fácil, enfim, é a minha história, que conto no Memória Tumultuada.

 

Eu saio do colégio, hospedo-me em Londres, no Cumberland Hotel, onde aguardo o dia de minha partida para o Brasil. Numa noite de agosto, ouço o silvar de uma bomba, que atinge o metrô em frente ao hotel. Assustador, os feridos do metrô são levados pro hall do hotel, pavoroso. Agosto, setembro, a Batalha da Inglaterra, bombas e mais bombas. Em dezembro, embarco de Southampton, no Andalucia Star, a travessia do Atlântico leva sete dias, chego ao Rio na noite de 17 de dezembro.

 

Fim de uma época, início de outra.

 

C'est la vie! Uma merda!

 

Deixei para trás minha infância, parte da minha adolescência, amigos, primos, avó, tias, lar, cidade natal, felicidade, o passado enterrado para sempre. Nunca mais serei o mesmo, renascer é doloroso, até hoje dói. Muito.

 

 

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RL - Como surgiu o Comissário Alfredo?

 

IL - Para responder, eu teria que recontar minha vida, o que é impossível e indesejável, portanto, parto de um ponto qualquer e vamos ver o que dá. Primeiro, vamos esclarecer algo, vamos falar dos tipos de inteligências: lingüística - talento com as linguagens escrita e falada; lógico-matemática - talento para o raciocínio, facilidade em lidar com números; visual-espacial – especial para lidar com a imagem, para decodificá-la, inclusive;  musical: facilidade para identificar sons; corpórea - o corpo é a ferramenta, o que vale para atores, atletas; interpessoal – boa no relacionamento com as pessoas: conhece bem o outro e sabe como tirar de cada um o que precisa; intrapessoal - pessoa que se conhece muito bem, tendo capacidade de auto-motivação. Elimino, no meu caso, as seguintes: lógico-matemática, visual-espacial, musical, corpórea, interpessoal. Restam, então, a lingüística e a intrapessoal, ou seja, tenho facilidade de me expressar e sou teimoso.

 

Vocês vão dizer, "mas como, se você foi engenheiro e trabalhou na profissão durante quase 40 anos?". Pois é, imposição paterna, mas vamos deixar o Freud de lado.

 

Dizem os esotéricos que quem deseja muito algo e persiste no desejo faz com que ele "aconteça". Pois eu persisti durante quase 50 anos e aconteceu, mas aconteceu não por minha vontade, aconteceu por causa da filhadaputice de outros. Colocado na "geladeira", por desagradar um poderoso sacana e covarde, fiquei sem função no meu último emprego, aos 70 anos. Continuei com o bem montado escritório, secretária e sem o que fazer. Passava o tempo lendo, naquela época, me apaixonara pelo Bukowski, li tudo em português e em inglês. Quando terminei, peguei um papel e uma caneta e comecei a rabiscar o que eu pensava ser poemas a la Bukowski, acabei enchendo um caderno inteiro, eu lia e relia, achava legal, estava satisfeito e feliz. A Lei Collor foi promulgada, meu algoz criou coragem e me despediu, e depois de acertar–lhe uma bolacha, fui pra casa, definitivamente aposentado, ocioso e desorientado. Catei uma máquina de escrever antiga, comecei a batucar com um dedo, desisti, não dava, joguei a máquina num canto e ponto final. Meu filho Luiz bateu lá em casa, viu o caderno, pegou-o, não o impedi, leu e gostou. Confessei–lhe a minha vontade e a minha dificuldade, juntou-se com os irmãos, comprou um computador e colocou-o numa mesa no meu quarto. Fiz um curso de sete dias e lá fui eu, ingressar no mundo da informática.

 

Num dia qualquer, peguei o jornal, abri nos classificados, nem sei por que, e vi um anúncio: um fulano de tal procurava novos escritores para editar uma coletânea. Peguei meu caderno, fui à cidade, entrei no escritório mambembe, falei com o cara, deixei o caderno ali, dez dias mais tarde ele me telefonou, escolhera dois poemas, paguei algo em torno de 50 reais, um mês mais tarde a coletânea estava editada, noite de autógrafos na Laura Alvim, distribuí convites, a família compareceu, compareceu também a irmã de um amigo, impossibilitado de estar presente, tudo era festa e eu, superfeliz.

 

Uma semana mais tarde a irmã do meu amigo me telefona e me convida para participar da oficina literária de Flávio Moreira da Costa. Topei de saída, e dela participei por três anos, apresentando muitos contos, assimilando o aprendizado, aceitando críticas, reescrevendo, críticas e mais críticas, nenhum elogio. Flávio é um cara durão, seco, honesto, nada de paparicos. Durante aqueles três anos, entraram e saíram inúmeros pretendentes a escritor, apenas minha amiga e eu permanecíamos. Eu já era craque no computador, nenhuma dificuldade, nem desculpa para deixar de escrever.

 

Como já disse, eu era gamado pela literatura noir, filme noir e agora também pelo road movie, lembrei–me da Route 66 um seriado duca, lembrei–me de todos os livros, de todos os filmes. Não sei em que dia, nem que mês, nem mesmo o ano, talvez fosse aos 72 ou 74 anos, não sei. Eu queria escrever um roman noir misto de road novel, escolhi o nome de Alfredo em homenagem ao meu compadre também Alfredo e também comissário. Iniciei a digitação, não tinha nenhum roteiro em mente, imaginei o dito comissário morando no pior trecho de Copacabana, na Prado Júnior, e lá fui eu construindo o personagem, um fato real de uma vida real, contado por um amigo indicou-me a linha mestra, leituras e vivências ressurgindo, levei 20 dias pra terminar, direto, sem pausa, as idéias surgiam com uma facilidade incrível, assustadoras, a parte da road novel era fácil, eu conhecia bem a região, tendo trabalhado muito por lá.

 

Nem fiz revisão, coloquei tudo na impressora, encadernei tipo espiral, e mandei pro Flávio ler. Estava confiante, sentia que o caminho estava livre, estava feliz, era o meu primeiro livro.

 

Flávio devolveu-me o volume com as seguintes palavras escritas na primeira página: "Agora posso te chamar de colega, parabéns".

 

Flávio é um cara superlegal, introduziu-me na Record, aceitaram editar o livro, tive que pagar 3000 reais naquela época, mas valeu, a editora fez a divulgação, apareceu resenha no Jornal do Brasil, comparando-me ao Rubem Fonseca, apareci na TVE, vendi 800 exemplares, recuperei o capital e fiquei com um pequeno lucro.

 

Escrevi outros livros, nenhum teve o sucesso do Comissário Alfredo, durma–se com um barulho desses. Cansei de batalhar atrás de outras editoras, cansei de me autopromover na Internet em blogue e listas literárias, mas ainda não cansei da esperança.

 

Grande Alfredo, meu abraço!

 

 

RL - O que deve ter um bom romance policial?

 

IL - O romance policial é antigo, consideram Edgar Allan Poe o primeiro escritor do gênero,  com o livro The Murders in the rue Morgue e, atualmente, o mais badalado é Dennnis Lehanne com o Mistery River, passando por Agatha Christie, SS Van Dine, Elroy, Chesterton, Conan Doyle, Chandler, etc., etc., estilos e épocas diferentes, mas sempre o crime, a vítima, os suspeitos, o mistério, o detetive e o criminoso.

 

Escrever um romance policial, de certa forma, é igual a escrever qualquer gênero. Tem que ter trama, ambientação e personagens, mas um romance policial tem que ter algo mais, para que desperte o interesse do leitor. Esse algo mais, a meu ver, é a estrutura do herói, que pode ser um policial, um investigador particular ou até um indivíduo qualquer.

 

O meu Comissário Alfredo foi construído com vários componentes, algo  dos detetives do roman noir, também algo que vi nos tipos que conheci, algo dos policiais amigos, e muito de mim. E por que eu? Por que eu possuo traços característicos que compõem a personalidade quase esquizofrênica do (anti) herói: solidão, tensão permanente, coragem física, traços de marginalidade, fatalismo, um laisser faire desenfreado, gosto pelas prostitutas, perigos vividos, etc. e tal.

 

Nos romances policiais pioneiros o trama era complexo, ia, vinha,voltava, entrava num labirinto, todos se perdiam, menos o investigador. O livro sempre terminava com uma reunião, onde o detetive explicava com detalhes tudo o que acontecera e, no final, apontava o culpado.

 

Isso mudou nos romances noir, a trama era simples, quase óbvia, o que interessava era a ação, o detetive enfrentava tiros, surras, superava tudo, e quase a muque, agarrava o criminoso, fosse homem ou mulher.

 

A tendência hoje é voltar a complicar, acrescentando idéias tiradas da sociologia, da psicanálise, fazendo análise do passado dos personagens, excesso de cultura, muita descrição ambiental, o livro cansa, foge do que interessa, entedia, não gosto. Nem sempre é preciso desvendar a trama, como acontece no livro The Black Dahlia, escrito por James Elroy, que eu considero o melhor livro noir publicado até hoje.

 

Como já falei, o que interessa é a ação, a aceitação total e absoluta do personagem principal, o que ele é, como ele atua, o que pensa, o que faz e como faz. É isso aí, o que eu acho.

 

 

RL - Quais ingredientes literários deve ter um livro seu?

 

IL - Ingredientes?! Os de um molho de salada são o azeite, as ervas, o vinagre, o sal, e assim por diante. Os de um remédio são detalhados na bula. Mas os ingredientes de um trabalho literário?! Minha lógica me cutuca e diz: fala que não sabe, é uma resposta simples e honesta.

 

Literatura não é sopa, molho ou remédio, não tem nada de material, mas tem palavras, e as palavras são os ingredientes que compõem o prato final. Para esse prato ter paladar agradável, ser apetitoso, as palavras devem ser bem colocadas, compor frases, e as frases devem emitir pensamentos, abalar sentimentos, fazer sorrir, rir e chorar. Tecnicamente falando, a gramática tem de ser perfeita; a pontuação, aceitável; a fluência, carinhosa. Falta algo mais? Com certeza, o leitor sabe o quê.

 

Bom, segundo Hemingway, livros devem ser escritos para serem lidos, portanto, que tal definir o leitor de hoje? Está claro e comprovado que as grandes leitoras de hoje são as mulheres, a literatura estritamente feminina acabou, aquela xurumela de amores impossíveis, de sonho e luar, de pornografia infantil acabaram e outras superficialidades idem, a mulher hoje tem profissão de grau superior, posição empresarial, está a par da política, conhece cinema a fundo, vai ao teatro, participa de tudo e com tudo da vida social, tem opinião própria bem sedimentada e a emite sem receio, vida sexual livre, independe do homem, é totalmente independente, é a cabeça da família, é crítica feroz, não perdoa, mata! O que não significa que o homem virou um analfabeto, mas em termos de gosto literário não há mais distinção. E os ingredientes? Acho que me perdi, mas valeu como homenagem à mulher.

 

No meu caso, uso ingredientes (recursos) que surgem com facilidade, nada estudado, nada copiado dos outros, minha leitura assídua, com certeza, calcou no meu subconsciente muito dos demais escritores.

 

Não exagero nas descrições dos ambientes, dos personagens, o leitor terá o suficiente para completar a imagem. Uso pouco o ponto, muita  vírgula, colocada estrategicamente (minha respiração comanda), pretendo deixar o leitor sem fôlego, quero forçar a continuidade da leitura, introduzo bastante o diálogo (aprendi com mestre o Hemingway) que é incisivo, curto, brutal, às vezes, uso bastante os pensamentos subjetivos mudos, emitidos pelos personagens, abuso um pouco da cultura, pretendo que o leitor fique curioso e procure mais informação, nunca defino o final com clareza, o leitor tem de ser cúmplice, ele que o decida.

 

Nada mais a dizer, meu amadorismo pára por aqui.

     

RL - Você é poeta também. Você é um poeta beat?


IL - Não me considero poeta no sentido clássico do conceito. Não procuro rima, não sou adepto da métrica, nem de outras regras rígidas dos puristas.

 

Já mencionei o Bukowski, já falei dos poetas românticos ingleses (Tennysson, Browning, Shelley, Keats, Byron), li Rimbaud, Ezra Pound, Elliot, Walt Whitman, Bandeira, Drummond, Quintana, e muitos outros, não posso honestamente afirmar que gostei, amei ou adorei, achei apenas interessante.

 

Quando li o On the Road, de Kerouac, tomei conhecimento dos beat, parti pro Uivo e Kadish de Ginsberg, gamei, adorei.

 

Vale comentar sobre os beats, algumas curiosidades que descobri por aí, pesquisando na Internet:

 

– quando Allen Ginsberg adentrou a Six Gallery, há 50 anos, e declamou a primeira parte de Uivo (Howl), os beatniks moviam-se em bando para a costa-oeste americana. Os poetas caçavam um país diferente, menos materialista e menos conservador. O ulular noturno era aditivado por benzedrina, jazz e sexo. No galpão disfarçado de galeria, Ginsberg não podia prever que as dezenas de versos onomatopéicos e delirantes, lidos com voz e pensamento ébrios, seriam o ponto de partida a alçar os beats à condição de celebridades locais;

 

- os uivos pouco depois ultrapassariam os limites da cidade de São Francisco e ganhariam estradas e imortalidade literária. O poema apregoava a liberdade sexual em "intermináveis orgias, incomparáveis ruas cegas sem saída". Denunciava os horrores de um país militarista, repleto de radicalismos políticos, "protestando contra o nevoeiro narcótico de tabaco do capitalismo, que distribuíram panfletos supercomunistas em Union Square, chorando e despindo-se enquanto as sirenes de Los Alamos os afugentava";

 

- Ginsberg é o grande poeta americano depois de Walt Whitman, só que em vez de afirmar os ideais democráticos, o beat denunciou as falhas dos sistema, de uma América belicista e conservadora;

 

- Ginsberg, George Corso, William Burroughs e Jack Kerouac foram os primeiros artistas de comportamento alternativo, pioneiros ao retratar a costa-oeste quando o chique era estar em Nova York. Autores de uma estética pouco acomodada, construíram os alicerces da cultura pop;

 

- o termo beat, para Ginsberg, uma experiência transcendental e revolucionária, "um entendimento do que acontece no lado mais negro da alma", foi inspirado na expressão que Herbert Huncke — um traficante e michê amigo dos escritores — usava. Kerouac logo percebeu o caráter polissêmico da palavra, que além de significar "estar ferrado", no I'm Beat lembrava a batida do jazz. Pode ser interpretada como pulsar ou espancar;

 

- a transgressão e o coloquialismo renderam críticas que classificaram os textos como pornográficos ou excessivos e que até hoje ofendem alguns escritores.

 

Comprei as obras completas de Ginsberg, de Ferlingheti, Corso e outros, li tudo de cabo a rabo e caí como um sonâmbulo na cultura beat, escrevi dias e dias, ininterruptos, pessoalmente, acho que alguma "coisa" foi boa, diria até excelente: apresentando o trabalho em listas literárias, recebi elogios, no meu extinto blogue fizeram sucesso.

 

Acho o verso livre rico, sensacional, com ritmo e pulsação, mas devo reconhecer que como poeta não "colei", parei, não tentei mais, faz três anos que deixei de ser poeta.

 

 

RL - Como é o seu processo criativo?

 

IL - Bom, já contei como estruturo meu livro, como componho meu personagem principal, e outras cositas más que, de algum modo, respondem à pergunta. Tentarei completar.

 

Pra início de conversa, não concordo com o conceito de que "escrever é 90% de suor e 10% de inspiração". Sei que tem escritor que é disciplinado, tem horário de "trabalho", tenha ou não tenha inspiração, grama em frente do computador ou em cima da máquina de escrever e tenta a continuidade, sua, sua mesmo.

 

Eu sou um cara atento, presto atenção aos diálogos de rua, assisto a muitos filmes, de repente, surgem frases ou pensamentos que me chamam a atenção. Não tomo nota, mas também não esqueço, fica tudo catalogado em minha mente. Num dia qualquer me surge uma idéia prum conto, prum romance, surge daquilo arquivado em minha cabeça, vou ao computador, começo a escrever, e não paro mais, vou desde a manhã até altas horas da noite, dias seguidos, entro por um caminho, pego outro, aumento a importância de um personagem, introduzo outro, navego nas asas da imaginação, elimino, acrescento, mudo, retorno num frenesi incontrolável, dias depois, semanas mais tarde, coloco o ponto final. Não descanso, releio, modifico, corrijo, deleto, transfiro frases inteiras (bendita informática). Faço isso vezes seguidas, mas tem um determinado momento que dou um stop. Deixo tudo descansar durante uns dias e volto, mais  releituras, correções e, finalmente, considero a tarefa cumprida. C'est fini.

 

 

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RL - Você se considera um escritor profissional? Você é capaz de escrever sobre encomenda?


IL - Não, de modo algum, nem sei se sou escritor. Como dizia Hemingway, pra ser escritor é preciso ser lido e sou lido apenas por amigos, parentes, alguns simpatizantes e é só. Nunca me pediram para escrever sob encomenda, mas tenho certeza de que conseguiria, seria uma experiência interessante. Quem se habilita?

 

 

RL - Quais os escritores que fazem a sua cabeça?

 

IL - Hemingway, por ter sido o maior contista da era moderna, o maestro do diálogo. Rubem Fonseca, por ter tirado do marasmo a literatura brasileira. Camus, por ter se preocupado com o drama do ser humano. Elias Canetti, por ter me levado à época do iluminismo do período áureo de antes guerra, a primeira, em seus livros autobiográficos. Raymond Chandler e Dashiell Hammett, os criadores do novo romance policial. Jack Kerouac, que me despertou para a literatura beat. Philip Roth, por ser o maior talento literário da atualidade. Dalton Trevisan, pela sua escrita minimalista e irreverente. Paul Auster, pela sua erudição e polivalência, romancista, poeta, ensaísta, tradutor, cineasta. Isaac Bashev Singer, escritor judeu que nos seus romances mantém vivas as tradições judaicas. Amos Oz, por ser o maior escritor israelense do momento, internacionalmente aplaudido. Yehuda Amichai, poeta israelense que adotou o estilo beat. Clarice Lispector, enorme talento, mulher bonita e sofrida. Graciliano Ramos, grande talento nordestino. Nelson Rodrigues, romancista do subúrbio e inovador do teatro brasileiro. Mário de Andrade, por causa de Macunaíma.

 

 

RL - Quem é o escritor brasileiro?

 

IL - Será que existe o escritor brasileiro? Se pegar a lista dos 10 livros mais vendidos, nos jornais e revistas quem aparece? Só gringo traduzido. Paulo Coelho não é escritor brasileiro é escritor do Brasil, deu pra sacar?

 

Os escritores brasileiros que conheço são os que eu chamo de escritores "underground". São os caras que escrevem para ser lidos por poucos, ou não ser lidos. As editoras não apenas não os publicam, como nem se dignam a ler seu trabalho, rejeita-os e somem com os originais, os caras gastam tempo, suam, batalham, empatam grana e são desprezados. Ele, o escritor brasileiro, às vezes recorre às editoras virtuais, que em termos de prestígio, divulgação e venda nada significam. O e-book é um recurso, o resultado compensa? Duvido muito. Portanto, o escritor brasileiro não existe, se existir deve estar escondido atrás de uma mesa num escritório qualquer, ou talvez seja um vendedor de loja, ou motoboy, gari ou um  assalariado fodido. Viva o nosso herói desconhecido!

 

 

RL - O que lhe diferencia dos outros escritores de romance policial?

 

IL - Eu poderia enfeitar, dizer que é a linguagem, mas a resposta é facílima: o sucesso.

 

 

RL - Romance policial é um gênero menor?


IL Houve um tempo em que existia certo desprezo pela literatura policial, batizada como sendo um gênero literário menor. Não conheço a razão. Talvez fosse o advento do roman noir e a sua degradação pela pobreza da imitação. Pré roman noir, os livros escritos por Chesterton, Sax Rhomer, Rex Stout, SS Van Dine, Agatha Christie, Dorothy Sayers, Simenon, Ellery Queen, Edgard Wallace, Conan Doyle e tantos outros foram aplaudidos e considerados literatura de primeira. Este conceito pejorativo tende a desaparecer.

 

 

RL - Qual a influência que a Internet tem na sua literatura?

 

IL - Considero hoje a Internet como sendo a GRANDE  ENCICLOPÉDIA, a GRANDE BIBLIOTECA. Consulto-a com freqüência: história, mitologia, religião, psicanálise, literatura, música, tudo, tudo, nunca deixei de encontrar o que procurava ou o que eu precisava saber, ler, entender. O meu conhecimento de línguas facilita-me muito, tenho certeza absoluta de que devo muito a Internet, ela me é imprescindível.

 

 

RL - Prefere prosa ou poesia?

 

IL - Já externei minha opinião, de certo modo, sobre isso. Prefiro escrever prosa, sem dúvida alguma, mas gosto da leitura da poesia e posso acrescentar que uma das minhas paixões é a leitura da peça teatral, talvez seja o que mais aprecio.

 

RL - Qual o mote que o acompanha pela vida? Fale sobre.

 

IL - A expressão da verdade, a falta de receio de dizer o que penso. Não abro mão disso. É evidente que o perigo reside em ultrapassar a linha da educação, do bom senso, e até mesmo da humildade, é preciso pensar bem antes de falar, ninguém é dono da verdade. Mas essa minha maneira de ser não me assusta, a ética me comanda.

 

 

RL - Por que o crime lhe fascina tanto?

 

IL - Por que o crime representa o que há de pior no ser humano. O homem é o único ser vivo que mata seu semelhante sem motivo aceitável (nos meus romances o castigo merecido se faz presente sempre). Essa faceta do homem é assustadora. Eu já passei por situação em que eu tinha certeza absoluta de que seria capaz de tirar a vida do meu semelhante. O homem é um bicho incompreensível. Mata na guerra e recebe medalha, mata por fome e é condenado à morte. A condição humana é uma maldição.

 

 

 
 
abril, 2007
 
 
 
 
 
 

Iosif Landau (Bucareste/Romênia, 30/04/1924 – Rio de Janeiro/RJ, 14/08/2009). Veio para o Brasil em 1940. Formou-se em engenharia, casou-se com Lia, em 1950, e teve quatro filhos — Luiz, Sérgio, Roberto e Elena. Aposentou-se e começou a escrever aos 70 anos de idade. Publicou onze livros, entre eles, Comissário Alfredo (Rio de Janeiro: Editora Record, 1995); Os Anjos Também Morrem (Rio de Janeiro, Editora Altos da Glória, 1997); Eles, Eu, Outros (Rio de Janeiro: Papel & Virtual Editora, 1999); Confissões (Rio de Janeiro, Papel & Virtual Editora, 2001); Memória Tumultuada (Rio de Janeiro: Papel & Virtual Editora, 2002); Abelardo e Outros Contos (Rio de Janeiro: Papel & Virtual Editora, 2004); O Diabo Vestia Seda (Rio de Janeiro: Publit Editora, 2006). Participou da antologia Crime Feito em Casa — Contos Policiais Brasileiros, organizada por Flávio Moreira da Costa (Rio de Janeiro: Editora Record, 2005). Sob o pseudônimo de Dominique Lotte, foi uma das Escritoras Suicidas. Seu site: www.iosiflandau.com

 

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Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.