Leila Guenther nasceu em Blumenau (SC) e tem ascendência alemã e japonesa. Mudou-se com a família para São Paulo, onde cursou Letras na USP (português e russo). O interesse por histórias e livros vem desde a infância, estimulada pelo pai. Agora, ao completar 30 anos, reúne a produção dos últimos dez e apresenta 34 contos em linguagem "contida e elegante", numa "escrita precisa" que não exibe "pirotecnia narrativa", conforme aponta o texto de apresentação do volume. Leila já havia publicado em jornais e revistas literárias, como aqui na Germina Literatura, mas em O vôo noturno das galinhas (Ateliê, SP, 2006) é possível apreciar um conjunto significativo do seu trabalho, que evidencia "coerência estilística" e delicada sensibilidade, com passagens de rara poesia: "Então parti um pedaço ainda maior, com pão e queijo, e o depositei na palma de minha mão: ele comeu dela, lambendo minha linha da vida." (pág.47).

 

 

 

 

 

 

Ricardo Lima: Qual seu primeiro contato com a literatura? Quando começou a escrever?

 

Leila Guenther: Devo esse contato com a literatura a meu pai, que veio de uma família de gente muito simples, sem conhecimento formal, mas que tinha o hábito da leitura. Liam desde a Bíblia até revistas científicas alemãs. Assim, por influência de meu pai, comecei a ler bastante cedo, como uma espécie de brincadeira que mexia com minha imaginação. Lembro-me de ter em casa livros de fábulas, de adaptações para crianças de clássicos da literatura e tantos outros que passaram pelo meu "baú" de brinquedos. Escrever também começou de forma lúdica. Fazia "livrinhos" com histórias e desenhos, punha capa, tentava criar histórias que reproduzissem uma época da vida de alguém integralmente, em "tempo real", escrevia sobre lugares aonde nunca tinha ido...

 

 

RL: Você se considera uma contista ou pretende experimentar outros gêneros, como poesia, romance, ensaio?

 

LG: Gosto de trabalhar com a forma breve, concentrada, do conto, mas não excluo a possibilidade de me arriscar, algum dia, no romance. Mas acho que não me atreveria no campo da poesia.

 

 

 

RL: Quais livros ou autores você acredita terem sido importantes para a sua formação

 

LG: Aqueles depois dos quais a vida de alguém não é mais a mesma, mesmo que não se consiga definir o motivo, por exemplo: O Estrangeiro, de Camus, Memórias do Subsolo, de Dostoiévski, Coração das Trevas, de Conrad, O Vermelho e o Negro, de Stendhal, diversos contos de Kafka, de Tchékhov e de Clarice Lispector, O amante, de Marguerite Duras, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado, O Jogo da Amarelinha, de Cortázar, e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.

 

 

RL: Hoje há um grande número de publicações impressas e na internet dedicadas à literatura. Você acha que isso confunde o leitor? Formam-se guetos literários? Ou a diversidade aumenta e com isso a qualidade aparece?

 

LG: Penso que o gosto é algo que se forma por amostragem, por comparação com outras coisas. O leitor tem a ganhar com o alto número de publicações, pois poderá selecionar o que de fato lhe agrada e conhecer o que não suspeitava que existisse. E a probabilidade de surgirem, digamos, 3 bons escritores entre 100 que sejam publicados é maior do que se apenas se publicassem 50 deles. Assim, quanto maior o espaço para publicação, seja impresso ou virtual, melhor para o leitor e para a literatura.

 

 

RL: Muitos autores, principalmente da nova geração, são criticados pelo excesso de autopromoção e exposição na mídia, já que a reclusão e o anonimato têm sido, tradicionalmente, a opção do escritor. Por outro lado, esses títulos geralmente publicados por pequenas editoras têm conquistado espaço nos grandes veículos de comunicação. O que você acha dessa dualidade na vida do escritor: exposição versus reclusão?

 

LG: Grande parte dos leitores se interessa primeiro pela figura dos escritores, antes de se interessar pelo que eles escrevem. Daí que a exposição, o marketing pessoal, possa ajudar a divulgar o livro, mas não o tornará melhor do que ele é. O que conta é a obra. Pelos menos para leitores como eu, que não têm curiosidade em saber se Tolstói usava barba ou não. Há, também, por outro lado, o fato de que muita gente faz a divulgação da obra melhor do que a própria editora pode fazer, enfim, gente que tem desenvoltura com assuntos práticos. É de admirar, principalmente por quem não tem a menor capacidade de lidar com coisas dessa ordem.

 

 

RL: Afeita ou não à exposição, ela agora se faz necessária, já que você está publicando seu primeiro livro. Aos trinta anos de idade, vinte anos depois das primeiras historinhas que começou a contar lá na infância, você reúne 34 contos curtos para esse volume. Como é a sua produção literária? Você escreve muito? Com qual freqüência? Reescreve muito?

 

LG: Escrevo pouco. Se pensarmos que este livro, que demorou dez anos para tomar a forma definitiva, tem apenas 100 páginas, vamos chegar a essa conclusão mesmo. Talvez porque eu passe muito tempo reescrevendo, depurando, às vezes até não sobrar nada, conto algum. Alie-se a isso o fato de eu escrever quando acho que vale a pena desenvolver uma idéia que me veio à cabeça. Escrever, para mim, é difícil, tormentoso, imprevisível: com freqüência penso que nunca mais serei capaz de uma linha.

 

 

RL: O que a leva a escrever?

 

LG: Uma necessidade de expressão, não necessariamente de comunicação, que me faz sentir que estou viva.

 

 

RL: O que chama atenção no "O Vôo Noturno das Galinhas" é a "coerência estilística" reforçando a unidade do livro, conforme salienta o texto de apresentação. A linguagem contida e as narrativas breves também aparecem como marcas nessa coletânea. Você acredita já ter definido uma linguagem ou um estilo para seu texto?

 

LG: Não. Quando se trata de escrever, nada é definitivo, acabado. Se fosse, eu não precisaria escrever um segundo conto. Essa insatisfação é parte do processo e mesmo do resultado: não escrevo necessariamente o que quero, mas o que posso.

 

 

RL: Quem selecionou os contos? Qual foi o critério para ordená-los no volume?

 

LG: Fiz a seleção e tentei ordená-los de modo que pudessem exprimir uma trajetória que fosse da opressão, do sufocamento, à libertação.

 

 

RL: Ficaram muitos contos na gaveta?

 

LG: Uns oito, talvez.

 

 

RL: Qual conto você mais gosta ou considera mais representativo desse livro? Por quê?

 

LG: O conto "No caminho do cisne", em que se encontra o divino por meio do contato com o mais telúrico, e o conto "A fera", no qual o ser humano se mostra tão afastado do ser humano que não é mais capaz de identificá-lo, exploram uma idéia que não me abandona, e que está eternizada no conto "Da salvação pelas obras", de Borges: a mesma espécie capaz de atrocidades de toda ordem, de destruir, é também capaz de criar o que há de mais belo e significativo, a arte.

 

 

RL: Você tem escrito depois da preparação desse volume? O que mudou e o que tem se acentuado na sua produção mais recente?

 

LG: Tenho alguns contos começados e um esboço de romance, mas ainda não consigo avaliar o que mudou.

 

 

RL: Arrisco dizer que seus contos me deixaram a impressão de serem povoados por personagens impossibilitados de mudanças, como se a aceitação dos pequenos acontecimentos do mundo não fosse uma ação passiva, complacente, mas antes de contemplação. Quase sempre são dois personagens e os conflitos da convivência permeiam todo o livro. Você vê isso como uma análise ou uma leitura da casa, da família? Ou como uma metáfora para uma visão dos conflitos do homem, da humanidade?

 

LG: Vejo mais como uma representação das relações humanas como um todo, no sentido de lidar com o outro. E isso se relaciona ao que você disse: a constatação de realidades que nem sempre podem ser mudadas. Trata-se de reconhecer não apenas os limites do outro, mas nossas próprias limitações.

 

 

RL: Outro aspecto que me chamou a atenção é a projeção que alguns personagens fazem sobre outros, outras pessoas, outras vidas, como nos contos "Os Vivos" e "Às escuras" (no trecho da página 90). Chegam ao ponto de não se reconhecerem, como no conto "Esquecida". Ou apresentam dificuldade para discernir o real do sonho, como nos contos "Morfina" e "Perdido o lenho". Você isso como um reforço para distorcer a imagem do ambiente doméstico, aparentemente calmo e sereno?

 

LG: É, antes, uma maneira de representar a estranheza e o inusitado que podem advir das coisas mais banais. Nesse sentido, como você mencionou na questão anterior, o ambiente doméstico é um índice de tal banalidade, do cotidiano, onde algo simples acaba por provocar uma ruptura de tal ordem que põe em xeque até as noções de sujeito e objeto dos personagens.

 

 

RL: Com exceção dos contos "Outro" e "Jogo", os textos não apresentam desfechos inusitados, surpreendentes. Você vê isso como uma característica sua ou uma tendência para esse tipo de narrativa?

 

LG: Acho que o conto, especialmente a partir de Tchékhov, consolidou-se como um gênero bastante versátil, permitindo inúmeras realizações, como a que leva a um final aberto, sem apresentar desfecho, por exemplo, ao contrário de necessariamente caminhar em direção a uma solução. Tento deslocar a atenção do que há ali de relevante para o que está apagado, sem superestimar o que poderia ser o motivo desencadeador da história. Por isso muitas vezes a impressão final de que "nada aconteceu".

 

 

RL: Por que publicar pela Ateliê Editorial? Como foi essa experiência?

 

LG: O Plinio Martins, além de ser um editor cuidadoso, apaixonado por livros, inclusive como objeto mesmo (basta ver que muitas de suas publicações têm como tema a própria feitura do livro), tem demonstrado bastante interesse por escritores iniciantes e respeito por eles: chegou a fazer comentários sobre partes de meus contos que julgou obscuras, na segunda vez que os leu. Não acho que tal prática seja muito comum entre os editores.

 

 

 

 

agosto, 2006

 

 

 

 

 

 

 

 

Leila Guenther nasceu em 1976, em Blumenau, Santa Catarina. Formou-se em Letras pela Universidade de São Paulo e atualmente trabalha como revisora de texto em Campinas, São Paulo, onde reside. Publicações: o livro O Vôo Noturno das Galinhas (São Paulo: Ateliê Editorial, 2006), além de contos publicados em revistas e jornais de literatura. Com Paulo Franchetti, contribuiu com um conto para o livro Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (São Paulo: Garamond, 2006) e realizou a edição comentada de Iracema, de José de Alencar (São Paulo: Ateliê Editorial, 2006). 

 

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Ricardo Lima nasceu em Jardinópolis (SP), em 17 de novembro de 1966. É poeta e jornalista. Sobrevive em Campinas e vive em Morungaba (SP). Publicou Primeiro segundo (São Paulo: Arte Pau-Brasil, 1994),  Chave de ferrugem (São Paulo: Nankin, 1999) e Cinza ensolarada (Rio de Janeiro: Azougue, 2003).  Em breve,  sai,  pela Azougue Editorial, seu livro Impuro silêncio. Mais em Crítica&Companhia.

 

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