Rodrigo de Souza Leão - Lucilene, você escreveu o livro Claricianas, com o Edgar César Nolasco. Como é escrever a quatro mãos? Como foi esta parceria?

 

Lucilene Machado - Foi um processo semelhante ao de escrever a duas mãos, já que escrevemos separadamente e só vimos o texto um do outro no final. Cada um criou sua própria estrutura textual e, mesmo escrevendo textos cujo objetivo era dialogar com o "eu" clariciano, cada um de nós manteve sua matriz literária. Eu explorei mais o lado existencial, usando uma linguagem intimista, lírica e impregnada de imagens poéticas. O Edgar escreveu narrativas em terceira pessoa, que terminam sempre de forma imprevisíveis, atestando sua capacidade de ironia e seu poder de observação. São metáforas complexas, que traduzem absurdos provenientes da incomunicabilidade e de pequenas perversidades humanas. Fica explícita uma interação entre o meu texto e o dele, mas nada foi previamente combinado.

 

 

RL - Qual a importância de Clarice hoje?

 

LM - Eu começaria respondendo com uma outra pergunta: qual a importância da literatura hoje? Depende de quem lê, e para que lê. Para um professor ou um estudioso de literatura Clarice é imprescindível, até para se entender a literatura contemporânea. Um leitor comum pode viver muito bem sem ler Clarice, um não-leitor pode sobreviver sem ler qualquer outra literatura. Daí que a importância dela está associada à condição do leitor. Clarice torna-se importante à medida que a literatura torna-se importante.

 

 

RL - Como é se dedicar ao estudo acadêmico no Brasil?

 

LM - Embora a produção científica literária tenha alcançado grandes êxitos nas últimas décadas, ainda se faz necessária, e urgente, uma política de apoio ao pesquisador que precisa trabalhar e estudar ao mesmo tempo e que, diante dos muitos obstáculos, desiste. Seria preciso uma ação cultural de grande escala, para que os professores universitários pudessem vislumbrar uma vida intelectual e fizessem dela o seu objetivo. Isso é muito triste, porque interfere no próprio ambiente escolar brasileiro que, diga-se, é baixo, ignóbil, às vezes constrangedor. É um ciclo, do qual não temos esperança de sair tão cedo. A instrumentalização  de uma política intelectual ou cultural é irrisória sem contar que, à medida que os envolvidos nesse processo vão empobrecendo intelectualmente, menos se dão conta da falta dessa política, menos se cobram e se acomodam na falta de esperança por uma formação melhor.

 

 

RL - Quem é o escritor brasileiro hoje?

 

LM - É aquele que prima por uma literatura de fácil assimilação, como o Paulo Coelho, Luis Fernando Verissimo, Arnaldo Jabor,  Frei Betto,  Leonardo Boff, Lya Fuft e outros, que não exigem um leitor com uma formação erudita. Sou professora em um curso de Letras e quando sugiro obras como as de Raduan Nassar,  Silviano Santiago e Autran Dourado, por exemplo, há sempre reclamações. A maioria lê apenas o resumo e a orelha. E não há professor que eu conheça que não passe por isso e não acabe se acomodando a essa situação, como se fosse natural e inevitável. Se considerarmos que esses acadêmicos é que irão para a escola formar leitores, a situação é constrangedora. No ensino médio, a  maioria dos alunos nunca ouviu falar em Dostoievski, Miguel de Cervantes, Tolstoi, James Joyce, Shakespeare, Goethe, Fernando Pessoa, Proust, tampouco de Homero, Dante, Virgílio. Muito menos ainda, de Aristóteles e Platão. Daí que o escritor brasileiro precisa sobreviver, e como sobreviver em um país de leituras tão limitadas?

 

 

RL - Além de Clarice, quais são suas influências?

 

LM - Tudo são influências. O texto literário é um palimpsesto. Posso dizer que sou profundamente influenciada por toda a arte que me rodeia. O cinema, por exemplo, exerce grande influencia na estrutura dos meus textos, mas honestamente eu não saberia responder essa pergunta com precisão. É mais fácil perceber isso no texto alheio. Por exemplo, acho o Flaubert maravilhoso, mas não vejo nenhum traço dele na minha escrita. Guimarães Rosa é minha referência de narrativa perfeita, mas jamais ousaria imitá-lo. James Joyce é fantástico, mas me é inalcançável. Talvez minha maior influência, além de Clarice, seja a poesia. Li muito mais poesia que qualquer outro gênero. Creio que por conta disso meu texto é composto por frases curtas, com pouca subordinação e o uso de figuras de linguagens comuns à poesia, o que me credita um determinado estilo, penso.

 

 

RL - Qual a importância de Clarice para a Literatura Brasileira?

 

LM - Embora não tenha sido intenção dela modificar qualquer coisa no mundo, ela modifica alguma coisa no cenário brasileiro e, quiçá, fora dele. Jorge Luis Borges em sua obra Atlas, publicada postumamente, relata o seguinte: "A uns trezentos ou quatrocentos metros da Pirâmide, inclinei-me, peguei um punhado de areia, deixei-o cair silenciosamente um pouco mais à frente e disse em voz baixa: - Estou modificando o Saara". Clarice, à maneira de Borges, silenciosamente, modificou nossa concepção de literatura. Foi uma escritora que emprestou sua voz a cada um de seus personagens, uma voz única, estranha e singular, que irá percorrer o longo caminho traçado por ela, que vai desde Perto do Coração Selvagem até Um Sopro de Vida. Por esta e muitas outras razões que permeiam sua obra, a literatura brasileira ficou dividida em duas partes, a literatura AC (antes de Clarice) e DC (depois de Clarice).

 

 

RL - Existe escrita feminina?

 

LM - Vejo essa pergunta perigosamente próxima à discriminação. Acredito na confusão dos gêneros e a pratico. Clarice escreveu A Hora da Estrela, a partir de um olhar masculino. Daí que sou contra os discursos totalizantes. Também rejeito o pressuposto da crítica literária que identifica a escrita feminina como a "sensibilidade contemplativa", a "linguagem imaginativa" etc., ou que temos uma escrita feminina por conta da biologia, psicanálise ou outros fatores que nos diferenciam dos homens. Em contrapartida, creio em uma identidade feminina enquanto experiência coletiva. A idéia do desenvolvimento de uma arqueologia literária que resgate os trabalhos das mulheres - de diversas formas silenciados ou excluídos da história da literatura -, me parece bastante coerente.

 

 

RL - Como a internet influencia o seu trabalho?

 

LM - Hoje, talvez não muito, já que parti para a escrita de textos mais longos, que fogem dos moldes digitais. Mas a internet possibilitou ampliar o horizonte da minha comunicação, por meio de um diálogo muito freqüente com o leitor. Na maioria das vezes não é um diálogo que se aprofunde, mas que mantém o vínculo e isso, de alguma maneira, é estimulante.

 

 

RL - Por que escreve?

 

LM - Não sei se há explicação para isso. Creio que para me organizar. Tenho os pensamentos desorganizados, fragmentados, descosidos... uma espécie de caos que gera uma necessidade quase orgânica de escrever, sobretudo, para saber quem sou, o que eu penso... é uma loucura, eu sei. Mas não é uma loucura insensata. Não. Sei que vou escrever porque há em mim uma necessidade inexplicável de escrever, e isso é lucidez das mais completas, que conforta, inclusive.

 

 

RL - Não é um peso muito grande escrever sob a égide de Clarice?

 

LM - Penso que se eu tivesse de escrever outros livros afinados com a obra de Clarice, provavelmente eu sentiria certo desconforto. Mas escrever o Claricianas foi um exercício muito prazeroso. Claro que eu tive a preocupação e o cuidado de não elaborar frases caricaturadas, que pudessem deformar  o pensamento de Clarice, ou fazer uma interpretação ácida de sua obra. Mas em nenhum momento senti a obrigação de escrever igual a ela, de ter a mesma qualidade, perspicácia, ou qualquer coisa assim. O que eu fiz (ou fizemos) foi uma singela homenagem. Servimo-nos de uma identificação já existente, para produzir um livro, cujo objetivo é  chamar a atenção para a própria obra clariciana, no ano que marca os 30 anos de sua morte.

 

 

RL - Tem alguma frase que goste mais dentro da obra de Clarice? Cite-a e fale sobre ela.

 

LM - Há muitas. Vou dizer uma da qual me lembro agora: "O tempo é de grande violência. E as pessoas são distraídas, não sabem que só têm uma vida". É uma frase pensada para as pessoas que se preocupam com tudo, menos com o ato de viver. E viver, para Clarice, é arriscar-se e acreditar, mesmo com dor, na veracidade do sonho.

 

 

RL - Qual o papel do escritor na sociedade?

 

LM - É simplesmente o de escrever, explorar a humanidade de modo honesto e belo tanto quanto possível, tentando mostrar o mundo e o homem ao próprio homem. Eventualmente, alguns podem ter um projeto ideológico e militar no terreno social, defender valores morais, políticos, mas não é necessariamente este o papel do escritor. Literatura é arte e o único compromisso da arte é com o belo que, para Platão é o bem, a verdade, a perfeição. Penso que o escritor deve ter a liberdade de estar integrado ou não em um determinado contexto histórico-social, ou simplesmente se ater à sua estética. A obra, por si só, já vai cumprir o papel que lhe é peculiar.

 

 

 
 
dezembro, 2007
 
 
 
 
 
 

Lucilene Machado é professora universitária e também atua como pesquisadora da Literatura Sul-Mato-Grossense no do Instituto Histórico Geográfico-MS. É mestra em Estudos Literários pela UFMS, tendo como objeto de estudo as amizades literárias de Clarice Lispector.  Foi bolsista da Agencia Española de Cooperación Internacional-AECI, pela Universidade Complutense de Madrid. Publicou Plântula (poesia, 1998); O gato pernóstico (literatura infantil, 1999); Fio de saliva (contos, 2004); Claricianas (minibiografias ficcionais, em parceria com Edgar César Nolasco, 2006). É membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras e da Federação de Academias de Mato Grosso do Sul. Foi cronista por seis anos no Jornal Correio do Estado, de Mato Grosso do Sul. Tem textos publicados na Espanha, Itália, Venezuela e Portugal.

 

 
 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século - Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái - Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.