Rodrigo Leão - Sérgio Medeiros, você se considera um escritor surrealista? Qual a sua relação com o surrealismo?

 

Sérgio Medeiros - Motivado por sua pergunta, comecei a ler o ensaio que César Aira dedicou à grande poeta argentina Alejandra Pizarnik, que, segundo ele, "vivió y leyó y escribió en la estela del surrealismo". Logo voltarei a falar de Pizarnik, porque seu caso é exemplar para mim, neste momento. Nunca me considerei, porém, um escritor surrealista, mas estou consciente de que alguns leitores me vêem assim. Diante disso, parece legítimo que eu, a partir de agora, e sempre estimulado pelos meus leitores, comece a ostentar a minha filiação surrealista.

 

Mas o fato é que, espontaneamente, não me sinto um seguidor de Breton — insisto no "espontaneamente". Talvez eu esteja enganado, visto que os pais fundadores do surrealismo (por exemplo, Lautréamont, Rimbaud, Jarry) são também os pais da poesia niilista do século XX e, por isso, ainda referências vivas, neste início de século XXI, de modo que, por meio de suas obras, absorvemos de alguma maneira também o surrealismo. Minha escrita é sempre uma sucessão de visões que parecem recriar ou sugerir uma alucinação, como se a paisagem e os seres se desfizessem em numerosas cenas instáveis e contraditórias, que passam velozes na página, sem compor um todo. Talvez eu seja um praticante da "écriture du désastre", que, segundo Blanchot, consiste em despedaçar o que nunca existiu, real ou ideologicamente, como conjunto fechado, e que como tal tampouco poderá subsistir no futuro. Despedaçar o despedaçado é a minha motivação, o meu método, e o meu poema, acredito, aspira a chegar a uma não-soma, quer compor um desastre, realmente, de modo que o texto, quase sempre uma descrição, se torna um pedaço disperso que não provém de um todo preexistente nem alcançará o todo utópico. Encontro em Wallace Stevens, um poeta que admiro muito, aquilo que almejo oferecer ao leitor: "In the sum of the parts, there are only the parts".

 

Voltando, porém, ao caso de Pizarnik, gostaria de lembrar que o livro favorito dessa autora argentina, que se suicidou aos 36 anos em 1972, era Nadja, de Breton, a mesma Nadja que deu origem a Rayuela, de Cortázar. Bem, acredito que toda obra surrealista escrita contemporaneamente, em qualquer parte do mundo, deva ser um comentário quase explícito a Nadja, que narra o encontro casual do narrador com uma estranha numa rua da metrópole. Li uma vez esse livro, mas hoje não tenho certeza realmente se lhe presto algum tipo de homenagem em tudo o que escrevo. Acredito sinceramente que não. Mas isso não quer dizer nada. Talvez nós brasileiros, ao contrário dos argentinos, não saibamos ainda reconhecer nossa dívida para com Breton. A menos que essa dívida não exista! Quando escrevemos algo, não sabemos no fundo a quem estamos homenageando. Ou melhor, sabemos, mas podemos estar enganados. Eu, por exemplo, quando escrevo, acho que presto homenagem ao gótico de Gregory Lewis e Poe, ao nonsense de Carroll e Lear e ao dadaísmo de Tzara e Cage. E através de Cage, sei que estou inevitavelmente homenageando Satie e Duchamp, assim como o I Ching. Posso estar equivocado. Desconfio que homenageio também a música moderna, a de Cage, certamente, mas também a de Olivier Messiaen. Acredito que meu segundo livro, Alongamento, de 2004, tenha a feição das composições de Messiaen, ou mais especificamente traga a marca da sua inconfundível mistura de sons naturais (o vento, os pássaros) com música ocidental e oriental, daí a imprevisibilidade rítmica, que é tão irritante quanto fascinante. Um caos musical que vai do ralo ao espesso, da grande orquestra à nota frugal. Percebo a influência das composições musicais e verbais de Cage mais claramente no meu primeiro livro, Mais ou menos do que dois, de 2001. Este livro, como vou explicar, nasceu do sonho de plagiar Cage, mais especificamente  Empty words, um dos seus livros  mais radicais. Esse desejo de fazer um plágio se firmou depois que me senti incapaz de traduzir tal livro para o português. Quando não podemos traduzir um livro, só nos resta plagiá-lo. O ideal, parece-me, é fazer um texto, possivelmente novo, que seja ao mesmo tempo tradução, plágio e obra pessoal. Mas isso talvez só consigamos fazer plenamente na maturidade, não no início da carreira.

 

 

RL - Toda a metáfora tem um quê de surrealismo?

 

SM - Sei, como todo mundo, que a poesia surrealista é visual por natureza. Mas outras poesias, ocidentais e orientais, também o são. Lembro que um dos meus poemas favoritos é, como não poderia deixar de ser, "In a station of the metro", uma breve composição imagista de Ezra Pound que diz: "The apparition of these faces in the crowd:/ Petals on a wet, black bough". Eu gosto da primeira versão, a de 1913, que  se estrutura sobre grandes pausas entre palavras e sinais. Essas pausas me seduzem, assim como a imagem que nasce da associação de certos rostos na multidão com pétalas num galho escuro e úmido. Freqüentemente escrevo poemas que seguem mais ou menos esse modelo, mas, muitas vezes, em vez de pausas entre as palavras, uso traços, hífens, pontos, para sugerir um texto "riscado", um texto manuscrito — pois escrevo meus textos à mão, e eles estão vazados em diferentes letras (apressada, grande, pequena, suja, ilegível), letras e traços. Um exemplo de recriação do manuscrito: "— luz enfaixada: //; manhã estremecida:/// a brisa descola as barras moles — elas vêm e vão: // //:/ (mumificação)/". Esses "rabiscos" acabam também sendo, é óbvio, uma metáfora gráfica do objeto descrito — as barras da persiana de uma janela.

 

Bem, nos meus textos, busco sempre reproduzir verbalmente as imagens que vejo de olhos abertos e, ultimamente, também passei a desenhar de olhos fechados o que apenas posso sentir ou tocar com os dedos. Gostaria de explicar melhor esse método híbrido de composição, que me permite não só escrever o que escrevo, mas também, ao que parece, dialogar com o desenho onírico, a imagem surrealista.   

 

De 2001 para cá tenho anotado em pequenos cadernos, diariamente, as imagens interessantes, inusitadas ou terríveis que percebo ao meu redor. São coisas pequenas, médias ou grandiosas. São coisas que me divertem, alegram, surpreendem ou assustam. Percebo que o mundo tem uma dimensão gótica, outras vezes uma dimensão paradisíaca ou vazia, banal. Então vou anotando todos os dias o que vejo, mas vejo sempre duas coisas, nunca uma só. Um exemplo: "barco, verme na borda duma folha escura". Nesse verso breve, que chamo de "descrito", apresento o mar, ou uma baía ao anoitecer, como uma imensa folha escura, seca. Ou seja, nesse "descrito", vi o mar e a folha simultaneamente, o molhado e o seco, como duas faces da mesma moeda.

 

Ultimamente, comecei a desenhar de maneira mais ou menos sistemática. Sempre gostei de desenhar e me considero bom desenhista. Essa é a minha maior ilusão. O meu livro Alongamento traz na capa um desenho meu. Num poema sobre poetas e pintores, mártires ambos, a norte-americana Emily Dickinson fala de "conscious fingers". Meus dedos são "dedos conscientes" quando fecho os olhos para desenhar. Toco algo com a mão e depois reproduzo a sensação, mas todo esse processo deve ser feito de olhos fechados. É um ritual interessante, muito estimulante. A minha musa — pois tenho uma — permanece junto de mim, velando meu sono simulado. Não sei se este ritual é um ritual surrealista, dadaísta, indígena ou xamanístico. Mas é dessa maneira que consigo fazer meus melhores desenhos. Desenhar de olhos fechados é, acredito, ter dedos plenamente conscientes.

 

Tenho alguns livros inéditos, um deles intitulado Meteoros mecânicos: ele reúne textos e desenhos ao longo de suas páginas. É uma homenagem a Memórias póstumas de Brás Cubas, um livro excêntrico que utiliza também desenhos, sinais, e não só letras e frases. Acredito sinceramente que a poesia brasileira tem dois marcos, esse livro do Machado de Assis, e o épico O Guesa, de Sousândrade, que reinventou o macarrônico e o mito ameríndio. Ainda escreverei um livro para homenagear Sousândrade e seu épico. Sousândrade é poeta que consigo ler muito pouco — de tão avançado que é. Daí minha admiração por ele. Não há nada igual na poesia épica brasileira. Assim como não há nada igual a Camões na poesia épica portuguesa — eu o homenageio, aliás, no meu livro inédito Multiplicação/Heráclito.

 

 

 

 

RL - O que a vida acadêmica deu ao poeta que você é?

 

SM - A locução "vida acadêmica" significa para mim uma experiência importante ou decisiva, pois, para ingressar na "vida acadêmica", tive de me mudar subitamente para uma cidade até então desconhecida. Uma cidade não escolhida, mas que logo se tornou "a cidade escolhida" desde sempre. Foi de fato o que se deu comigo. Eu estava em São Paulo, recém-chegado da França, traduzindo e escrevendo para jornais e editoras, então de repente me mudei para uma ilha, com a perspectiva de iniciar uma nova vida e, possivelmente, para ficar ali por longos anos, ensinando e pesquisando na universidade local. Isso é "vida acadêmica" para mim — um deslocamento, uma errância, processo que implica compartilhar o que se tem ou sabe com estranhos. Pelo menos no início, a errância foi a marca dessa fase das minha vida. Ou tem sido sempre, já que o grupo a que me dirijo se renova a cada semestre. Então a "vida acadêmica" (estou talvez falando do "início" da "vida acadêmica", ou propondo um paradigma local) deu-me uma cidade, a cidade que eu escolhi, finalmente. E deu-me, em seguida, meus imprescindíveis cúmplices, entre eles, a musa, inicialmente só leitora, hoje co-autora. Conquistei na universidade onde trabalho a minha musa. Não acredito que uma musa, ou a musa tal como eu a imagino, possa ser encontrada fora das universidades. Elas só existem ali, no campus. Não tenho a menor dúvida. Mas falo do meu caso pessoal, e acrescento que a musa verdadeira é única, por isso não preciso nem quero outra musa, assim jamais saberei se de fato existem outras musas na universidade. Como a "vida acadêmica" é também o lugar do mito, do mito clássico e do mito ameríndio, nada mais natural do que topar com musas nesses lugares privilegiados, onde se dão encontros sobrenaturais que podem decidir uma vida.

 

A pesquisa, que é um elemento importante da vida acadêmica, me abriu muitas portas. Eu sempre quis estudar e, possivelmente, traduzir a cosmogonia maia-quiché Popol Vuh. Bem, a vida acadêmica me deu essa oportunidade. Num estágio de pós-doutorado em 2001-2001, passei uma temporada na Califórnia, estudando e traduzindo esse livro, com a assistência técnica de um grande erudito e conhecedor das culturas pré-colombianas, Gordon Brotherston. Num volume de 480, o meu Popol Vuh (digo "meu" porque encontro nele a minha própria voz como poeta) sairá em breve pela editora Iluminuras de São Paulo. Esse Popol Vuh é o meu terceiro livro de poesia, se o termo poesia significa, como acredito, o encontro sobrenatural de coisas díspares.   

 

 

RL - Você se diz um poeta do século XXI. Por quê?

 

SM - No século XX eu tinha muitas dúvidas e muita preguiça (à falta de palavra melhor), por isso relutava em escrever. No século XXI a preguiça (ou a falta de força de vontade) desapareceu completamente, embora as dúvidas tenham aumentado. Permita-me explicar isso. Essa preguiça que me acabrunhou no século XX tinha a ver com uma dificuldade de decidir como ou por onde começar (fazer, por exemplo, arte verbovisual?, cinema?). Eu não conseguia nunca tomar uma decisão (desenhar ou escrever o quê?, prosa, poesia?), então me vinha aquela sensação de quem está desestimulado ou cansado e deixou o assunto para mais tarde, como se já soubesse de antemão que o caso é momentaneamente sem solução. Deixei o assunto para o século XXI, que estava logo ali na frente. Então me aconteceu algo: o fim da preguiça e o início da prática da escrita obsessiva, diária. A escrita obsessiva até me faz esquecer de minhas dúvidas por alguns momentos. Pois ela me toma muito tempo.

 

Agora, como poeta, como escritor, me exerci muito, me preparei muito no século XX, traduzindo autores do século XIX, talvez o meu século favorito, quando o assunto é selecionar textos para traduzir para o português, um grande século para a literatura, sem dúvida, já que nele Mallarmé escreveu, por exemplo, o verso mais deslumbrante de todos: "Calme bloc ici-bas chu d'um désastre obscur", uma das definições possíveis de monumento, de obra literária. (Quando o assunto é música ou artes plásticas, o meu século, o século mais atraente, é sobretudo o XX, parece-me.) Traduzi, por exemplo, uma novela que Gustave Flaubert escreveu aos 20 anos de idade, intitulada Novembro. Incluí na edição brasileira, que saiu pela Iluminuras, a tradução de algumas cartas de Flaubert. Todos esses textos são extremamente imagéticos, visuais. Eu me dei conta de que gostava deles por causa disso. Hoje, percebo que foi um treino muito bom fazer essa tradução. Reproduzirei para exemplificar uma passagem (na qual percebo meu próprio padrão de imagem literária), em que o escritor afirma, numa carta enviada do Oriente Médio, que fez quinze léguas a cavalo na Ásia. A certa altura dessa narração, confessa que "Jamais esquecerei essas velhas montanhas da Bitínia, todas brancas, e da luz que as clareia, tão fria e tão imóvel que parecia artificial; nem todas aquelas aldeias que se seguiam umas às outras, tomadas barulhentas de repente pelos nossos quatro cavalos passando a toda velocidade, tocando as pedras do calçamento como um relâmpago. Depois, no lugar das pedras do calçamento, sentíamos de novo a terra sob os nossos pés". É isso que chamo de descrição, nela se insinua outra coisa, o duplo, algo que nos tira do chão, para onde fatalmente retornamos. Sim, retornamos, exceto quando somos um astronauta "émigré" consumado. Neste caso, ficamos para sempre em órbita.

  

 

RL - Qual o enigma que está por detrás do título do seu livro Alongamento?

 

SM - Por detrás desse título está a sucessão e a repetição, está Flaubert, Satie, Messiaen, Cage, mas não apenas eles. Está Tzara e também a mitologia ameríndia. Talvez haja muita coisa por detrás desse "alongamento". Esse título me foi sugerido casualmente, à maneira surrealista, para empregar um termo novo no meu vocabulário, por uma tv ligada. Como disse o filósofo Peter Sloterdijk, a tv nos informa que no fundo tudo é imagem. Como meu livro é um livro de imagens, ele poderia ter-se chamado "tv". Mas, de repente, enquanto eu pensava nisso, ou não pensava, já não me lembro direito (nada do que estou dizendo aqui é estritamente verdadeiro, no sentido biográfico; mas é verdadeiro num nível simbólico e, por isso, me satisfaz ou excita plenamente), bem, enquanto pensava nisso, no título do livro, a tv me disse por acaso "alongamento". Então falei comigo mesmo: é esse o título, o qual me foi dado, em resumo, por um aparelho ligado, uma máquina-buda, que convida à meditação. Isso disse também Sloterdijk a propósito da tv.

 

Os grafites de São Paulo, com os quais convivi muito, também me sugerem, ainda hoje, a idéia de um "alongamento" poderoso,  ou seja, os grafites no seu conjunto formam uma inscrição que se prolonga aos pedaços por toda a metrópole, infinitamente dando voltas. É um alongamento que me influenciou muito. Essa dispersão contínua.

 

Tenho milhares de anotações. Elas se proliferam diariamente. São em certo sentido grafites espalhados por um espaço imenso, o espaço da metrópole. Sou um autor perdido num emaranhado de imagens. Meu sonho é colocá-las numa ordem, numa partitura qualquer. Em suma, "alongá-las" num sentido estético, musical, medi-las, desenroscá-las... O título do meu livro alude a tudo isso e a muito mais coisas, como todo título, aliás. Sou particularmente cuidadoso na escolha de títulos.

 

 

RL - Onde mora o seu lirismo?

 

SM - Num experimentalismo ingênuo à la Erik Satie, uma fonte inesgotável de inspiração: reporto-me às suas partituras, aos seus desenhos, às suas frases nonsense.  Um partitura de Satie contém notas, frases e desenhos. Isso é um poema. Satie é um grande lírico divertido, além de profundamente revolucionário e influente, como se sabe. Praticou na aparência um pequeno terrorismo, mas de grande efeito — a repetição infinita, delicada e encantatória, a música de mobiliário, a música para não ser ouvida... O lirismo divertido é o meu modelo, na medida em que acata o pequeno terrorismo ou a experimentação cômica. Acato certas ordens que me "chegam do alto" e que me pedem para reelaborar, numa repetição sem trégua, a paisagem e os seres, por meio de seus duplos. Quando cumpro essa ordem, posso também arrancar da musa uma aprovação qualquer. Minha musa confia na minha habilidade de "descritor", ela me vê como retratista de duplos atrelados a seus objetos, à maneira de irmãos gêmeos, numa confusão que parece onírica, absurda ou surrealista.

 

O meu ato terrorista, dirigido contra a poesia, encerra uma reivindicação óbvia — também eu sou capaz de destruir o que faço, a fim de abrir espaço para ti, musa. O que tu pedes, eu faço; agora podes entrar e assumir o comando, tornar-se co-autora, ordenar meus descritos em seqüências novas para mim. É o que ela faz, muitas vezes. (Um dia, o nome de Dirce Waltrick do Amarante virá antes do meu, ou o meu desaparecerá.) O poema, como experimentalismo lírico, se repete diferente de si mesmo e tende a anular o autor, tende a abrir o texto ainda em processo para que o outro venha e insira nele o seu próprio grafite, a sua própria marca. Nesse caso, o poema, tal como eu o imagino aqui, é o encontro sobrenatural entre autor e leitor (este, representado pela musa), de modo que as fronteiras se dissolvem e surge uma categoria nova, uma possibilidade de obra conjunta, assinada por ambos, ou por um deles, o chamado "autor", mas que desde sempre está feita, ou será redecorada, por outro.

 

 

RL - Com quantas metáforas se faz um poema? A metáfora ainda é a célula fundamental da poesia?

 

SM - Depois que comecei a escrever sistematicamente poesia, me dei conta de que não me falta percepção. Você pode escrever poesia ou porque tem muita percepção ou porque não tem nenhuma. Em outras palavras, um poeta pode ver demais e ser chamado, digamos, de surrealista, ou ver de menos, ou não ver quase nada, e ser chamado, presumo, de metafísico, trágico. Eu vejo demais, abro os olhos e vejo. Nada de misticismo, esse ver demais pode ser um olhar míope, ou demasiado ingênuo, distraído. Uma ilusão feliz.

 

Nunca me debrucei seriamente sobre a metáfora, para estudar sua natureza e função no texto literário. Sei, no entanto, que o lingüista Roman Jakobson mostrou, num ensaio publicado em 1921, que a linguagem poética em sua origem implicava um procedimento elementar: a aproximação de duas unidades. Disso resultam algumas figuras: paralelismo, comparação (caso particular de paralelismo), metamorfose (comparação projetada no tempo) e metáfora (comparação elíptica, reduzida a um dos termos). Sempre me fascinou essa idéia de que existe, na poesia, um procedimento elementar, básico. Creio que isso me levou, mas não tenho certeza, a apostar na comparação. É a figura que mais aparece nos meus textos, embora eu também recorra a várias outras. Cito uns exemplos, escolhidos ao acaso:  "A onda se retira das pernas dos meninos como calça frouxa"; "—a luz se quebra/e paira como pó/sobre o Continente,/enquanto nas ilhas/caem grandes pedaços/claros". Uso a comparação "sem trégua, sem piedade", para me servir de uma locução de Pizarnik, que encontrei numa entrevista dela. Duvido, porém, que a minha opção pela comparação como ponto de partida seja uma escolha meramente deliberada. Na verdade, é assim que percebo o mundo, comparando: não consigo ver as coisas sozinhas, sempre procuro, para cada objeto, cada ser, o seu duplo, o seu irmão gêmeo, que secretamente o acompanha e que meus olhos, só os meus olhos, quando abertos, podem perceber. Mencionei atrás a folha seca e o mar úmido; no mesmo verso, o verme  que caminha na borda da folha é o duplo do barco na linha do horizonte. Esse duplo, esse gêmeo, pode ser diabólico ou angelical, liso ou áspero, lógico ou absurdo, ou tudo isso junto. Como as outras pessoas geralmente não discernem esses duplos das coisas (ou vêem outros duplos, que eu ignoro), a apresentação deles, nos meus textos, tende a oferecer ao leitor alguma coisa que não é óbvia, que não se mostra sempre. É por essa razão que os meus textos tendem, acredito, a ganhar uma aura onírica, alucinada, meio surrealista, embora eu não pratique a escrita automática. Para ver o duplo secreto das coisas, eu me exercito muito, diariamente — o olho precisa estar afiado, e a escrita, segundo acredito, deve necessariamente ser sucinta e precisa. O "eu" cai fora, a notação registra apenas o que um olho impessoal (um olho maior do que o meu olho habitual) supostamente vê/viu — ou seja, o irmão gêmeo secreto do mundo. A comparação poética significa isso para mim.

 

Um texto imagético não precisa, necessariamente, ter comparações, estar recheado de "comos". Eu consigo o mesmo efeito com outros recursos, também, fazendo uma simples descrição, por exemplo, ou recorrendo a diferentes fórmulas, sejam eles verbais ou gráficos. Alguns textos meus são mais longos, e neles emprego comparação, metamorfose e metáfora, ou simples enumeração.

 

Para ser franco, devo dizer que não sei se vejo mais, se percebo mais, quando acrescento às coisas e aos seres o seu suposto duplo, o seu irmão gêmeo ideal ou demoníaco. Talvez isso seja ver menos. Talvez isso seja simplesmente negar a realidade, o que, sugerem alguns, é em si um ato terrorista. Qual é a fronteira entre epifania joyciana, ou borgiana, e o ato terrorista? Não sei, confesso que não sei. 

 

Mas tenho outra motivação para usar hoje e sempre a comparação. Uma das minhas referências é a poesia de John Cage, um artista que quase sempre homenageio nas frases que escrevo. Por isso me sinto mais à vontade me considerando cagiano do que surrealista, já que não homenageio Breton com tanta insistência como homenageio Cage. Mas talvez isso seja só o que posso perceber de fora, como leitor de mim mesmo, e por detrás dos textos tenha algo mais. Bem, Cage criou uma poesia que admiro muito, utilizando uma forma poética geralmente considerada mero passatempo, simples jogo sem maiores conseqüências estéticas. É o mesóstico, uma variação do acróstico. Escreve-se um nome próprio na vertical e, a partir de suas letras, criam-se versos na horizontal. O nome pode estar no início dos versos (acróstico)  ou no meio (mesóstico). Ou no final. Neste caso temos um teléstico.

 

Além da imagem elaborada com o "como", existe ainda, nos meus textos, um grafismo, um corte na palavra, que é estritamente visual. Trata-se, aí, de uma homenagem à cultura pop e, mais especificamente, aos grafites de uma cidade grande como São Paulo, repleta de riscos "terroristas" sem sentido (nos meus poemas, parênteses, hífens, dois pontos, barras...), que não aspiram a passar uma mensagem, que não têm necessariamente mensagem. Então meus textos estão semeados, muitas vezes, desses sinais urbanos terroristas, como diria Baudrillard: "(...) não significam nada e usam signos vazios para atingir o absurdo". Por outro lado, essa "desconstrução violenta do significante" encerra, no meu caso, também uma homenagem a E.E. Cumings (escrevo da maneira correta o seu nome, com iniciais maiúsculas, o que é outra homenagem a esse grande poeta) e aos concretistas brasileiros. 

 

Mas, esse acréscimo, essa inscrição sobre inscrição, que cria uma escrita estranha, esfacelada, suja (como um texto manuscrito, como já mencionei), se por um lado também quer muitas vezes sugerir objetos e seres (daí homenageando Apollinaire e o caligrama), por outro lado quer também ser mero grafismo, riscos sem letras. Esse jogo, já percebi, deixa certos leitores desconcertados ou desconfiados. Quando eles não percebem a tentativa modernista de criar um caligrama, ou a representação de um tema, tendem a rejeitar o processo como arbitrário e destituído de interesse. Quero crer que esse aspecto da minha obra, a "desinscrição" da poesia modernista, não é destituída de certa motivação terrorista lírica.  

 

 

RL - Como definir ou fazer um breve panorama sobre a poesia feita no Brasil hoje?

 

SM - A poesia brasileira atual está nas revistas eletrônicas e nas revistas convencionais. Depois essa poesia irá para os livros, ou não. Mas isso está se tornando, ou vai se tornar, indiferente. O importante hoje, para ser lido, é ter os poemas em algum site. Ou em vários deles, simultaneamente. Falo em nome dos leitores de hoje, não dos críticos; talvez os críticos ainda prefiram livros de papel, não sei. Publica-se num site, faz-se depois uma seleção e lança-se um livro. Creio que é assim que a coisa funciona hoje.

 

Como todo criador, sou obrigado a me defrontar com os poetas mortos, não com os vivos (falo sobretudo dos novos, dos que estão começando a publicar no século XXI, como eu próprio) — não posso temer os meus contemporâneos (incluo aqui os velhos ainda vivos, que pouco me influenciam, exceto Augusto de Campos), os quais não posso invejar, temer ou imitar, pois não sei se são realmente bons ou importantes. Nunca saberei. Essa é a política da imortalidade. O artista tem de dar conta do além, ou seja, dos artistas mortos, dos seus predecessores. Os contemporâneos estão vivos, logo não devem preocupar muito, poderão ser mortais e não imortais. Boris Groys fez uma bela reflexão sobre isso no seu livro Política da imortalidade, ainda não traduzido para o português. Esse livro me influenciou e ainda me diverte muito.   

 

Um poema clássico que admiro é "Código", de Augusto de Campos, um autor que leio com olhos críticos, pois só assim ele me pode ser útil, e de fato é. Nesse poema, que consta só dessa palavra, que se vai fechado sobre si mesma, se enroscando numa espiral interna, vejo uma mola, um impulso que me atira para fora. Eu não quero ficar lá no fundo do código, seja ele qual for: modernista, concretista, pop... Então busco uma instalação de Ilya Kabakov (voltarei a falar dele abaixo), que me ensina como entrar no código para me lançar para fora dele, The man who flew into space from his apartment.

 

Disse que leio criticamente Augusto de Campos. A poesia dele se torna mais rica e poderosa quando recebida de modo crítico. Assim você pode reinventar o poeta, vê-lo do avesso. Por exemplo: publiquei na revista de poesia e cultura Sibila um ensaio intitulado "Os excessos contemporâneos de Augusto de Campos". Ali tento demonstrar que Augusto é essencialmente um exagerado, por isso muito mais colorido ou berrante do que o Haroldo de Campos, seu irmão, um poeta que admiro bastante e que era meu amigo. Falo nesse ensaio que ele excursiona pela junk art, arte feita de sucata, de cacarecos da indústria cultural, aderindo a uma estética francamente neobarroca (termo não muito preciso que significa um certo exagero material). O Rio de Janeiro tem Arthur Bispo do Rosario; São Paulo, Augusto de Campos. Acho os dois muito parecidos e admiro muito um e outro. Ambos são egípcios, os dois adoram pirâmides. Fico deslumbrado com os triângulos de letras, com os poemas piramidais de Augusto de Campos. Ainda vou escrever um artigo sobre isso, para completar o ensaio que mencionei. Sobre a obra de Bispo, aliás, já escrevi um ensaio ainda inédito, no qual o chamo de egípcio de Jacarepaguá. Augusto é o egípcio de Perdizes.

 

Se eu devo citar agora o nome de um poeta contemporâneo com o qual gosto de dialogar e trabalhar, Cláudio Trindade é esse poeta, um mestre do poema-objeto e do poema-design. Outro poeta muito próximo e também parceiro é Douglas Diegues, o mestre do macarrônico contemporâneo. Também tenho lido com grande interesse os relâmpagos teatrais de Dirce Waltrick do Amarante, que são peças muito breves que concentram muitas outras peças (todas as palavras são retiradas de obras canônicas da vanguarda) e criam cenas leves, que surgem e desaparecem com grande delicadeza. Ainda escreveremos juntos alguns desses relâmpagos poéticos.  

 

Eu ficarei muito honrado se puder publicar algum dia um livro com textos desses autores, incluindo no meio deles os meus. É uma idéia que estou acalentando no momento.

 

 

RL - Você tem uma musa que interfere na sua produção. Como é esta relação de interferência?

 

SM - Sim, como disse atrás, a musa é um leitor que solicita o poema e entra nele, ou passeia por ele, enquanto obra em construção, e vai deixando suas marcas, escrevendo grafites nas paredes. Gosto muito dessa idéia: a de que eu e a musa somos dois terroristas atacando o mesmo alvo, o texto. No final, o poema se torna, mas nem sempre, uma centopéia e anda com as minhas pernas e com as pernas da musa. Uma centopéia tem muitos pés, muitos acentos. Centopéia é sinônimo de poesia.

 

Por outro lado, eu persigo sistematicamente, como disse, o duplo das coisas e dos seres, por isso gosto de registrar o instante em que as coisas ou os seres se apresentam associados com seus duplos, como num espelho. Então, como autor, eu seria incompleto sem uma terceira mão ativa (que possa ordenar a seu bel prazer certas seqüências), a mão do outro ou da musa, que nada mais é do que um dos duplos do poeta (aqui entendido como aquele que escreve frases incompletas, textos inacabados).  

 

 

RL - Qual é a sua relação com Florianópolis?

 

SM - Moro numa ilha, e tenho diante de mim o Continente, que vem e vai como um monte solto na água ou no ar  — a cerração o come freqüentemente no inverno, mas também no verão. Entre mim e o Continente existe uma baía onde flutuam grafites, inscrições, traços, riscos: barcos, sombras, reflexos, peixes etc. Às vezes também fantasmas: vejo, por exemplo, o visconde de Taunay passar numa baleeira e olhar para o meu  lado, como ele costumava fazer no século XIX, quando era candidato a senador e percorria essas redondezas a cata de votos.

 

Mencionei Taunay. Venho reeditando a obra dele desde 1997, quando saiu minha tradução de A retirada da Laguna, pela Companhia das Letras. Taunay escreveu esse relato sobre a Guerra do Paraguai em francês. Eu me interesso muito pela Guerra do Paraguai. Nasci numa cidade que fica na fronteira do Brasil com o Paraguai, exatamente. Do quintal da minha casa em Bela Vista, quando eu era criança, eu via o Paraguai à minha frente como hoje, em Florianópolis, vejo o Brasil à minha frente, quando estou na minha casa na praia da Cachoeira do Bom Jesus. Eu sempre gostei de olhar para continentes e países, sempre me fascinou a idéia de estar calmamente sentado num lugar de onde posso observá-los à vontade, horas a fio. Ou seja, hoje me considero grande observador do Brasil e do Paraguai. E o visconde de Taunay foi isso também, ele observou os dois países. Ele passou por Bela Vista, onde nasci, na época da guerra, e passou por Florianópolis, onde escolhi viver. Ou seja, como eu, Taunay também examinou de fora dois países. Taunay é o meu duplo e  eu sou o duplo de Taunay.

 

 

RL - Como é a sua relação com a linguagem indígena?

 

SM - A linguagem indígena sempre me interessou, e hoje ainda mais, porque ela propicia o encontro sobrenatural com o Outro. Nela, o outro radical, ou o absolutamente outro, não paralisa, mas abre um mundo novo, o mundo dos contatos e das mesclas impossíveis. Eu comecei estudando os relatos oníricos xavantes, depois estudei a mitologia heróica jê (grupo lingüístico a que pertence o povo xavante) e, mais recentemente, venho me dedicando ao estudo da mitologia mesoamericana, em particular a maia-quiché. Em todos os mitos ameríndios a fronteira entre o humano e o não-humano é questionada ou reinventada de forma radical, surpreendente. Aprendi talvez a misturar prosa e poesia, ou todos os gêneros (teatro, roteiro, instalação), lendo esses mitos, que mesclam sem receio o humano e o animal, os deuses e as plantas. Tudo se mistura, tudo se mescla. Por isso Viveiros de Castro afirma: "Recordemos sobretudo que, se há uma noção virtualmente universal no pensamento ameríndio, é aquela de um estado de indiferenciação entre os humanos e os animais, descrito na mitologia. Os mitos são povoados de seres cuja forma, nome e comportamento misturam inextricavelmente atributos humanos e animais, em um contexto comum de intercomunicabilidade idêntico ao que define o mundo intra-humano atual".

 

O antropólogo Phillipe Descola discute em seu livro Par-delà nature et culture as cosmogonias amazônicas e mostra que elas não operam com distinções ontológicas nítidas entre os humanos, de uma parte, e espécies animais e vegetais, de outra. Temos aqui uma visão de mundo monista, ou radicalmente não dualista.

 

Eu acredito que seja possível, a exemplo disso, uma literatura monista, que não aceite mais certas distinções dualistas, como prosa e poesia. Ou original e cópia; Vejo o texto literário como o encontro sobrenatural dos contrários.      

 

 

RL - Você tem alguma influência angustiada à maneira de Harold Bloom?

 

SM - Tenho. E cometi um ato à altura dessa angústia no meu primeiro livro, que se chama sintomaticamente Mais ou menos do que dois, ao excluir o nome de Beckett de um poema e colocar ostensivamente o de Cage em outro. Agora acredito que o título do livro seja essa hesitação entre louvar Cage e apagar Beckett. Será que Beckett foi realmente apagado? Ora, ele retorna no meu segundo livro, Alongamento, na apresentação assinada por Wilson Bueno. Explico: quando minha musa leu a primeira versão de Mais ou menos do que dois, notou (como já falei) que eu havia plagiado Cage, ou tentado plagiar. Uma parte do livro é uma tradução (pensei na época que fosse) de Empty Words. Mas não é tradução nem plágio, é cheap imitation, um encontro sobrenatural, ou quase, com Cage. Ele é um grande morto, o Outro, para mim.

 

Outras pessoas que leram o original desse meu primeiro livro descobriram nele a voz de Beckett. Meu texto é conciso e preciso, sempre. Mesmo quando parece longo. Mas o texto longo é feito de textos menores, concisos e precisos, que descrevem algo concreto em poucas palavras, revelando o outro colado no mesmo. Descrevem o encontro/desencontro  sobrenatural do objeto consigo mesmo. Não sei por que essa presença de Beckett no meu texto me incomodou na época. Beckett parecia apagar Cage, talvez. Quis então apagar Beckett do meu texto — mas em vão. Escrevi um poema na forma de índice remissivo em que cito aparentemente os artistas e as tribos indígenas que admiro. Na letra B, escrevi e depois apaguei o nome de Beckett. Botei Borges no lugar, um escritor que também admiro. Admiro demais seu bestiário Livro dos seres imaginários. Um livro que narra encontros sobrenaturais e elenca os seres híbridos que resultam desses encontros.

 

 

RL - Tem algum mote? Alguma epígrafe que o acompanhe?

 

SM - Meu mote é, ou foi, até recentemente: nonsense sempre. A epígrafe que me acompanha é a que consta de uma página do meu primeiro livro e que traduz justamente o slogan da política da imortalidade. Numa das páginas finais de Mais ou menos do que dois lê-se: "(A epígrafe foi excluída — para sempre.)". Que epígrafe foi excluída? Concretamente, um verso de Manuel de Barros, cuja obra, representada por essa epígrafe, eu quis apagar. Manuel de Barros é o poeta mais velho do Brasil, então eu o elegi como símbolo de todos os poetas vivos. Eles não entrarão no meu livro, exceto um ou outro. Quero encontros sobrenaturais com quem já está habitando o além. Ou seja, os poetas mortos que citei acima. 

 

Agora, um artista vivo que me influencia muito é, naturalmente, Ilya Kabakov, esse grande nome da arte russa contemporânea. As instalações dele me marcaram muito. Agora estou escrevendo um tipo de poesia que denomino de poesia-instalação e que descreve uma "sala experimental". Mas isso já existia, na verdade, no meu primeiro livro e no segundo. Porém só agora adotei a denominação "poema-instalação".

 

 

RL - Qual o papel do escritor na sociedade?

 

SM - Saltar para o espaço, deixando exposta "a cena do crime". Usarei como referência a instalação The man who flew into space from his apartment,  de Ilya Kabakov, um artista nascido na Ucrânia, que admiro bastante. Já associei atrás essa instalação com o poema "Código" de Augusto de Campos. Em que consiste essa instalação? Num quarto humilde com o teto arrebentado e as paredes cobertas de cartazes soviéticos, executados conforme a estética oficial do partido comunista. O teto arrebentado sugere que o seu ocupante realmente saltou para fora deste mundo. Sentado numa catapulta, o homem se apropriou, segundo o filósofo Boris Groys, da energia acumulada nesses cartazes, que retratam o êxtase coletivo, o júbilo e o triunfo da utopia comunista. Por isso, concluiu Groys, o salto para o espaço foi uma derradeira tentativa de conciliar o êxtase individual com o êxtase coletivo. Mas o seu vôo é legítimo? É fácil concluir que o artista, esse astronauta "émigré", não é nem será jamais o cidadão eleito para alçar vôo em nome do estado ou da sociedade. O artista não usa a energia coletiva como a usaria o astronauta oficial, que representa a sociedade como um todo e que sempre retorna à Terra. Por isso, segundo Groys, cuja leitura da obra de Kabakov estou resumindo aqui, aquele quarto de teto arrebentado parece mais "a cena do crime" do que um laboratório, uma plataforma de lançamento. O sonho pessoal do artista não é o da sociedade.      

 

 

 
 
novembro/dezembro, 2006
 
 
 
 
POEMA INÉDITO DE SÉRGIO MEDEIROS
 

 

Galho & água

(Poema-instalação)

 

Personagens: um grande negro norte-

americano e um duende brasileiro

 

Quando o público entra na galeria

é atacado por um negro enfezado

que, agachado, chocalha  um grande

galho de árvore, cheio de folhas, avançando-o abruptamente

na direção das pessoas.

 

No fundo da galeria,

o duende segura diante de si uma mangueira azul comprida,

com a decepção estampada na cara.

 

— Secou — afirma. — Tivesse água, eu enchia isto aqui!

 

Quando diz "isto aqui", faz um

gesto imponente, abrangendo com o

braço erguido toda a galeria.

 

Ele repete essa fala e esse gesto várias vezes.

 

                           FIM

 
 
 
 
 
 

Sérgio Medeiros. Poeta e tradutor, publicou Alongamento (Ateliê, 2004)  e Mais ou menos do que dois (Iluminuras, 2001). Livros inéditos: Multiplicação/Heráclito e Meteoros mecânicos. Vive em Florianópolis-SC, onde é professor de Literatura na UFSC.

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Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.