Joaquim Palmeira — Disse Fernando Pessoa, por intermédio de Alberto Caieiro, ou vice-versa: "Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, / Não há nada mais simples. / Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte". Por origem, pensando na África, por onde andaram e viveram Pessoa e Arthur Rimbaud, o que é nascer na França e depois partir para o Brasil?

 

Tânia Alice — Tem um ditado que diz que quem pede identidade é a polícia. Gosto dessa idéia da Pós-Modernidade como geradora de identidades flutuantes, de seres móveis, em perpétua definição. Um pai gaúcho e uma mãe francesa, uma vida passada na França, na Alemanha, na Inglaterra, no Canadá e na Islândia acabam gerando um pensamento nômade. As vivências nós transformam e tentamos transformar essas vivências criando. Henry Miller diz que o artista vive duplamente: uma intensidade vivida e uma intensidade criada. Tudo se torna duplo.

 

 

JP — Antes de chegar em definitivo ao Brasil, como imaginava a Lusitânia Brasileira, ainda morando nas terras de Paul Verlaine?

 

TA — Em Marseille, com seu cosmopolitismo, suas ruas bagunçadas, a música árabe, o convívio com todas as etnias, da África do Norte à Cuba, eu trabalhava em uma associação que ajudava a resolver os documentos de brasileiros que chegavam na França. Luis Fernando Verissimo retrata com muito humor essa situação de chegada e adaptação. Nas chegadas, esperávamos no aeroporto o calor brasileiro. Fundamentalmente diferente do frio europeu, que acaba esvaziando os relacionamentos humanos.

 

 

JP — Que paralelos, você, Tânia Alice, pode fazer entre as jovens poéticas realizadas na França e no Brasil?

 

TA — Creio que a globalizazão, apesar dos efeitos econômicos e sociais desastrosos, teve como lado positivo a mixigenação cultural. Os meios de comunicação da mass midia (internet, televisão) geraram um intercâmbio muito grande entre poéticas, que se tornaram híbridas. A diferença entre um poeta brasileiro radicado na França e um poeta francês radicado em São Paulo? Creio que seria dificil de definir. O paralelo, com certeza, é a resistência que ambos têm à grande máquina do "globalitarismo", a resistência aos mecanismos produtivistas através da palavra, o engajamento no caminho artístico como um caminho irrevogável — mesmo se o preço dessa escolha é alto.

 

 

JP — França com destino ao Ceará: como foi viver no nordeste brasileiro, e talvez sentir que realmente o Brasil são muitos Brasis?

 

TA — O Nordeste é uma terra das mais acolhedoras. Há uma grande disparidade entre as condições econômicas e a qualidade das pesquisas artísticas, que infelizmente têm pouca visibilidade no circuito nacional. No Ceará, tive a oportunidade de trabalhar com artistas incríveis, como, por exemplo, o artista plástico Sanzio Marden (que realizou as ilustrações de três livros infantis meus);  o artista plástico Wilson Neto; a pesquisadora e bailarina Andréa Bardawill e seu Centro de Pesquisa do Alpendre; o poeta Daniel Glaydson; o grupo de pesquisadores e artistas chamado "Peripécias", que reúne dramaturgos do Ceará como Pablo Assumpção (agora pesquisador em Nova York); Aldo Marcozzi (Professor da UVA/Sobral); Fran Teixeira (Professora do CEFET/CE); ou Marcos Barbosa (Professor da UFBA), sem contar nossa Cia "Atemporal33", com a qual montamos vários trabalhos performáticos e espetáculos. Certamente, estou esquecendo vários artistas, mas apesar das dificeis condições de inserção no circuito artístico nacional, a intensidade que une e motiva as pesquisas são comuns em todos os Brasis — em todos os países.

 

 

JP — Desceu ao sudeste, para Belo Horizonte, onde viveu de passagem. Que diferenças são possíveis entre os povos abaixo e acima da Bahia?

 

TA — É muito dificil descrever tal diferença sem cair no perigo da generalização. Não acredito na fixidade da identidade, então, é complicado generalizar. O Ceará, como o Rio de Janeiro, apesar das dificuldades geradas pelo contexto econômico e que acabam gerando reações como a violência e suas conseqüências — uma forma de sair da invisibilidade para ir para a visibilidade — são duas experiências extremamente enriquecedoras.

 

 

JP — Rápida como um relâmpago, saiu de Minas Gerais para morar no Rio de Janeiro, mesmo enfrentando uma viagem semanal a Ouro Preto, onde leciona Estética teatral na UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto). Que desilusão aconteceu nos currais de Minas ou que ilusão ascendeu nos adros de São Sebastião?

 

TA — Cada lugar do mundo tem seus encantos e suas dificuldades. A questão é encontrar um acordo, uma harmonia entre exterior e interior.

 

 

JP — Sendo uma pessoa de Teatro e fazendo uma poesia híbrida, que limites ao léu existem entre as cenas das artes cênicas e as penas das artes poéticas?

 

TA — A essência do teatro é coletiva. É uma criação conjunta, que gera uma dependência mútua entre todas as pessoas envolvidas, do cenotécnico ao dramaturgo, do cenógrafo ao iluminador, do encenador ao ator, do figurinista ao sonoplasta, do produtor ao programador visual, e por aí vai. Há uma moda que tende a cristalizar essa vivência coletiva com o rótulo de processo colaborativo. Mas todo teatro é colaborativo, coletivo, enfim, essa é a essência mesmo do teatro. A criação poética é individual. Depende de você e das palavras e do silêncio da noite, que as fazem aparecer na hora em que justamente, os outros não as estão usando.

 

 

JP — Como foi encenar O Amor de Fedra de Sarah Kane, com alunos da UFOP, que integram o núcleo da Cia. Partículas Elementares e depois enfrentar uma pequena temporada em Belo Horizonte, no Teatro da Cidade?

 

TA — A experiência da encenação foi muito estimulante, pois uniu uma pesquisa teórica — que ando desenvolvendo há algum tempo sobre a adaptação de clássicos na contemporaneidade — e prática, pois sempre tive vontade de montar esse texto de Sarah Kane. Sarah Kane é uma das maiores dramaturgas da atualidade, que se suicidou aos 29 anos, deixando textos de um impacto muito grande. A co-direção com Gilson Motta foi uma experiência extremamente enriquecedora, porque você cresce cotidianamente ao seu lado — artisticamente e humanamente. A disponibilidade e criatividade do elenco e de todas as pessoas envolvidas no projeto como os professores Eloísa Brantes, Sandra Parra e Berilo Luigi, também foram fantásticas. Enfim, apesar das dificuldades, foi uma experiência muito interessante. A temporada em Belo Horizonte, porém, foi ligada a muitas dificuldades. O assessor de imprensa que escolhemos não divulgou o espetáculo, e com isso, tivemos pouco público. Mas esperamos voltar, em outras condições.

 

 

JP — A exemplo de diretores de teatro que tanto fundam como afundam atores, o que realmente é preciso na construção de um personagem, pensando, por exemplo, nas experiências realizadas por Jersy Grotowski?

 

TA — No teatro contemporâneo, o personagem é desconstruido. Principalmente na performance. O que se precisa para construir um personagem é complexo. Como referências principais nesse sentido, citaria as pesquisas sistematizadas de Stanislavski, como A Construção do Personagem ou A preparação do Ator, que elaborou um verdadeiro sistema teatral nesse sentido. Claro, as pesquisas de Grotowski, que você citou, mas também Eugênio Barba, entre muitos outros, complementam de forma interessante essa pesquisa. Mas a resposta a essa pergunta merece um livro.

 

 

JP — Se a vida é um palco ao vivo, como é possível a um intérprete transformar o eu sujeito em si em um outro, lembrando a frase de Arthur Rimbaud, "eu é um outro"?

 

TA — A arte é por essência a abertura à alteridade. Por isso mesmo ela é a vida intensificada.

 

 

JP — Seja encenar ou seja escrever, Tânia Alice, ou seja viver, como é viver nesse Brasil onde vivemos uma jornada em crise de todos os partidos políticos? A arte é uma política, ou não saimos da pedra medieval?

 

TA — Deleuze dizia "Resistir é criar". Só pelo fato de criar, estamos resistindo aos valores dominantes. Não é necessário para isso fazer teatro politico ou engajado. O teatro e a escrita recolocam o corpo na sua densidade, fora dos fluxos controlados. Isso em si já é válido.

 

 

JP — A exemplo de uma bula-poema Egolit, que andou pela internet, o que pensa sobre os artistas predadores e parasitas que vivem sobre o holocausto do ego?

 

TA — "Egolit" é indicado para o tratamento da egocentricidade mórbida. Está disponível em todas as farmácias virtuais. Em outras palavras: tem cura.

 

 

JP — Por marketing, como entender o jornalismo cultural quando a ordem dos primeiros cadernos de cultura é editar segundo a cópula de uma rendição capital?

 

TA — No teatro, a gente se depara muito com essa questão da produção. Como entrar no circuito cultural, na divulgação dos cadernos de cultura é um pensamento que muitas vezes se opõe ao ideal do encenador, que precisa de tempo e concentração para a criação. Por isso, a figura do produtor se torna indispensável. Em poesia, já sabemos que o público é restrito, que não entramos em circuitos de rendição capital. A criação parte por outra via — às vezes, por isso mesmo — mais estimulante.

 

JP — Antes de escrever Blue Note Insônia, o que viveu ou pensou que talvez tenha servido de provocação para essa escrita, que é ao mesmo tempo poética e cênica?

 

TA — "O homem só pode cometer um pecado: esse de não viver plenamente sua vida", diz Henry Miller. Na medida do possível, tento não pecar.

 

 

JP — Sendo a poesia um escrever em estado de cio, como afirmou Rainer Maria Rilke em um trecho de suas Cartas a um jovem poeta, pensando ainda em Blue Note Insônia, o que signica a epígrafe de José Saramago e a dedicatória a Gilson?   

 

TA — "Se pode crescer para nós uma flor sem limite é somente porque eu trago a vida aqui na voz" (Caetano Veloso). Na mesma música ele ainda diz: "O amor escraviza, mas é a única libertação".

 

 

JP — Escrever como quem perde a mão, lembrando um poeta anônimo: o que é preciso para empunhar os dedos e atravessar a página em branco?

 

TA — Verificar quem está do outro lado...

 

 

JP — Pensa que a poesia é um gênero da literatura ou isso não tem importância, uma vez que tanto os poetas hibernam em silêncio como as escolas fecham as suas portas?

 

TA — A poesia, talvez, é a arte mais distante das preocupações ligadas ao ego-trip, ao rendimento, ao desejo do reconhecimento, entre outros. A poesia é de essência espiritual... Abra a porta — o sol está atrás.

 

 

JP — Você, Tânia Alice, também publicou três livros infantis pelo projeto de ecologia "Manuelzão". Escrever é escrever e pronto, ou fazer literatura infantil é o mesmo que ir, aos domingos, com uma criança ao parque de diversões?

 

TA — Há pessoas que fazem teatro infantil ou escrevem livros para crianças para poder sobreviver no grande Luna Park audiovisual, como diz José Saramago. Essa postura é uma das mais deprimentes que existem a meu ver. As crianças são os leitores de amanhã, a poesia é constantemente presente no mundo infantil. A criatividade e a abertura de espírito das crianças é uma experiência fantástica. Creio que as crianças merecem a maior exigência no que diz respeito à criação. Esse tipo de criação parte de uma necessidade diferente, mas não menos intensa. No caso dos livros do projeto Manuelzão, juntou com uma preocupação ecológica: quem pode salvar o nosso planeta são as crianças, os leitores de amanhã.

 

 

JP — Aliás, Tânia Alice, puxando o mercado infantil como proa de salvação a muitos editores e escritores, será que vender fruta podre não seria o mesmo que imprimir historinhas coloridas?

 

TA — Existe um preconceito muito grande em relação à literatura e teatro infantil, devido, justamente, à essa literatura de consumo, que você define como "fruta podre". Mas existem frutas verdadeiras, com o sabor de outros possíveis.

 

 

JP — Ao reler A Bonequinha Preta, de Alaíde Lisboa de Oliveira, para a minha filha Jade, fiquei pensando em algo de antropologia. A minha pergunta é se você deseja uma escrita verdade, que nasça da vida, ou escrever é um mero exercício lúdico?

 

TA — Creio que se não há necessidade, não há escrita... Para exercicios lúdicos, tem xadrez, baralho, outras coisas, enfim. Não algo tão vital como a literatura.

 

 

JP — O seu Blue Note Insônia me parece uma realização poética nascida de uma experiência de vida, e mesmo que não seja, como é escrever com gotas de sangue e deixar ao leitor um sentido de verdade?

 

TA — Talvez isso seja devido a uma perfusão poética distanciada no tempo... Veias ligadas pelas mesmas dores e pelos mesmos desejos, num espaço/tempo diferente.

 

 

JP — Apenas experiência de linguagem ou habitar o olimpo de um dicionário é o mesmo que fantasiar um verso, uma estrofe, um poema, e libertar as letras como animais que jorram a ira?

 

TA — As palavras curam, as palavras matam. O silêncio também. É a lição das trevas.

 

 

JP — Por fim, apenas mais uma simples pergunta ao duplo, Tânia Alice, o que é poesia e o que é poema? 

 

TA — Poesia... Poesia é o potencial da vida revelado. O sol emergente em olhos deitados. Poema é um trecho dessa intensidade, quando ela se deixa captar e se faz palavra.

 

 

 
 
dezembro, 2007
 
 
 
 
 
 

Tânia Alice é escritora, encenadora e doutora em Letras e Artes pela Universidade de Aix-Marseille I (França). Atualmente, é professora de Estética Teatral na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Escreveu e dirigiu, entre outros, Um breve retrato da dor (dá pra sentir), inspirado no trabalho da performer Sophie Calle e SerOuNãoSer.com (CE). Dirigiu "O Amor de Fedra de Sarah Kane", em parceria com Gilson Motta (MG/RJ). Publicou o livro infantil Todo mundo sabe!, com ilustrações de Christophe Esnault (Omni Editora, 2005); a trilogia infantil Solo para Dona Tartaruga, Por água abaixo (ou: a incrível história de dois peixes-palhaço) e Segredo no ar, com ilustrações de Sanzio Marden, bem como vários contos, poesias e ensaios em revistas, jornais e na internet. Estréia em poesia com Blue note insônia, livro prefaciado por Guiomar de Grammont.

 

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Joaquim Palmeira. (Rio Paranaíba-MG, 1965). Poeta, dramaturgo, ator, performer, publicou 12 livros de poesia, entre eles,  Estilhaços no lago de púrpura. Organizou a antologia O achamento de Portugal (2005, Prêmio Aires da Mata Machado, versão 2005/2006, da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais). Tem poemas publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais, Revista Dimensão, Revista Apeadeiro (Portugal). Tem poemas traduzidos e publicados nas revistas Jalons (França) e Sìlarvs (Itália). Selecionado para o Museu da Língua Portuguesa, São Paulo/SP. Curador do projeto de poesia "Terças Poéticas" — nos jardins internos do Palácio das Artes, em Belo Horizonte/MG, onde vive.

 

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