(...) ando ocupando o vazio desse céu que me leva ao fim de quase tudo. Ouço lonjuras. Avisto toda a minha vida num horizonte que se move abaixo do sol, um clarão se projeta de mim, e eu transformo, tudo parece sonho, os nervos relaxam, sinto o mundo em toda a sua pureza;

 

Será que estou cada vez mais exposto a isso, pela graça do vício? Sou um viciado sem culpa de ser viciado.

 

(...): a minha alma descansa na inconsciência.

 

Há dias penso em parar de tomar drogas. Não é a primeira vez que procuro em vão fugir dos delírios.

 

:quase não durmo, não durmo, não durmo, não durmo nem mesmo quando chove sombras, descaminho por caminhos achados, fico soprando o vento, só sinto saudades do futuro. Preciso parar de me drogar. Depois de parar, então saberei que nada mudou.

 

Pretendo atravessar um grande mar parado. O sol me olha espantado.
 
 
(imagem ©geraldo de barros)
 
 

 

(...), não creio que posso atravessar o mar parado neste tempo que me resta, não creio, não creio em quase nada, não creio em mapa astral, não creio, não, não há mecanismo físico conhecido que mostre que a posição de astros distantes no momento do nascimento pode exercer influência sobre a minha natureza, ou sobre o meu destino, meu destino, destino oculto no evidente, evidente.

 

O futuro é apenas uma hipótese; existo plenamente neste instante. Astrologia não tem nenhuma lógica.

 

O que não é destino é contratempo. O destino é incerto num certo sentido.

 

Nunca aprendi a morrer. Talvez, um dia, não tenha mais que morrer.

 

; a morte não tem importância, desde que exista alguma coisa do outro lado. Morre-se para reconciliar-se com o tempo; reconciliar o tempo.

 

; morre-se como jesus que preferiu morrer na cruz para se vingar de nós, por que ele não morreu de morte natural? Por que não morreu de repente, de ataque do coração, de velhice, ou cansado de tanto esperar por nada? Há séculos esperamos por nada, há séculos sofremos a dor abismada de Jesus.

 

Num de seus últimos bilhetes, ele pergunta: por que o instante já é a eternidade?

 

: recordo o tempo em que não fui eu, nunca fui eu mesmo, não fui eu neste tempo que passou como um rio de lembranças. Agora vivo no particípio imperativo do futuro. Vivo até o momento, até o infinito momento. A vida para ele se transformou numa doença do espírito.

 

[Trecho do romance A hora dos náufragos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006]

 

 

 

Pedro Maciel. Autor do romance A hora dos náufragos (Bertrand Brasil, 2006). Mineiro, com menos de meio século de idas e vindas, não gosta de colecionar recordações ou calendário. Prefere perder o tempo da memória — a ficar parado na esquina — como se estivesse em movimento. Um exemplo de sua autobiografia: "Tento uma nova maneira de contar histórias e reinauguro a minha própria existência que estava a cargo de exercícios poéticos e ensaios jornalísticos. Estava morto e não sabia. Só agora lembro que estou mais vivo do que os meus antepassados. De hoje em diante tenho todo o tempo do mundo para transcrever um sentimento para cada realidade e um pensamento para cada sonho". Eis os dados mais concretos deste escritor originalíssimo. A hora dos náufragos é o volume inaugural de uma tetralogia.