........Começava
a suar muito, naquele ponto da história. Repetida noite após
noite, desde o adormecer já era previsível a hora de
acordar. Primeiro, numa passagem rápida entre a vigília
e o sono, deslizava sobre a superfície das palavras. As imagens
surgiam, transformavam-se, deixavam-se apreender e depois escorriam
para o fundo. Logo adiante tornavam a surgir e a desaparecer, até
que mergulhasse no sono ou que se gerasse o sonho conhecido. Nem sempre
era igual o enredo todo, mas a cena final, a da subida pelas escadas
tentando se livrar das roupas coladas no corpo, era a mesma. Sentava-se
de súbito na cama, ou se debatia ainda deitado, até
que abrisse os olhos e sentisse o alívio de reconhecer o quarto,
o espelho da porta do guarda-roupa, os cheiros conhecidos. Muitas
vezes, a mulher acordava com aquela agitação e o abraçava
dizendo que era um sonho apenas, que estava tudo bem.
........ Era bom o conforto da carne
conhecida. Aninhado entre os seios, ou respirando o resto do perfume
do dia no meio dos cabelos dela, sobre os ombros, adormecia outra
vez, protegido até a noite seguinte.
........ Daquela vez, porém, a
história foi além do final costumado. Começou
como sempre. Estava conversando com amigos. Era a casa velha, sozinha
no meio do campo, com os quartos se estendendo infinitamente, uns
após os outros. A cena era usualmente na cozinha, não
muito longe de onde ainda estralavam as brasas no fogão. A
luz das lamparinas amarelava os rostos e a oscilação
da chama produzia movimentos nas sombras projetadas na parede.
........ Não importava muito quem
comia, ou quem bebia alguma coisa. Mas o tio mais novo, riscando a
mesa com a ponta da faca, em desenhos nem fim nem começo, dizia
sempre: “está na hora de ir ver os mortos”.
........ Quando ele dizia isso, sempre
começava uma outra conversa, que levava à necessidade
de se protegerem, de usarem roupas especiais, para evitar o contágio.
O tio abria então um baú grande que ficava ao seu lado,
tirava uns trajes estranhos, que todos vestiam.
........ Na seqüência, o baú
era empurrado para trás, descobrindo um alçapão,
que se abria puxando por uma argola de ferro. Às vezes, não
era preciso empurrar o baú: o alçapão estava
do outro lado, no canto mais escuro e empoeirado da casa. E houve
casos em que a descida se fez pelo poço do quintal, já
seco e abandonado.
........ Desciam todos por uma escada
de madeira, vertical. Como as que os pedreiros usam. Mas nunca era
a mesma coisa que faziam lá embaixo. Algumas vezes olhavam
cuidadosamente os túneis, que eram como catacumbas, tentando
decifrar os sinais escritos na terra dura das paredes. Outras vezes,
havia ali apenas uma gruta enorme, completamente escura, e tudo o
que se via era o brilho imóvel dos olhos dos mortos, que eram
verdes e oblongos como as pupilas de um gato. Também era possível
que o final da escada levasse apenas a um outro túnel vertical,
em que havia uma outra escada. Nesse caso, a presença dos mortos
era apenas o seu cheiro podre. O normal, porém, era encontrar
os mortos em volta de uma mesa, como estátuas de cera. Não
fosse por terem as formas já apagadas pelo acúmulo do
pó e por uma espécie de ataduras que cobriam grandes
pedaços dos corpos, seria possível pensar que tinham
morrido há pouco, ou que tinham sido surpreendidos durante
um ato corriqueiro. As ataduras, unindo a esmo uns corpos a outros
corpos, eram entretanto um sinal de que a cena tinha sido montada
depois que todos já tinham morrido.
........ Dependendo da ocasião,
uma coisa diferente acontecia. Ou os olhos verdes começavam
subitamente a piscar e a se mover no escuro, em movimentos erráticos,
mas que os tornavam cada vez mais próximos, ou o cheiro mais
intenso começava a se tornar insuportável, denunciando
o toque iminente de um punho descarnado, ou então os comensais
adquiriam lentos movimentos de mão e boca, para logo tentarem
se libertar das ataduras que os mantinham ligados aos seus lugares.
O resultado, porém, era sempre o mesmo: a sensação
de pavor, a fuga desabalada e a presença em toda parte de uma
figura imensa, até então insuspeitada, cujo riso de
prazer envolvia a todos como uma brisa úmida, de cheiro azedo
e fresco.
........ A corrida para as escadas era
a parte pior, só superada pela percepção de que
as roupas que usavam como proteção eram elas mesmas
as peles dos defuntos. À medida que subiam, elas iam se tornando
mais estreitas, mais pesadas. Apodreciam também, o que era
a sorte de todos, que as iam arrancando aos pedaços, enquanto
se atropelavam e se pisavam uns aos outros na ânsia de subir.
........ Livres, por fim, das peles mortas
e malcheirosas, emergiam um a um sobre o chão da casa velha.
........ Já tinha pensado nisso:
não importava onde estivesse a entrada do alçapão,
a saída era sempre no cômodo ao lado do quarto do avô,
uma saleta que dava para dois longos corredores invariavelmente escuros.
........ Era quase o fim: saindo, punham-se
a correr pela casa, pois o cheiro daquela presença enorme,
ao mesmo tempo quente e fresco, era mais forte para qualquer lado
que se corresse. Estava claro, por alguma razão, que era a
própria Morte quem tinha esse cheiro azedo, atraente e aterrorizante.
Era ela que ria, e também quem fazia ruídos sobre a
cumeeira da casa, onde passavam, nas noites de verão, os ratos
em busca de comida.
........ Ele, perdido dos outros, fazia
sempre o mesmo caminho: evitava os corredores, entrava no quarto do
velho avô, rompia as teias de aranha, sufocava com o pó
que seus pés levantavam e corria para a janela. Era uma janela
de madeira, tosca, de uma folha só. Tentava abri-la, em desespero,
e sentia a presença mais forte, a aproximação
anunciada pelo aumento do perfume horrível e entontecedor.
Por fim, quando já sentia o deslocamento do ar causado pela
entrada dela no quarto, conseguia abrir a janela e saltava para fora,
correndo sobre a areia do pátio, no meio da noite.
........ Nesse momento despertava. Algumas
vezes, ainda em pânico, tentando abrir a janela. Outras vezes,
saltando por ela e sentindo que o terror se debruçava no parapeito
para vê-lo correr, sem coragem de olhar para trás. Ou
então acordava quando já corria sobre a areia, sozinho
e sem direção.
........ Naquela noite, tinha sido diferente.
Acordara sem um gemido, sem um grito, sem qualquer agitação.
Apenas abrira os olhos. O quarto estava totalmente escuro.
........ Tinha sonhado mais, tinha ido
até o fim. Saltara pela janela, correra sobre o enorme pátio
de areia, que se estendia como um deserto imenso sob um céu
sem nuvens e sem estrelas. Exausto, desabara sobre uma pequena duna.
A casa já não era visível, nem ouvia mais os
gritos dos outros correndo pelos corredores. Tudo parecia muito longe,
como se nunca tivesse existido.
........ Encolhido, com os joelhos quase
junto do queixo, estava começando a dormir. Foi então
que sentiu a presença dela, tão ampla quanto a paisagem
escura que não podia contemplar. Mais do que isso, percebeu
que era ela aquela noite sem fim, dentro da qual ele dormia nu, como
um menino. E foi justamente isso o que ele ouviu, nitidamente, vindo
de nenhum lugar: de dentro da terra arenosa ou do fundo do céu
chapado, antes de abrir os olhos contra o teto escuro do seu próprio
quarto: “meu menino”.
........ Molhado de suor, recompunha
a memória do que tinha acontecido, ainda imóvel.
........ Ficou assim por alguns segundos.
Depois, sem virar a cabeça, sentiu nitidamente: do lado onde
dormia a mulher, que era o seu lado esquerdo, ia se erguendo sobre
ele uma sombra mais pesada que a escuridão do quarto, mais
densa do que o suor pegajoso que escorria agora pelo seu pescoço.
Virando-se, decidiu, pela primeira vez, pelo menos tentar aceitá-la
e segurá-la entre os braços.
Do
livro O Sangue dos dias transparentes (São Paulo,
Ateliê Editorial, 2003)