Veio dar um recado, apanhar ou entregar
um papel, coisa do gênero. Distraída, bateu na porta. Distraído,
abri a janela. A casa, última de uma fileira de seis, era minha
residência e meu escritório na Companhia Florestal. Ali
eu passava a semana, trabalhando como engenheiro agrônomo, cuidando
da manutenção das vastas áreas de eucalipto. Nossos
olhares se cruzaram, então. Nunca tínhamos nos visto.
Paralisado fiquei, paralisado ela também. Seus olhos enormes,
redondos, cravados nos meus (vosmicê tem os óio mais bunito
daqui, dirá, uns dias depois), passamos uns instantes —
átimo, instantes, momentos, minutos, não sei mais —
como que grudados, um na visão do outro, e era a mulher mais
bela que eu já vira por ali. Trabalhara antes para a firma, mas
na capina, dissera. Nunca trabalhara nos escritórios, começara
ontem, estava gostando de trabalhar com "os dotô". "Mandaro
entregá ao sinhô", e suas mãos tremiam. Ainda
olhando-a nos olhos, balbuciei um "Deus do céu!" tentando
ser o costumeiramente engraçado, ela fez o sinal da cruz, sorrimos
ao mesmo tempo. Se ao olhar dentro dos seus olhos senti-me trespassado
pelos mais intensos raios com os quais a paixão costuma fulminar,
vendo o seu sorriso quase fechei os olhos, ofuscado, tamanha era a alegria
que demonstrava, tanta inocência naquele cativante jeitinho de
mostrar ao mesmo tempo contentamento e timidez. Apanhei o envelope das
suas mãos, ela se foi, ainda olhando para trás e sorrindo,
e essa lembrança ainda está tão presente que sinto
uma doçura por dentro, uma saudade de quem nem se foi, uma certeza
de que há tanto ainda que eu não sei sentir... Escrevendo
essas coisas, percebo quanto tudo isso está distante de mim,
da pessoa que costumo ser no relacionamento com os colegas, superficial,
brincalhão, "safado e sacana, mas divertido e bacana",
como diz a secretária com quem costumo conversar.
Desde então me dá essa coisa, de acordar mais cedo e esperar na janela, como uma encalhada desinfeliz, o ônibus que traz o pessoal dos escritórios. Ela é, de longe, a mais bela e mais faceira de todas as mulheres que desembarcam todas as manhãs. Tem vinte anos, me disse. Usa os cabelos esticados para trás, amarrados, bem junto à cabeça. Ressalta o pescoço, a nuca, as orelhas. Uma perfeita princesa negra. Altura média, corpo bem desenhado, seios empinados, um pouco mais que médios. Insolentes. Uma bunda redonda e empinada, coxas e pernas firmes. Tesão. Negra paixão. Tantas vezes me imagino entre aqueles seios, entre aquelas coxas, devaneio. Seria absurdo pensar em qualquer relacionamento com ela, ainda mais se considerando que trabalhamos na mesma empresa, que eu sou casado, que ela tem namorado, que existe uma ascendência hierárquica que pode configurar uma situação de assédio, as diferenças sociais e culturais, enfim... Mas a paixão não pensa nem reflete, e estou apaixonado por essa menina, moça ou mulher — o que seja — o que seja, por mais que eu relute contra essa idéia. Ela ri, coquete, para o motorista. Um peão apóia a mão em seu ombro e diz qualquer coisa, ela ri. Morro de ciúmes, fecho a janela e tento o trabalho. Não dá. Fico com raiva. Passa. Passo os dias tramando. Imagino mil maneiras de chamá-la à minha casa, pelos mais diversos motivos. Algumas vezes chego a ligar para o seu chefe imediato, na última hora desisto e falo de qualquer outro assunto. De vez em quando, trazendo algum fax ou para apanhar algum papel, ela vem. Então engasgo. Que humilhação! Doutor nisso e naquilo, palestrante desinibido, bem-humorado apresentador de tantas idéias e produtos para as mais caras platéias, homem do mundo, "safado e sacana, divertido e bacana", fico mudo como uma pedra quando os olhos dela me fulminam! Gaguejo, travo, digo coisas sem nexo, ela me olha com expressão aturdida, passando daquele fulminar que imagino cheio de desejo para uma evidente confusão, acreditando que seu vocabulário modesto não é bastante suficiente para que ela possa entender o que eu falo. "O dotô hoje está cheio de patavinas, num divulgo nadica de nada do que o sinhô fala!". Delícia de negra! Assim ela me dizia que não estava entendendo nada... Os dias se passavam e minhas mirabolantes idéias para conquistá-la ficavam represadas no território seguro das minhas fantasias, pois na maior parte do tempo eu era um ser de bom senso, equilibrado e experiente — gostava de acreditar nisso. A natureza também parecia conspirar a favor desse bom senso quando a fazia ausente exatamente no dia em que, tomado de suicida coragem e insuportável paixão — cio, ócio libidinoso, tesão vindo do nada, o que queiram chamar — decidia declarar-me, falar-lhe sobre o meu desejo e que fosse o que Deus quisesse. Até então, Deus evitara que eu fizesse essa cena, se é que Deus realmente se metia num caso desses, arrumando um casamento de uma prima, um serviço fora da nossa área, uma consulta médica na cidade, enfim, tirando-a de perto de mim... Um dia, enfim, depois de tantas idas e voltas nos meus sentidos, gaguejando, aproveitei que ela trazia uns papéis para que eu assinasse e lhe pedi para voltar à minha casa bem no final do expediente para apanhá-los de volta, e que se despreocupasse com o horário do ônibus, pois eu próprio a levaria para casa. Ela concordou sem pensar, aturdida com a minha ênfase, e claro que tal proposta não fazia nenhum sentido, pois de nada serviriam os documentos após o expediente, melhor seria deixar para apanhá-los no dia seguinte se fosse o caso. De qualquer forma, fiquei numa euforia incontida, andando de um lado para outro, ensaiando falas e imaginando beijos, até que o interfone tocou e era ela. Disse que preferia não ficar, pois as pessoas iriam pensar que ela tinha algum caso comigo, indo assim, de carona, para casa, depois do expediente, sem necessidade do trabalho. A casa do escritório ficava a uns quinhentos metros da minha, tínhamos interfone para comunicação interna. Fiquei boquiaberto com o seu bom senso, e com a naturalidade com que ela falava num assunto que era tão presente em minhas fantasias mas tão tabu nas minhas atrapalhadas conversas com ela. Eu disse "sim, claro, você tem razão, não tinha pensado nisso..." e decidi, então, enterrar aquela doidice num canto qualquer da minha mente, de onde nunca mais pudesse sair. Passei as semanas seguintes tratando-a com calculada displicência, embora sonhasse repetidas vezes com seus olhos faiscantes e com seu corpo negro brilhando à luz da lua. Mulheres podem ser ignorantes, incultas, analfabetas, mas serão sempre doutoras com mestrado e peagadê em amor. Ela notara a minha displicência e procurava sondar o que havia acontecido, embora no íntimo soubesse de tudo, como sempre acontece com elas. Na primeira oportunidade, que aliás eram poucas, a bem dizer, ela colocou a mão no meu braço e disse num tom pungente, "óia, dotô, num fica magoado comigo não, eu só fico procupada do dotô pensar que eu sô o que eu num sô...". Ela sentiu meu arrepio nas suas próprias mãos, mas não ouviu nenhuma resposta, não consegui falar. Fiz uma poesia pra ela.
Minha princesa de ébano, liberta-me Faz-me acreditar, bela e negra flor, Desprende-me, rainha, das tuas deliciosas teias Rogo-te, então, dona dos meus desejos Fazes assim, menina, ou estarás a me condenar
"Dotô, que coisa mais linda!", foi o que ela me disse quando nos encontramos no dia seguinte. "O sinhô tem uns óios verde, lindos!". Fiquei confuso, sem saber se ela fazia referência ao poema. Desde o dia anterior eu tentava avaliar o acerto do que fizera, aquilo de entregar o poema talvez fosse uma roubada, não sei se ela teria como entender. "Leu?", perguntei, quase sussurrando. "Li...". "E?". "Parece que o sinhô qué me cumê!". |
Paulo Saliba: Nasci em Itapetinga, no sudoeste da Bahia, terra de "gente firme e gado forte", se bem me lembro, formei-me em administração de empresas e análise de sistemas, mas, atualmente, sou agricultor em Teixeira de Freitas, bem no extremo sul do estado, onde planto café conilon e coco anão. Gosto de escrever, mas não tenho livros publicados. Tenho 47 anos e espírito de 15. (Escreve Pirrabugge, o blogue). |