O QUE DIZEM OS ESPECIALISTAS
Estes pêlos que cresceram
por todo o meu corpo, me fazendo parecer um cão, são frutos de um
profundo estado de estresse. Foi o que disseram os especialistas.
Procurei uns tantos pra tentar debelar o problema. Na verdade, quase
todos os males psíquicos, com reflexos insólitos no aspecto físico, como
no meu caso, hoje em dia, são frutos do estresse, principalmente do
estresse no trabalho, insistem em afirmar. Eles. Os especialistas. E,
pasmem, até num trabalho como o meu (sou oleiro, uma profissão que
procurei pra me desestressar da minha carreira de otário gritalhão na
bolsa de valores) pode acontecer. No entanto quando ralava no pregão,
nunca me ocorreu fenômeno nem de longe parecido, que pudesse ser
associado ao estresse, o que jamais eu tomaria por motivo pra pensar em
voltar a trabalhar no mercado financeiro, junto àquela matilha
capitalista.
Voltando aos meus pêlos:
eles além de me terem dado um aspecto e cheiro asquerosos (minha esposa
até me trocou, tamanho o seu trauma, por um cara todo lisinho feito um
nadador), os meus pêlos passaram também a me prejudicar na confecção dos
vasos. Ficando todos eles repletos da minha pelagem negra, os
compradores, os meus habituais compradores, desistiram, quase todos ao
mesmo tempo, dos meus produtos; vasos com pêlos, nisso houve unanimidade
entre eles, não dá, os clientes rejeitam. E apesar de os especialistas
me afirmarem que eu me tornei este ser hirsuto por conta do estresse no
trabalho, nunca me deram uma solução objetiva para o caso, dizendo que
cada caso é um caso, havia alguns medicamentos e terapias indicadas mas
nem uma delas garantiria a cura. Dependia mesmo (e isso segundo eles era
incontestável) de cada caso. O mais absurdo é que eu realmente nunca me
sentira estressado na minha profissão de oleiro. Pelo contrário, meus
ganhos sempre foram moderados, mas o trabalho sempre me fizera bem, me
realizando plenamente.
Interessante dizer como
isso teve início. Primeiro, surgiram uns pêlos longos que brotavam do
meu nariz e das minhas orelhas. Aparentemente uma hipertricose. Foi o
que o primeiro especialista afirmou. Até aí podia haver uma esperança.
Depois os pêlos começaram a se espalhar rapidamente por todo o meu
corpo. Procurei o mesmo especialista, que alterou o diagnóstico para
hirsutismo proporcionado por profundo estado de estresse no trabalho.
Foi quando disse a ele que não me sentia estressado, muito menos no
trabalho. No que ele foi ríspido, dizendo que se eu estava contestando o
diagnóstico dele era porque eu não precisava de médico algum, e que eu
poderia me tratar sozinho. Não me tratei sozinho, obviamente, mas
procurei por outro especialista. Que insistiu no mesmo parecer do
primeiro. Comecei a ficar ansioso desde então. Pois o tratamento, como
afirmara o primeiro especialista e agora o segundo, não garantiria a
cura. Passei a não dormir. A ficar agressivo e a quebrar os primeiros
vasos na parede logo após tê-los acabado de confeccionar. Insisti.
Um terceiro especialista. Nem é preciso dizer: o diagnóstico sumamente
igual ao dos outros dois. Comecei, a partir de então, a agredir os
clientes (não os habituais, pois esses já não me procuravam havia
tempo), atirando vasos contra eles quando perguntavam se eu também
produzia vasos sem pêlos. E, por qualquer outro motivo que fosse que me
deixasse irritado ou contrariado, eu reagia com animosidade. Quando
procurei o quarto especialista, já despontava uma cauda na minha
traseira e os meus dentes já se manifestavam como caninos pontiagudos.
No entanto, o doutor insistiu para que eu confiasse no diagnóstico dos
seus companheiros de profissão, e acrescentou que o fato de eu ter me
tornado um ser agressivo nada tinha a ver com meus pêlos, dentes e rabo
de cão. A aparência não necessariamente ditava o comportamento. O
instinto animal, afirmou ele, brota em qualquer um de nós, quando
estamos sob forte estresse, como no seu caso, depois é que podem surgir
tais anomalias físicas. Saí furioso do consultório. Com vontade de
atacar o doutor bem na jugular. Contudo, me contive, com muito, muito
esforço. Estava, agora, realmente muito estressado. Pouco tempo depois,
me veio o desejo de devorar as pessoas, sem qualquer motivo aparente.
Não precisava a mínima provocação. Tentei o quinto especialista. Contei
toda a historia, detalhadamente, e frisei (frisei muito bem) que eu
nunca tivera estresse nenhum no meu trabalho de oleiro, que segundo a
insistência dos outros especialistas era o que havia desencadeado essa
minha transformação. O quinto especialista, então, riu da minha cara,
confirmando o diagnóstico dos outros quatro, e acrescentando que eu
estava enganado quanto a ter prazer no meu trabalho, pois em trabalho
algum era possível encontrar prazer, só estresse. Foi aí que fiz minha
primeira vítima fatal. Devorei o doutorzinho. O que me rendeu um
internamento e, finalmente, um relacionamento amistoso e dialógico com
os etologistas.
(Do livro O estranho
hábito de dormir em pé. Curitiba: Travessa dos Editores,
2003)