SOB O SIGNO DO FOGO
 
 
Não tem "era uma vez" ou "há muito tempo atrás". Só tem "era uma vez" quando o Rainríchi (um branquelão gigante), que dizem que é o assistente social aqui do pedaço, passa na nossa mesa no lanche da tarde e vai tirando o rango da nossa boca, da nossa mão, dizendo já deu tempo, daqui isso aí, agora vão lavar as mãos, porcaiada, quem não comeu, era uma vez, não come mais, babau! (aí a dona Preta a mulher da cozinha finge que não vê senão o alemão, esse é o apelido do Rainríchi, diz que queima ela e a gente também que ele chama de escória). Só que o lance desta história não é pra ficar falando muito do Rainríchi, não, que é um filhodamãe, esta história, eu já disse, também não é lance de "há muito tempo atrás", esta história é um lance de agora destes dias e é a história de um cara, um carinha aqui do orfanato. Eu começo contando que ele é baixinho tem as orelhas meio esquisitas, meio pontudas, o nariz fino e é feio e o mais espantoso de tudo e o que faz eu estar contando a história dele é porque ele, bem, ele é verde e veio de outro planeta. E o apelido dele é ET. Todo mundo chama ele assim e quem pôs o apelido foi a Dona Zilda que é a mulher que manda aqui neste lugar. Ela não gosta dele. Mas também ela não gosta de ninguém e ela tem nojo da gente e diz que só agüenta a gente porque tem que levar dinheiro pra cuidar dos meninos bonitos dela lá que são os filhos dela. Outra coisa que ela diz também é que a gente não sabe o que é ser filho e nem nunca a gente vai saber porque se adotarem um dia a gente e a gente ganhar uma família a gente vai crescer revoltado feito bicho do mato aí a gente vai cair nas drogas e virar trombadinhas pra comprar droga e roubar nossos próprios pais, adotivos, ou bater neles por causa de dinheiro pra comprar droga e se eles não derem dinheiro aí a gente vai acabar matando eles porque a gente é malagradecido, queném a gente é com ela, a Dona Zilda.
 
Mas eu tava falando do ET. Ele é verde. Não é aquele verdão. É um verde fraco. Meio desbotado. De gente que quando parece que tá com fome. Mas é verde. E não é só. O ET tem poderes. Você pode não acreditar. Mas o ET tem. Quando o ET chegou aqui eu e a molecada toda zoamos com ele e eu achava ele fraco e pateta e até dei uns cascudos nele. Também, todo mundo deu. Eu também tinha que dar senão iam falar que eu era frouxo. Bati mesmo nele, até a hora que eu descobri que o ET tinha poderes. Mas só eu descobri. O resto da molecada ele deixou continuar batendo nele e achando que ele era fraco e pateta, coisa que eu briguei com ele falando pra ele mostrar o poder dele, dar uma lição naquela cambada. Aí ficamos amigos. Veja bem, não sei contar história com palavra difícil de dicionário pra ficar mais bonito.Vou contar do jeito que foi como eu vi o ET fazendo demonstração de umas coisas que homem humano daqui da Terra jamais vai fazer. Não vai fazer mesmo. Acredite. Não vai. Porque o que o ET faz gente nenhuma pode fazer. Se o ET quiser ele destruía este orfanato aqui e a gente ia embora praonde a gente quisesse.  Viu só, o ET ele fala em destruição. Veja o poder do ET. Destruição! O ET se quiser destrói até você aí que tá me ouvindo contar a história dele. Mas acho que cê quer saber mesmo é do que o ET é capaz. Bem, o ET ele é capaz de fazer as coisas queimarem. Acredite. Queimarem quando ele toca com as mãos! Aí eu já falei pra ele que ele é mágico mas ele diz que não, que ele tem poder mesmo e que mágica não é de verdade e o que ele faz é de verdade. Se ele fala que vai transformar alguma coisa em fogo essa coisa queima mesmo e só volta ao normal quando ele quiser. Outro dia ele pegou um pedaço de ferro segurando com a mão e o ferro começou a avermelhar. Aí eu cheguei perto e vi que tava quente o ferro. Veja só. O ferro pegou fogo. E o ferro só voltou frio quando ele quis que voltasse.  Não adianta querer falar que é ilusão que não é. É tudo de verdade. Lá daonde ele veio ele me disse que todo mundo tem esses poderes. Aí eu perguntei pra ele se ele veio de outro planeta e ele me respondeu que isso ele não podia falar. Pra não insistir. Então eu fico curioso mas não insisto porque eu sei que o ET veio mesmo de Marte. Acho que é de Marte. Ele é baixinho e feio. E todo ET é baixinho e feio e veio de Marte. E, claro, é verde também. Marte. Esse é um nome de planeta que eu conheço. O outro também que eu conheço é a Lua. Mas os marcianos só vêm de Marte. O ET veio de lá, certeza. Outro dia o ET deu uma no Rainríchi que chamou a gente de mané. Isso foi só eu que vi porque o resto da molecada tava jogando bola e a gente, eu e o ET, não gostamos de jogar e ficamos brincando de pinguepongue, aí veio o alemão e disse que a gente era marica porque não jogava bola só jogava jogo de fresco que desmunheca que é o pinguepongue. Aí eu fiquei puto e o ET também. Mas eu se fico puto, quero bater no filhodamãe, o ET não. O ET tem poderes de ficar controlado. Além do poder de fazer o Rainríchi ficar na dele e não mexer mais com a gente, aquele filhodamãe do Rainríchi. Então, quando o Rainríchi quis pegar a gente pra bater porque eu falei que mané era o pai dele, o besta do pai dele, ele partiu pra cima, aí o ET ficou vermelho, mas não de raiva, de poder, ficou parecendo uma bola de fogo. Que quando o alemão tentou dar um sopapo nele queimou a mão, porque a mão ficou grudada no corpo do ET. Tanto que o alemão teve que enfaixar depois, aí eu e o ET quando a gente vê o Rainríchi a gente ri e ele fica puto mas disfarça porque sabe que o ET tem poderes e eu sou muito amigo e protegido do ET. Só que eu sempre digo pro ET parar de ser bobo e usar os poderes dele pra quando a molecada quiser zoar com ele. Mas ele continua dizendo que não, que não pode usar assim de qualquer jeito, em qualquer um. Deve ser uma lei lá deles do planeta dele. E ele obedece. Mas então eu continuo falando do ET. Porque a história é a história do ET. Bom, o ET, quando falo desses poderes dele é porque ninguém nunca vai ver as coisas que eu vejo. Juro! Não vai. Só se vier outro alguém como ele lá do planeta dele aqui pro orfanato. Mas aí outro dia vieram aqui os meninos bonitos da Dona Zilda. São uns gordinhos. Chatos. E têm as bochechas rosadas. Parecem porquinhos. E eu sei que porquinho é cor-de-rosa porque outro dia passaram um filme aqui pra gente da história de um porquinho, aí eu vi que porquinho era cor-de-rosa. Quem passou o filme foi uma menina bonita e legal que gosta da gente. O nome dela é Estagiária. O nome é diferente. Até é bonito. Quando eu namorar a minha namorada vai ser igual à Estagiária. Os gordinhos da Dona Zilda são uns filhosdamãe e ela também, sabe. Porque que outro dia, nesse dia que eles vieram aqui, eles vieram pra chamar a gente pra ir brincar com eles lá na casa deles que tem joguinho de videogame e coca-cola com batata frita de saquinho à vontade, e quem mandou convidar a gente foi à mãe deles a Dona Zilda que deu uma de boazinha e a gente acreditou, e eu e o ET que somos nós que não jogamos futebol de tarde ela mandou que a gente fosse lá brincar e aí nós fomos. Quando a gente chegou lá à gente viu que era tudo mentira dela, ela queria que a gente fosse lá era pra pintar as paredes emboloradas da casa dela. Aí os gordinhos iam ficar vigiando a gente e se a gente ameaçasse fugir ou desobedecer às ordens da Dona Zilda era pros gordinhos bonitos lá dela bater na gente porque eles eram mais fortes do que nós. Eu me estivesse sozinho lá tinha mesmo é pintado à casa toda de medo de apanhar dos gordinhos, só o problema é que o ET tava lá comigo e como o ET eu já disse é meu amigo ele protegeu a gente. Ce quer saber como? Ah, ce vai até vibrar de como. O como foi assim, ó. São três gordinhos. Gordinhos mesmo. Parecendo mesmo fortes. Veio um de cada lado. Cercando a gente de três lados. E falaram pra gente pintar tudo à casa que a mãe deles precisa economizar dinheiro pra eles e que eles iam jogar videogame, mas iam estar de olho na gente. Cercaram a gente pra botar medo na gente. O pior é que eu achei que o ET tinha pulado pra trás e tava é com medo dos porquinhos cor-de-rosa da Dona Zilda. Pensei mesmo. E até pensei em xingar o ET. Mas o ET é esperto e parece que sabia o que tinham preparado pra nós aqueles gordinhos malditos. Sabe o que-que era? Era um pitibu. Aí o pitibu era nervoso. E rosnava pra gente parecendo que querendo avançar e morder a gente. Foi então que o ET mostrou seu poder de novo. (Ele todo tranqüilão lá e eu nervoso inteiro). Imagina. Imagina só o que-que ele fez. A gente tava lá encurralado pelos gordinhos e pelo pitibu, aí o ET falou pra eles que eles não precisavam ficar nervosos e pôr cachorro em cima da gente. Que a gente ia pintar sim as paredes. Que a gente gostava deles os gordinhos. Porque eles eram os filhos da Dona Zilda que cuidava da gente. E que a gente queria era ser amigo deles gordinhos. Aí o ET, sabe o que-que o ET fez? O ET estendeu a mão pra um deles em sinal de amizade. Os gordinhos ficaram queném bobo e sem saber o que fazer. Aí um deles o mais bobão esticou aquela mão banhenta pro ET e pegou na mão do ET. Mas foi queném um bicho que o gordinho gritou quando pegou na mão do ET. Ai ai ai ele fazia bem alto. E falava pro ET soltar a mão dele que o ET tava queimando a mão dele. Foi aí que eu vi que a mão do ET parecia uma brasa. Uma brasa! Queném madeira queimando. Aí ele soltou o gordinho que saiu pulando. Nisso foi quando o pitibu se assustou e ficou furioso e saiu correndo atrás dos gordinhos que saíram atrás do outro com a mão queimada. Foi do cacete. Os três ficaram encurralados num canto da garagem no fundo do quintal e o pitibu em cima deles. Ameaçando. Ameaçando. O ET não disse nada. Quem disseram foram os gordinhos que falaram pra gente tirar o cão do inferno de cima deles que eles mesmos iam pintar as paredes. Verdade. Juraram. E que a gente podia jogar o joguinho de videogame deles lá e comer a comida deles que eles não iam falar nada pra ninguém. Topamos na hora. E eles cumpriram. O ET assobiou e o cachorro veio na direção dele todo ouriçado. Aí o ET só passou a mão na cabeça da fera e ela saiu gritando e correndo desesperada e foi se amoitar lá nas porcariadas empilhadas atrás da garagem. Ficamos jogando a tarde toda. E os gordinhos pintando. E a gente, eu e o ET, comendo batata frita com coca-cola e o ET batendo recorde em cima de recorde no videogame dos gordinhos da Dona Zilda lá. O ET é fogo. Fogo de verdade. Verde na pele. Deve ser vermelho todinho por dentro.
 
Isso aí que eu contei foi semana passada. Faz uns quarenta dias acho que eu conheço o ET. O Rainríchi agora é difícil de encarar a gente. Só olha de canto de olho. E o que eu vou contar agora tem a ver com o Rainríchi. E também com a Dona Zilda. É que antes de ontem veio aqui no orfanato um tal de Ádolfi. Ele mais uns caras branquelos feito o Rainríchi. O Ádolfi tinha bigodinho. Cara de muito invocado. Um bigodinho bem fininho. Até meio jeito de fresco. Ele que mandava porque ele é que falava na reunião lá deles na sala da Dona Zilda. E o que ele falava era que eles iam meter fogo aqui no orfanato. Meter fogo! Veja só. Mas eu não ouvi nada não. Porque a porta tava fechada. O que aconteceu foi de novo o ET. Ele que ouviu esse papo aí. Ele também tem poderes de ouvir. Aí a gente tava pegando um solzinho encostado na parede da sala da Dona Zilda que dá ali pro pátio e o ET ouviu. Ouviu o que o Ádolfi falou pra Dona Zilda e pro Rainríchi. Falou não. Ele mandou. Eles colocarem fogo aqui no orfanato por causa que o seguro (acho que é isso) era muito bom e aí eles se arrumavam. E o ET disse que quando o Ádolfi falava a parede da sala ela latejava. Aí eu perguntei o que-que é latejava. Ele disse que é queném quando a gente tem dor de cabeça que parece que a cabeça da gente cresce e diminui. Vai e vem doendo. E também que a parede quando parecia essa dor de cabeça ficava preta depois roxa e vermelha. Falei pro ET que ele tava vendo coisa. Mas ele disse que não tava não. Que era verdade e que eles iam queimar a gente. A escória. E o ET disse que a escória é aquilo que não presta. Não vale nada. Além de poderoso o ET ele é inteligente. Aí ele falou pra gente fugir e ir viver lá na praça. Eu disse que não porque eu não tenho coragem por causa que lá tem os polícias. Que batem na gente e depois tomam a cola da molecada quando a molecada tá cheirando e faz a molecada fazer coisa lá neles. O ET me garantiu que tira os polícias de letra. Eu não sei não. Polícia é diferente. Eles sabem dar porrada na gente. Aí eu falei pro ET se ele não ia fazer nada com esse tal de Ádolfi e esse povo branquelo aí dele. O ET nem disse nada. Aí hoje eu fiquei sabendo que o tal do Ádolfi deu um tiro na cabeça. Passou fogo nele mesmo. Acho que descobriram o plano dele e o plano é que deu errado. Ou foi mesmo coisa do ET. Deve ser coisa do ET. Sei lá. Só pode ser. Mas por enquanto eu tenho que ficar escondido aqui no forro do dormitório pro Rainríchi não me pegar porque agora eu estou sozinho. O ET se mandou ontem de noite pra viver lá na praça dizendo que o fogo ia pegar de qualquer jeito. Eu não sei se vou ou se espero pra ver se o fogo vai pegar mesmo por aqui depois que o Ádolfi morreu. A Dona Zilda e o Rainríchi andam pra lá e pra cá lá na sala dela. Nervosos. Irritados. Meio sem saber o que fazer. Isso eu consegui ver. A porta tava meio aberta. Eles têm cada um um galão nem sei do quê na mão. Acho que eu preciso avisar a dona Preta e a Estagiária. E depois me mandar. É. Me mandar. Criar coragem e ir lá na praça com o ET. Ele tem poderes e vai me proteger dos polícias.
 
Só que às vezes eu desconfio que os polícias também vieram de outro planeta.
 
 
 
O QUE DIZEM OS ESPECIALISTAS
 
 
Estes pêlos que cresceram por todo o meu corpo, me fazendo parecer um cão, são frutos de um profundo estado de estresse. Foi o que disseram os especialistas. Procurei uns tantos pra tentar debelar o problema. Na verdade, quase todos os males psíquicos, com reflexos insólitos no aspecto físico, como no meu caso, hoje em dia, são frutos do estresse, principalmente do estresse no trabalho, insistem em afirmar. Eles. Os especialistas. E, pasmem, até num trabalho como o meu (sou oleiro, uma profissão que procurei pra me desestressar da minha carreira de otário gritalhão na bolsa de valores) pode acontecer. No entanto quando ralava no pregão, nunca me ocorreu fenômeno nem de longe parecido, que pudesse ser associado ao estresse, o que jamais eu tomaria por motivo pra pensar em voltar a trabalhar no mercado financeiro, junto àquela matilha capitalista.
 
Voltando aos meus pêlos: eles além de me terem dado um aspecto e cheiro asquerosos (minha esposa até me trocou, tamanho o seu trauma, por um cara todo lisinho feito um nadador), os meus pêlos passaram também a me prejudicar na confecção dos vasos. Ficando todos eles repletos da minha pelagem negra, os compradores, os meus habituais compradores, desistiram, quase todos ao mesmo tempo, dos meus produtos; vasos com pêlos, nisso houve unanimidade entre eles, não dá, os clientes rejeitam. E apesar de os especialistas me afirmarem que eu me tornei este ser hirsuto por conta do estresse no trabalho, nunca me deram uma solução objetiva para o caso, dizendo que cada caso é um caso, havia alguns medicamentos e terapias indicadas mas nem uma delas garantiria a cura. Dependia mesmo (e isso segundo eles era incontestável) de cada caso. O mais absurdo é que eu realmente nunca me sentira estressado na minha profissão de oleiro. Pelo contrário, meus ganhos sempre foram moderados, mas o trabalho sempre me fizera bem, me realizando plenamente.
 
Interessante dizer como isso teve início. Primeiro, surgiram uns pêlos longos que brotavam do meu nariz e das minhas orelhas. Aparentemente uma hipertricose. Foi o que o primeiro especialista afirmou. Até aí podia haver uma esperança. Depois os pêlos começaram a se espalhar rapidamente por todo o meu corpo. Procurei o mesmo especialista, que alterou o diagnóstico para hirsutismo proporcionado por profundo estado de estresse no trabalho. Foi quando disse a ele que não me sentia estressado, muito menos no trabalho. No que ele foi ríspido, dizendo que se eu estava contestando o diagnóstico dele era porque eu não precisava de médico algum, e que eu poderia me tratar sozinho. Não me tratei sozinho, obviamente, mas procurei por outro especialista. Que insistiu no mesmo parecer do primeiro. Comecei a ficar ansioso desde então. Pois o tratamento, como afirmara o primeiro especialista e agora o segundo, não garantiria a cura. Passei a não dormir. A ficar agressivo e a quebrar os primeiros vasos na parede logo após tê-los acabado de confeccionar.  Insisti. Um terceiro especialista. Nem é preciso dizer: o diagnóstico sumamente igual ao dos outros dois. Comecei, a partir de então, a agredir os clientes (não os habituais, pois esses já não me procuravam havia tempo), atirando vasos contra eles quando perguntavam se eu também produzia vasos sem pêlos. E, por qualquer outro motivo que fosse que me deixasse irritado ou contrariado, eu reagia com animosidade. Quando procurei o quarto especialista, já despontava uma cauda na minha traseira e os meus dentes já se manifestavam como caninos pontiagudos. No entanto, o doutor insistiu para que eu confiasse no diagnóstico dos seus companheiros de profissão, e acrescentou que o fato de eu ter me tornado um ser agressivo nada tinha a ver com meus pêlos, dentes e rabo de cão. A aparência não necessariamente ditava o comportamento. O instinto animal, afirmou ele, brota em qualquer um de nós, quando estamos sob forte estresse, como no seu caso, depois é que podem surgir tais anomalias físicas. Saí furioso do consultório. Com vontade de atacar o doutor bem na jugular. Contudo, me contive, com muito, muito esforço. Estava, agora, realmente muito estressado. Pouco tempo depois, me veio o desejo de devorar as pessoas, sem qualquer motivo aparente. Não precisava a mínima provocação. Tentei o quinto especialista. Contei toda a historia, detalhadamente, e frisei (frisei muito bem) que eu nunca tivera estresse nenhum no meu trabalho de oleiro, que segundo a insistência dos outros especialistas era o que havia desencadeado essa minha transformação. O quinto especialista, então, riu da minha cara, confirmando o diagnóstico dos outros quatro, e acrescentando que eu estava enganado quanto a ter prazer no meu trabalho, pois em trabalho algum era possível encontrar prazer, só estresse. Foi aí que fiz minha primeira vítima fatal. Devorei o doutorzinho. O que me rendeu um internamento e, finalmente, um relacionamento amistoso e dialógico com os etologistas.
 
 
 
(Do livro O estranho hábito de dormir em pé. Curitiba: Travessa dos Editores, 2003)
 
(imagens ©misha gordin)
 
 
 

 

Paulo Sandrini, nasceu em Vera Cruz-SP, viveu até 1994 em Bauru-SP, quando se mudou para Curitiba, onde vive atualmente. É designer gráfico, escritor, membro do conselho editorial da revista Et Cetera literatura & arte e mestrando em Estudos Literários pela UFPR. Autor de Vai ter que engolir! (2001), O estranho hábito de dormir em pé (2003) e Códice d'incríveis objetos & histórias de lebensraum (2005), todos de contos.