As cinzas da noite espalhavam em brasa no quarto de Cícera.

Toda a solidão de uma vida oprimida entre suas coxas lhe ardia. A televisão a convidava para comprar uma nova marca de detergente, sabonete e palha de aço. Mas, para viver a sua vida nunca, never more.

Casara cedo, muito jovem e tola. Não conhecia nada da vida. Cria no noivo, experiente e de olhar interessado, penetrante... Acreditava que ele poderia fazê-la a mulher mais feliz do mundo. Não o conseguiu. Teria sido sua culpa?

Há anos, reclusa à vida doméstica: passava, encerava, cozia, pregava botões e cerzia as meias. Em troca de quê? Todos os dias, rádio na cozinha, lamentos sonoros de amor eterno respingados a óleo quente da frigideira, comida no forno, lavagem de cuecas e muita, muita, muita vista grossa...

À tardinha, com almofadas embaixo dos cotovelos, reclinava-se à janela sisuda a comparar a sua vida com a dos passantes. A visão de uma mulher magra e jovem lhe era imperdoável, capaz de estragar até o fim de semana. Roia as unhas.

Revolvia gavetas, revolvia gavetas, procurando nem ela sabia o quê. Chorava nos portais da cozinha. Chorava por detrás das portas. Chorava. Cheirava esmaltes. No banho, perdia horas se ensaboando, se esfregando, catando o surro, sensação de sujeira, muita sujeira. Cuidava das plantas no jardim, matava formigas, caçava baratas, limpava ratoeiras...

Um dia, recebeu um telefonema diferente: seu marido sofrera um grave acidente. Morrera! Solicitavam-na para fazer o reconhecimento do corpo.

Desligou o telefone e poisou-lhe no console. Não chorou. Não sabia o que pensar. Não sabia o que fazer. Não sabia para onde ir. Não sabia a quem procurar. Não sabia nada de coisa alguma.

Foi ao quarto, ficou de quatro e pegou embaixo da cama uma encadernação vermelha amarrada com uma fita puída. Abriu-a. Era um álbum de fotografias. Pequeno, feito de cartolina, comido por cupins, cada página separada por papel manteiga amarelado. As fotos, à medida que passava as páginas, caíam pesadas. Ela as recompunha. Fitava-as. Não, não as reconhecia, não reconhecia nada e nem ninguém. Sorriu aliviada e gargalhou com uma estranha sensação de liberdade.

 

 

 

 

 

 

 

Como é difícil andar de ônibus, nas horas de pico, nesta cidade. Vocês, leitores, que durante a semana já cumprem rigorosamente esse martírio, fiquem à vontade para não embarcar nessa crônica ambulante. Caso contrário, audazes e teimosos, sejam bem-vindos e se abanquem, se conseguirem assentos vagos, é claro...

Hoje eu precisei tomar uma condução da linha Antônio Bezerra–Messejana que, para variar, estava com os passageiros a sair pelas janelas. Era um empurra-empurra danado, além do calor, da criancinha passando mal no colo magro da mãe, do sofrimento dos velhinhos para entrar pela frente e da sucessão de sacolejados, que há quem jure, por tudo no mundo: "esse troço" vai virar...

Não vão acreditar, pois, até eu que não sou de me impressionar com essas coisas, estranhei: em meio a toda aquela confusão, reconheci, logo ali, em pé, de mochila nas costas por sobre a casaca, o José de Alencar. Com o colarinho branco empapado pelo suor que escorria em bicas, equilibrava-se, segurando no apoio de um banco, enquanto que, com outra mão, empunhava um livro do Hoffman. Que louco poderia imaginar encontrá-lo naquele ônibus e, justamente, na véspera de seu aniversário? Ao me reconhecer, comedido, cumprimentou:

— Salve, salve, prezado folhetinista!

— Folhetinista, eu? — respondi, ainda surpreso.

Mencionou-me, então, que vinha de sua casa, o Sítio do Alagadiço Novo em Mecejana, pois não tinha pisado lá ainda desde a sua última reforma. Vaidoso, encantou-se, e disse que havia passado uma tarde muito agradável, flanando pelo terreno, em companhia da professora Ângela Gutierrez a desfiar da memória as recordações da cazuza infância.

Dirigia-se agora ao centro da cidade. Não escondia, porém, a sua tristeza com o estado em que este se encontrava:

— Como o povo cearense pode permitir tamanho descaso e desperdício? Diga-me, Raymundo, como se pode falar em qualificar e aformosear o centro histórico da cidade se o poder público é o primeiro a abandoná-lo? Veja bem: a sede do Governo do Estado, para começar, deixou o Palácio da Luz; depois, o Governo Municipal abandonou o Paço para nunca mais; os vereadores também debandaram para bem distante e, não bastasse isso, o Judiciário conseguiu fazer por desaparecer o prédio INTEIRO do Fórum Clóvis Beviláqua... Apesar de que, — ironizou — neste caso, até me causa admiração o fórum ter resistido durante tanto tempo, estando à vizinhança do velho Imperador. Ora, se tendo a antiga Sé às suas barbas ele não evitou que a demolissem! Realmente, o homem é um pé frio... Que pena, que pena! Bem, mas vale tarde do que nunca. Esperemos o dia em que poderemos lançar os olhos em nossa cidade e contemplar a paz e a prosperidade...

Nesse momento, a conversa foi interrompida quando Alencar viu, com assombro, emergir, em meio às águas da lagoa de Messejana, a verde estátua de Iracema. Sacudiu a cabeça, censuroso, ao observar-lhe as feições:

— Com santo respeito, mas não tem parecença alguma com a minha Iracema! Assemelha-se mais às obras do senhor Magalhães*!

De repente, tirou os óculos em aros dourados e os substituiu por um grosseiro par de armações tartaruga, sacado de um estojo de marroquim roxo, fitando-me:

— Esta é a minha luneta mágica. Com ela, misteriosamente, posso ler em sua boca os seus mais sinceros e secretos pensamentos... — riu — Ah, então é assim? Que coisa! — trocou os óculos novamente, mudando de assunto e discorrendo sobre a crônica:

— É uma felicidade que não me tenha dado ainda ao trabalho de saber quem foi o inventor deste monstro de Horácio chamado crônica, senão aproveitaria algum momento em que estivesse de candeias às avessas e lhe escreveria uma biografia que havia de fazer esse sujeito, inventor de tão desastrada idéia, ter um inferno no purgatório onde ele, necessariamente, deve estar, concorda? Afinal, como se pode hoje brincar sobre um assunto, escrever uma página em estilo mimoso, falar de flores e música, se o eco da cidade nos responde de longe: pão, epidemia, socorros públicos e enfermarias?

O ônibus solavancou, quase que arrancando o Alencar junto, o que o fez protestar em alta voz:

— Mais devagar, boleeiro, que aqui vai gente! Para que tanta pressa, rapaz?

Após o protesto, e as vaias dos passageiros da "geral", parou para pigarrear e engolir a incômoda tosse tratada há algum tempo com homeopatia, enquanto conferia ligeiras palmadas em algumas mãos que desciam “descuidadas” nos bolsos de sua casaca risca de giz.

— Ora, e mais essa... — voltou-se a mim, desolado, e continuou:

— Invejo você, Raymundo. Eu, por diversos motivos, alguns fatais, tive de deixar a minha boa pena de folhetinista, minha amiga de tantos dias e confidente de minhas mágoas. Tenho saudades daqueles tempos em que ela brincava comigo, sorrindo, coqueteando, desfolhando as flores da imaginação, e levando-me pelos espaços infindos da fantasia. Os outros a esquecerão, mas eu me lembrarei dela sempre e basta isso para consolá-la!

Nisso, uma adolescente, morena cor de jambo, cabelos à rabo de cavalo negrejante, lábios grossos feitos para sorrir e olhos amendoados de graça radiante, pediu-lhe passagem. Vestia uma farda da escola pública meio surrada e suja, e trazia, bem junto ao peito, um conjunto de cadernos e estojo cor-de-rosa da Hello Kitty. Olhou para o escritor e pôs-se a disfarçar um sorriso perolado, coberto a mão de pequenos dedos com unhas devoradas, deixando escapar uma gargalhada gostosa, logo compartilhada por uma coleguinha, também risonha, a mascar chicletes. Alencar brilhou os olhos, a cumprimentou com duas cortesias do estilo, revelou um sorriso simpático em meio à barba estrelada de suor, temperou a garganta e, com os olhos por cima dos óculos, dirigiu-lhe a palavra:

— Qual a sua graça, mocinha, posso saber?

— Iracema, seo Zé... Iracema da Silva!

Volta-se para mim:

— E então, meu caro, você já percebeu como e por que sou cronista?

 

 

Nota do Autor

José de Alencar nasceu em Messejana (CE) em 1º de maio de 1829 e faleceu no Rio de Janeiro em 1877. A partir dos 25 anos, começou a publicar os folhetins (crônicas) intitulados "Ao Correr da Pena", nas páginas do Correio Mercantil. Após a sua saída do Correio, trabalhou, a partir de 1855, no Diário do Rio de Janeiro, jornal onde protagonizou a célebre polêmica com o poeta Gonçalves de Magalhães*. Escreveu Como e Porque Sou Romancista (autobiográfico) publicado postumamente em 1893. No texto, alguns dos trechos da fala de Alencar foram extraídos das crônicas de Ao Correr da Pena.

 

 

 

 

 

 

Numa dessas manhãs chuvosas em que me dá uma vontade doida de sair para o centro da cidade a fotografar prédios antigos, estava num dos locais mais queridos para mim: a praça dos Leões. Digo praça do Leões, por se tratar do nome afetivo, autêntico, o batismo do povo, ao contrário da denominação oficial de praça General Tibúrcio.

Sentei-me num dos seus bancos de madeira, sob as árvores enegrecidas, e pus-me a pensar no tema para a crônica do jornal. Afinal, o que escreveria para vocês?

Ao meu lado, a dona Rachel de Queiroz, que por ali também curtia a fresca na praça, ria-se da minha preocupação que já não lhe estranhava. Ao pescoço, desenhava-lhe apenas um discreto colar de contas. Tinha as pernas cruzadas, os braços de Clotilde levemente pousados sob curtas mangas, as mãos sobrepostas e, com vagar, discorria:

— Divertir um pouco o tédio alheio é tão gratificante... Ah, mas não pense em escrever sobre política... Não fale em política, por favor... azeda tudo! — sorrindo, bateu as pontas dos dedos nos lábios — Cala-te boca, Rachel...

Há pouco, dizia estar contrariada. Seus óculos haviam se quebrado e, por fim, desapareceram. Agora não, com óculos novos, já enxergava melhor. Sua pele bronzeada, sentia, conferia-lhe jovialidade, certo ar de eternitude. Ah, adorava aquela praça quando estava apinhada de gente. Dali, ela chegava a sugerir livros na habitual feira do troca-troca; observava, de longe, os devotos que se chegavam à igreja do Rosário a pedir favores, a buscarem uma pazinha qualquer; admirava o róseo Palacete Brasil, de quinze, e assistia ao entra-e-sai dos alheios colegas na Academia.

Aos domingos, entretanto, quando o movimento da praça diminuía, se enfadava, tentava trocar algumas idéias com o velho general que andava sempre muito distante, austero, contando histórias de guerra, recusando a todo esforço abandonar seu posto militar. Que jeito...

— É, Raymundo, tem dia em que eu daria dez anos de vida por um pedacinho bem árido de caatinga, um riacho seco, um marmeleiral ralo, uma vereda pedregosa, sem nada de arvoredo luxuriante, nem lindos recantos de mar, nem casinhas pitorescas, sem nada deste insolente e barato cenário tropical. Vivo aqui abafada, enjoada de esplendor, gemendo sob a eterna, a humilhante sensação de que estou servindo, sem querer, como figurante de um filme colorido.

Contou-me que, vaidosa, preocupava-se com sua estampa, mas, felizmente, em seus cabelos não havia um fio sequer fora do lugar...

— Você sabe, ando que não escrevo mais. As juntas estão um pouco duras... Mas, para meu consolo, recebo tantas visitas, menino... Algumas pessoas vêm tirar fotos comigo; outras, em dias de calor, vêm repousar a cabeça em meu colo... Dizem que é geladinho — sorrindo, corou a pele firme — outros, embora nem me conheçam, se apresentam, chamam-me por "minha tia", sentam em meu banco. Repare, além de uma cadeira, agora ocupo um banco... — graceja — e olhe que pouco sei falar em coisas delicadas, em coisas amáveis. Sou uma mulher rústica, muito pegada a terra, muito perto dos bichos, dos negros, dos caboclos, das coisas elementares do chão e do céu.

Voltou-me a falar da crônica. Perguntou-me sobre a derradeira. Avivava os olhos com interesse e disse-me, segurando pelas mãos, que vez ou outra haveria de não agradar, que ninguém neste mundo era perfeito, que todos tínhamos as nossas opiniões obstinadas e que havia, naturalmente, muito pé para discordância. Mas, se isso acontecesse, nem seria preciso fazer as pazes com vocês, jornaledores, pois, em seus corações, assim como no meu, só haveria espaço para amizade e silêncio.

Fazia-se tarde, despedi-me, ela franziu a testa:

— Ah, não me deixes, querido...

— Ora, dona Rachel, a senhora não sabe que eu sempre volto?

— Sim, é verdade, você sempre volta... mas é que eu tenho saudade de poder chorar "as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos" como uma Tangerine-girl...

 

 

Fortaleza, Ceará, 05 de março de 2007

 

 

Nota do autor

Rachel de Queiroz (1910-2003), cearense, a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras, autora dos romances O quinzee Memorial de Maria Moura, dentre outros, além de contos como "Tangerine Girl", também foi cronista do jornal O POVO. Alguns dos trechos acima foram extraídos de sua primeira crônica, a "Crônica nº 1", escrita para a coluna Última Página, na revista O CRUZEIRO, em dezembro de 1945.

 

(imagem ©fototeca storica nazionale)

 

 

 

 

 

 

 

Raymundo Netto (Fortaleza, Ceará, 1967). Graduou-se em Fisioterapia em 1989 especializando-se, mais tarde, em Saúde Pública e Administração Hospitalar. Em 1995, produziu o curta em animação Hogro: 100 anos de cinema (em parceria com a Casa Amarela/UFC) indicado como melhor argumento em alguns dos festivais de cinema no país. Em 1996, produziu as tiras em quadrinhos Os Fitomanos, ainda inéditas. Publicou diversos títulos em cartilhas em quadrinhos na área de saúde e educação ambiental para a Prefeitura de Fortaleza, Governo do Estado do Ceará e outras instituições com fins educacionais. Em 2004, seu romance Um conto no passado: cadeiras na calçada ganhou o I Edital de Incentivo às Artes da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará - SECULT, sendo lançado no ano seguinte. É colaborador do sítio policultural Letras&Livros e é membro do Conselho Editorial de CAOS Portátil — um almanaque de contos, tendo contos e cônicas publicados também em revistas impressas e eletrônicas (Jornal da Poesia, Conexão Maringá, Letras&Livros, Portal Amigos do Livro, Cronópios, etc.) noutros estados do Brasil. Tem um livro de contos inédito e é cronista convidado do caderno Vida & Arte do Jornal O POVO. Atualmente, trabalha com elaboração e execução de projetos gráficos e literários.