CONTEMPLAÇÃO DO NOME

 

 

"A circulação do poema

sem poeta: forma autônoma

de toda circunstância"

(Carlos Drummond de Andrade,

Desligamento do poeta)

 

 

O velho taciturno

(estátua contemplando a calçada)

engole o mar, que o engole.

 

Ninguém será capaz

de secar a lágrima

escondida, resistente,

em seu corpo de pedra

 

Aquela gota de água

salgada entre tantos detritos

de minérios

(e outros segredos

da terra distante,

da lagoa e da enorme fazenda)

é um ínfimo mas possível

contato

com as ondas que suas costas

pressentem pela brisa.

 

Quem foi e será capaz

de incomodar

aquele nome

com apócrifos

(epígrafes) e placas

de avenidas?

 

 

 

 

 

 

O CASULO

 

para Eduardo Lacerda

 

As traças traçam todos os assuntos.

Sem nenhum critério de escolha

traçam as folhas avulsas, os rascunhos,

os recados com nome, telefone e

aniversário, as antigas fotografias,

os jornais e as revistas literárias,

os cem menores contos brasileiros,

marca-páginas, enciclopédias, dicionários

de bolso, certificados de melhor romance,

vencedores do prêmio jabuti,

letra só e sobre as letras do caetano

veloso, encartes de cds, diários secretos,

agendas rabiscadas, envelopes vazios,

páginas brancas (ainda sem tinta),

passaportes vencidos, documentos confiscados,

direitos políticos cassados,

o álbum de figurinhas do seninha.

as traças traçam todos os papéis

da casa. impossível pedir uma pizza,

descobrir a safra do vinho

ou acertar o relógio digital.

As traças traçam outro dia de folia,

rasgada, o eco do espelho,

o mínimo, medianeira, se lá no sol,

as raízes que eu não tive

e tantas outras edições limitadas.

As traduções dos clássicos traçadas

mantêm as duras capas ocas

sem reedição comemorativa,

sem fac-símile do original.

esgotada a edição de sagarana

(não revisada) com três contos a mais.

A biblioteca toda é só carcaça

alexandria ao fogo: esquecimento.

porém, nossa vingança (pretendemos)

será, ao todo, muito mais brilhante.

contra a grande ameaça de extinção

desta estranha sanha (o ser poeta)

criaremos juntos (futuro próximo?)

o vôo de uma terrível borboleta.

 

 

 

 

 

 

SECRETÁRIO DO ESCRITÓRIO EXEMPLAR

 

1.

desordem: notas fiscais

 empilhadas

em fichários

nos arquivos. nostalgia

da sinfonia

metálica das teclas

da olivetti.

um salário, disse o chefe,

máximo

neste mês

                 mendigo

mas sincero.

 

 

2.

o mesmo texto pronto:

mudo a data.

a mesma práxis reta:

retardada.

na pausa pro café

                                 sem graça

alguém conta anedotas.

 

 

3.

o acrílico da régua, reparo,

amarelou.

o tempo não bate cartão

mas trabalha e

 carimba

logo sua marca.

a caneta-tinteiro

rubrica automática.

que deus seja

    mofado

entre meus papéis.

 

 

 

 

 

 

SANGÜÍNEO

 

            para Caru

 

Não me importam

as galochas de borracha,

o futuro resfriado, os problemas

da enchente

na cidade de São Paulo

não me importam no momento.

Fecho os olhos

sob pálpebras (ou pétalas?)

sabendo que a vida

transbordará em meus

 

movimentos

 

vagarosos:

                sangüíneo,

encosto a cabeça sobre o travesseiro

e explodo — a lembrança

é uma bomba — num sorriso

sereno.

 

 
 
 
 
 
 
 
 

BANQUETE

 

Quereríamos um mesmo

e contínuo alimento (o

fim da ineficiente fome?)

se nos fosse obrigatório

desejar somente utilidades

para o lar.

A mesa arrumada, as velas

pingando um líquido

viscoso — um algo entre

leite e mel mas sem o

gosto da primeira infância,

só a infâmia sem forma

da cera.

E poderíamos, num embate

amistoso, esquecer nossos

gestos humanos e não

pesaria mais as mãos em

seu quadril nem os tapas

em minha cara. A chama

das velas e as ondas

sonoras fluindo no espaço

não ocupado por pratos,

copos ou flores.

Nossa última conversa

, contínua e mesma,

quereríamos casta. O

perfume gasto, a língua

morta e todos os pesares

contra a forte vontade (única

esperança nossa: os amantes)

de nunca parar de ruminar.

 

 

 

 

 

 

QUASE POLACO LEMINSKI

 

um recado quase claro; um sorriso quase sarro;

um chorinho quase samba; um malandro quase sábio.

 

                             uma brasa ainda quente na certeza quase quase.

 

um carinho quase caro; uma mancha quase esparsa;

um caminho quase sério; uma vida quase glória.

 

                         haverá espaço quase pra qualquer haicai no bolso?

 

 

 

 

 

 

 

DISCURSO EM PÓ

     

Em tempos de solavanco

Deposita-se esperanças

Na inércia.

 

Diante de imensa escassez

Só o excesso submerge

Válido.

 

O universo — para olhos

Crédulos — recompõe-se:

Astros celestes continuam

Suas revoluções e bactérias

Proliferam-se na água.

 

O universo — não

O humano — recompõe-se:

Não haverá de memória

Da carne morta

Nem um suspiro, nem um soco.

 

 

 

 

 

 

NIRVANA FOME

 

quisera abandonar

       metade

do dicionário.

quisera abandonar

        -me:

a função homem,

a função fática.

quisera

                             (e querer deve ser

                    bem comum

                    das camadas

 

                    mais imundas

                    das almas

                    mais elevadas)

       abandonar

o vazio

instaurado

entre um poste e outro

poste; um andar e

outro andar.

o vazio: camada

mais

nada entre uma vida

e outra

 

vaga.

 

 

 

 

 

 

BÚSSOLA

 

Num ato sou fraco.

No outro sou forte.

Não se desaponte.

 

 

 

 

A MULHER NO CORREDOR

 

1.

irredutível

 

 ela sobe as escadas

não olha      para os lados

 

 cavala!, alguém grita

irrefutável

 

 

2.

todos os machos sabem

as perversões-pensamentos

que ela sente em seu íntimo

 

e soltam uivos enquanto ela anda

(quase flutua)

irredutível

da escada ao corredor

 

os holofotes da passarela

(a visão masculina de uma vida-outra)

transformam os olhos frios

de modelo

em pérolas

 

mas ninguém percebe as lágrimas que escorrem deles

 

 

3.

não se lembra de nada

a moça

 

apenas anda e sabe

que o corredor é a única

geografia

possível

pós-escada

 

e não houve (pois não vê)

nenhuma outra existência

 

                                                                  lá no fundo, malícia, alguém grita:

                                                                  cavala!

 

 

 

 

 

 

BREVE COMO A VIDA

 

este poema embora

artefato, conquanto

artifício, aqui não pretende

ser nada mais que um símile

do desespero que grito no agora:

 

metonímico não saber o que fazer

com as mãos.

 

 

 

 

 

 

ESBOÇO DE ARTE POÉTICA

 

                   mas é assim mesmo, de incertezas, que se formam as pessoas. A rua alagada turva os pés dos meninos descalços, dos postes e dos homens engraxados. O leite e a gasolina  estão custando os olhos da cara e é por isso que  o prefeito usa óculos escuros — um vampiro, crianças e tabloídes gritarão. Nenhum escândalo imprevisto retirará o brilho das estrelas. O poeta vem bêbado no bonde, no táxi, no trem, no metrô, em todos os veículos. Sua saudade é chacota nas mãos de uma donzela que não vê beleza alguma no trabalho com as palavras. O poeta agora chora por saber que não aflora em sua amada um fogo insano. A labareda que propunha para ela só queima a alma de quem queira queimar-se na linguagem. Recluso, ele insiste no poema que elabora com o empenho de quem joga a vida inteira no papel. A vontade de juntar-se a todo mundo com um canto que incluísse a donzela, o inimigo, o outro lado, a família, a memória, o medo, a mitologia, a carne, a vergonha, o desastre, o espelho, o pano, o pão, a terra, o desterro faz de si um arquiteto. Em seu texto, entre linhas mal compostas que por pouco não detonam, o poeta grava a fome de propor uma cidade (rascunhada na infância em madrugadas de insônia) de mãos dadas com Pasárgada.

 

 

 

 

(imagens ©adusia)

 

 
Renan Nuernberger (São Paulo/SP, 1986). Graduando em Letras pela USP (habilitação em  Português e Alemão), participante do Projeto Identidade e  colaborador do jornal de literatura contemporânea O Casulo. Recebeu o  primeiro lugar, na categoria romance, do Prêmio Juvenil Ferreira de Castro (Portugal, 2005), pelo livro Adeus, Pasárgada, e organiza sua primeira coletânea de poemas. Pode ser encontrado no Esboço de Arte Poética.