Ao escolher como título para seu romance de estréia uma figura do jogo de cartas, Cecília Costa, até então jornalista e biógrafa de seu tio, o poeta Odylo Costa, filho, lançou mão, consciente e inconsciente, de um dos mais férteis mananciais simbólicos e alegóricos de tradição lúdica do ser humano, que nos remete a séculos e séculos de codificação que resultaram, no presente, nas expressões esotéricas dos arcanos maiores e menores do Tarot; em última análise, na capacidade de destrinchar a vianda intrincada do Destino.  O que é, sem dúvida, uma das ambições primaciais de todo ficcionista.

 

As Damas de Copas

Perderíamos um espaço precioso, esmiuçando as implicações da carta e o que ela figura ao lado de suas outras três companheiras, a de Espadas, a de Ouros, a de Paus.  Implicações verbais ou extraverbais. Pretendeu a autora o simples trocadilho que equipara copas a cozinha ou ironiza a básica função doméstica da mulher, da qual ainda não se libertou, mesmo em um mundo de revolução feminista e da tecnologia do forno microondas? Microondas ou não microondas, haverá sempre um forno; haverá sempre um fogão; haverá sempre o inefável ferro de passar, pesado e brutal, no passado, como lamenta o poeta Nei Lopes em um samba antológico, dizendo: "... mamãe, quando era menina, teve que passar/ muita fumaça e calor/ no ferro de engomar". Adianta espernear? É uma das perguntas do livro.

 

Malheuresement

 

Alguém tem de preparar a comida, alguém de esquentá-la. Se a tecnologia inventou uma máquina em que se põe sabão em pó e, tam-tam-tam-tam, beethovenamente, a roupa está lavada, ainda subsiste a infernal tarefa de espichá-la. E, se algum dia, tudo for cibernético, alguém terá de apertar o botão e esse alguém será uma mulher, provavelmente insatisfeita e com um calo no dedo. Sim, são considerações como essas, ou seja, como se movimentam as cartas femininas no baralho do terceiro milênio, embrião vacilante de um século impiedoso e ainda moribundo; o século que no seu apagar das luzes só deixou anátemas e ameaças; século que prometeu e não cumpriu; século que sorriu com crueldade ante o fracasso clamoroso das grandes e pequenas utopias.

 

Entre elas, a Revolução Sexual. Ao que o Século XX respondeu com AIDS, antes de se precipitar no controle da natalidade. A Revolução Social recebeu o troco do enrijecimento de todas as direitas. E o ridículo escapismo dos Hippies serviu ao faturamento da indústria fonográfica, cinematográfica e ao surgimento das griffes de calças rasgadas e imitações de fardas do exército americano. O império sempre contra-ataca. No meio disso tudo, a pobre mulher se viu acossada por todos os lados, ao invés de libertar do jugo feroz do porco chauvinista, ela, coitada, foi cair nas mãos ainda mais ferozes do sistema capitalista. Engels dizia que a primeira luta de classes é a do homem e da mulher. Mas o operário não vai pra cama com o patrão.

 

A perplexidade da mulher que abandonou uma canoa furada para embarcar em outra mais furada, ainda, numa generalização simplista, é o que mostra Cecília Costa, quando embaralha e desembaralha os destinos de (o título é metonímico) todas as quatro damas do baralho, na verdade, todas absorvidas, conscientemente, no plural do título. Com alguma astúcia analítica, poderemos dizer, esta é a dama disto, esta é daquilo. Mas o que importa na narrativa veloz e descentralizada da autora é a forma que as cartas (perdoem o trocadilho) trocam figurinhas a partir de uma sofisticada narrativa no traiçoeiro foco da primeira pessoa. Ouros, Cecília. Mais que copas, talvez.

 

 

 

 

agosto, 2005

 

 

 

 

 

Ildásio Marques Tavares, professor titular de Literatura Portuguesa da Universidade Federal da Bahia, aposentado, formou-se em Direito e em Letras, pela mesma universidade. É ficcionista, dramaturgo, jornalista, tradutor, ensaísta e letrista de música popular brasileira. Mais aqui.