©pablo picasso
 

 

 

 
 
 
 
 

"Dois amantes enlaçados passam por mim/ e agora sim eu me sinto um trapo.'' Os versos da bela canção Heaven knows I'm miserable now, de Morrissey, convivem, no livro Carta aos anfíbios, de Ricardo Domeneck (um jovem poeta de 28 anos de quem, arrisco, ainda ouviremos falar muito) com outras citações que alguns acharão mais dignas de um livro de poemas por trazerem as respeitáveis assinaturas de Ludwig Wittgenstein, Elizabeth Bishop e Edmond Jabès etc. Ou a sofisticada poeta norte-americana Rosmarie Waldrop, autora do ''once human always an acrobat'' que dá título a esta coluna.

 

Contudo, nada mais avesso ao projeto poético de Ricardo do que o estabelecimento de tais divisões e hierarquizações, essa dicotomia entre o ''alto'' e o ''baixo'' na cultura, essa balança que coloca, de um lado, roqueiros e, de outro, filósofos e poetas. Se aceitarmos tais separações como válidas, já demos o primeiro passo para a incompreensão do que esse pequeno volume, não por acaso ''anfíbio'', traz de inovador.

 

Para começar, a própria imagem do anfíbio presente no título, ''habitante do duplo em unidade'', surge tanto da leitura de Mircea Eliade quanto do Amphibian, da islandesa Björk. Além disso, essas hierarquizações só podem soar estranhas para Ricardo, que, em Berlim, onde vive, alterna leitura de filosofia e poesia com o trabalho como DJ em clubes noturnos. De certa forma, o grande recado dessa ''carta'' é a vontade anfíbia de superar as dicotomias obsoletas com que a mente ainda se resigna a trabalhar.

 

É sempre difícil (e talvez nem seja desejável) enquadrar e classificar um poeta novo, ainda mais se, em vez de acomodar-se às principais linhas de força da poesia brasileira, ele traz ''virtualidades alteradoras importantes'', fruto de várias vivências fora do país, entre exílio e nomadismo, a que o poeta se viu obrigado, ou impelido, desde a infância, e que agiram definitivamente sobre sua sensibilidade. É o que se nota, por exemplo, no poema ''Sempre o exílio'', onde Ricardo constata: ''Surpreso a quanta terra/ não me pertence,/ que engraçado descobrir (mais/ uma vez) que trocar de país/ não significa trocar de corpo/ e a mudança/ de língua/ é acompanhada pela permanência/ de produção/ da mesma/ saliva''.

 

Sendo assim, o mais proveitoso será, talvez, realizarmos uma tentativa de identificar alguns elementos com os quais se forma essa voz. Tomemos o poema ''Separatismo'', por exemplo, que traz alguns dos materiais privilegiados pelo autor na construção de seu texto. Ali, há, em primeiro lugar, um corpo exposto aos movimentos ondulatórios do desejo e da reclusão, exposto à dor e à delícia das expectativas: ''Seu olho fisga-me dentre/ os outros repuxa a pele/ e reabre o corte faz-me/ acreditar num anzol/ dedicado à minha/ boca enquanto a/ expectativa infecciona/ sob minha língua repetindo é hoje/ é hoje (...)''; a partir desse ponto, o poema passa a incorporar outro material caríssimo ao poeta: a referência cultural, que, poundianamente, assume o poema ''como lugar espelhante das multiplicidades culturais e poéticas de outras escritas'', mas sem fazer da citação um recurso à autoridade, reconhecida por Ricardo como inútil (a autoridade, não a citação): ''poemas não o impressionam inútil/ citar aquela poetisa polonesa de que você gosta tanto/ discorrer sobre a palavra yes nos poemas/ de e.e. cummings falar sobre a morte estúpida/ de Ingeborg Bachmann ou mesmo sobre como/ ele adoraria Yehuda Amichai ele lê panfletos/ anarquistas mimeografados e textos de escritores/ judeus cheios de sarcasmo''; também o impacto da nova política, o inesperado protagonismo da religião na nova ordem mundial e na vida cotidiana de um século novo, fruto de uma quantidade antes impensável de possibilidades de deslocamentos, interessam a este poeta como se lerá nos versos finais do poema: ''é bom ouvi-lo sobre a infância na/ Berlim dividida os pais anarquistas o erro/ a reunificação (...)/ pai alemão mãe/ judia passar o sábado todo assistindo-o/ vê-lo observar o sábado pedir pelo/ que é kosher sim querido começa/ em alguns dias a Chanukka quando em/ um cerco inimigo ao templo o óleo/ suficiente para apenas um dia queimou/ durante oito a perseverança do óleo me/ cai bem''.

 

Comentei, mais acima, que o ''recado'' da ''carta'' seria a superação das dicotomias. Uma das mais comuns na poesia brasileira é aquela que costuma contrapor objetividade e subjetividade. Também a ela, Ricardo escapa habilmente, e não será exagero aplicar a ele as palavras com que o poeta e crítico Marcos Siscar flagrou certa originalidade de Ana Cristina Cesar: ''O artifício interrompe o fluxo espontâneo da experiência, do mesmo modo que a materialidade formal do 'corpo do poema' é interrompida pela erupção do corpo próprio''. Outra falsa divisão, a que opõe estilo coloquial e estilo elevado, é driblada habilmente nesse livro. Sem a ingenuidade dos que pensam que o ''coloquial'' é o ''autêntico'' e que o ''elevado'' é o ''artificial'', Ricardo faz uso de um coloquial que nunca oculta seu caráter de artifício, através da utilização de uma sintaxe trabalhada por cortes bruscos e anacolutos: ''passe as cartas por baixo/ da porta se as há// Infelizmente não poderei/ ir a São Paulo por/ enquanto mas com/ certeza nos veremos/ antes da sua/ partida beijos// em vigas de partir/ nas vias do por vir// Não há transição mais/ sutil que a esquecida/ à meia-noite/(...)/ apague a luz cavaleiro digo cavalheiro''. Por outro lado, Ricardo, saudavelmente, não tem medo de palavras mais raras: ''a densidade em quaisquer hierofanias/ jamais excede/ a que meu corpo apresenta/ imerso na banheira''.

 

O livro de certa forma deseja e celebra a possibilidade de uma ''relação justa/ entre dois corpos'', mas não sem reconhecer o fato de que tal celebração é um refúgio quase melancólico, contra um mundo onde ''mesmo o cadafalso exige/ da minha perna/ a perfeição'' e ''o rosto encolhe/ diante da navalha'', onde ''Cada cavalo montado a campo/ carrega em si a possível/ quebra de meus ossos;/ todo touro investido na arena/ contém em si uma iminente/ fratura do meu crânio;/ mas/ nem todo peixe/ está sujeito/ à minha isca,// tão pouca pele/ alheia estremece/ ao meu toque''.

 

É lícito preferir-se a segunda parte do livro, embora a primeira contenha belíssimos poemas, mas não há dúvida de que Carta aos anfíbios é uma das grandes estréias dessa geração que, antes mesmo de completar 30 anos, já insinua aqui e ali sua força e originalidade. Trata-se de uma geração, ou ao menos de um grupo dentro de uma geração, que, mais do que responder às propostas e questões das gerações anteriores, evoluiu a partir das turbulências causadas em sua sensibilidade pelo contato com a poesia estrangeira. A nova poesia norte-americana, de Creeley, Frank O'Hara aos language poets e aos mais novos ainda, o neobarroco latino-americano, a poesia francesa de um Emmanuel Hocquard, de um Dominique Fourcade até Nathalie Quintane etc., a portuguesa Adília Lopes, a poesia argentina novíssima etc. têm mais impacto sobre essa geração, sem dúvida, do que questões fundamentais para gerações anteriores, como nacionalismo, o humanismo utópico, o experimento com os aspectos visuais da palavra ou a crença na ''espontaneidade''. Mas repito: não digo que todos os autores com menos de trinta anos se enquadrem nesse modelo, é óbvio. Refiro-me a uma pequena parcela dentro dessa geração, falo só dos anfíbios.

 

 

 

 

[Texto publicado no Jornal do Brasil/ Caderno Idéias/ Rio de Janeiro, 30 de Julho de 2005.]

 

 

 

 

 

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março, 2006

 

 

 

 

Carlito Azevedo nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. Tudo o mais é especulação. Publicações: Collapsus linguae  (Rio de Janeiro: Lynx, 1991); As banhistas (Rio de Janeiro: Imago, 1993); Sob a noite física (Rio de Janeiro: 7Letras, 1996); Sublunar (Rio de Janeiro: 7Letras, 2001).