©frederic cirou
 
 
 
 
 
 
 

A poesia é, no novo livro de poemas, Óbvio, de Moacir Amâncio, formada de territórios e percursos que intentam, sob o aparente conforto do conhecimento da palavra exata, fundamental, um modo de fazer ouvir as sílabas dobradas numa só. Ao criar na palavra — muitas vezes em estado de dicionário, como queria Drummond, em sua complexa tensão entre exatidão e multiplicidade — esse efeito dobrado, esfumaça o sentido, que teima em escapar através de símbolos e signos que povoam a poesia.


O que poderia ser, assim, tão óbvio quanto a palavra, que pode ser lida no branco da página, perde-se por entre as dobras do texto poético. O óbvio torna-se, assim, ilegível, obtuso. Daí a reiterada coleção ou lista de objetos-continentes: garrafas, vasos de cerâmica, copos e pratos vazios. Dobrando essa condição de falta, os espelhos comparecem na poesia, assustadoramente, como não podia deixar de ser. Os espelhos e suas irmãs: as janelas, as molduras e as salas de uma casa imponderável que, porque estão vazias, além do terror dessa solidão, revelam as possibilidades de contornar, definir, construir, através da palavra, o sentido, matéria de que são feitos os sonhos do poeta. O texto poético torna-se, por essa estratégia — de assumir o vazio como espaço de criação — tabuleiro de xadrez, metáfora do texto e dos jogos que ali são encenados com a palavra.


A mão do poeta grafa, pois, um círculo. O compasso, a medida, contorna a palavra e faz dela — avançando ou recuando na composição das coisas — guerrilha contra o vazio. E, por assombro, nele, por dentro, marca com um ponto, solitário e desesperado, revelando sua confiança no poder da palavra. A poesia é, paradoxalmente, uma bandeira, uma profissão de fé e uma manifestação de incredulidade. Na poesia, como na vida, um ponto é letra. A letra é a tentativa de arquivar coisas que, apesar dos esforços, escapa entre a ponta (do lápis, da lança) e o ponto. Entre a intenção e o gesto, a escrita marca o vazio da página, inútil, porém. Porque a poesia é o instrumento inútil do cerco ao sentido.


Como o âmbar dentro do qual nos reservamos, a sala dentro da sala, as constantes referências aos percursos e becos sem saída da linguagem, também, de forma paradoxal, as palavras abrem caminho para o desdizer, o desfazer, o desfiar. As parcas matemáticas do poeta, é preciso confessar, mais escondem que revelam. O interior das coisas, das palavras, compõe-se, assim, em contra-espelho, o não-espelhamento, a não-representação apresenta-se, pois, nada óbvia. Talvez por isso, o entalhe, as curvas dos caracóis, as oscilantes coleções de olhos e caranguejos apontem para uma tentativa inglória de organizar e descrever, poeticamente, a luta do poeta com a palavra.

 

Longe de esgotar-se, a poesia de Amâncio, entre o copo e o prato, vazios, delineia uma fome e uma sede universais, que são próprias do poeta, do humano que intenta se acercar do rumor que o desenho da letra sobre o papel pode fazer. Toda poesia é necessária, nada óbvia e permanentemente desesperada. Mesmo na desiludida consciência da impossibilidade, o poeta sente, ao revés da tentação do espelho, a palavra tal qual ela veio ao mundo, encaracolada.

 

 



ÓBVIO
De Moacir Amâncio
Travessa dos Editores, 123 páginas

 

 

 

 

abril, 2005
 
 
 
Lyslei Nascimento é professora de Língua e Literatura da Faculdade de Letras da UFMG.
 
 
 
 
(Texto publicado originalmente no jornal Estado de Minas)