para Antonio Carlos Secchin

 

 

 

 

Bem ali, após o teto das palhoças, as areias alvas do rio, as águas meladas de lua. Paula observa as areias, as águas, os matos da margem. Pássaros noturnos movem-se na folhagem, largam sons que tremem e brilham como o rio. Geme no céu, do outro lado da cidade, a luz da torre de TV. Os carros passam na pista distante. A varanda da casa de Paula, à meia-noite, é paz na rede esmagando o travesseiro. Paula, bebendo vinho, ouve o ronco do filho no quarto, borbulha nesse branco conforto.

Até que, seca, a mão bate, espreme-lhe o pescoço.

 

 

©yang tan
 
 
 
 

 

 

para Nilto Maciel

 

 

1

 

 

Bartolomeu, o guarda-noturno, arrodeia o quarteirão uma improdutividade de vezes. Quase sempre vai pela calçada, lento, solitário  murcho. Conhece os caminhos da noite: sabe de seus segredos e ruídos. Consegue decifrar, por exemplo, o mistério aceso nos olhos do gato alongado sobre o muro pintado de política. Vezes estaca o passo para assistir à porrinha dos ratos disputando o lixo caído do cesto.

Bartolomeu, guardando distância respeitosa, todas as noites tem mantido conversa no portão com a última empregada na rua a se recolher  Adelaide. Bebendo agora o luar, que põe alvura nos telhados, Bartolomeu recorda-se do que Adelaide, sacudindo-se toda, lhe declarou há poucos minutos atrás:

Eu estou precisando mesmo é de um amor, homem de Deus!

A essa altura, o gato de há pouco já atravessou algum telhado atrás de um canto para, como todo mundo, adormecer. Os ratos já estarão no morno dos esgotos. E Bartolomeu segue trilando o seu apito  grilo da noite.

Espanta-se neste momento com a janela aberta de uma das casas no lado oposto ao que anda, a língua da cortina roçando a noite. Suspende o passo, a respiração  colhe ruídos. Silêncio. Apenas um vento brando sacode as folhas do jambeiro em frente ao número 48. Bartolomeu atravessa a rua, chegando-se ao muro. Já agora, por precaução, guarda o cabo do revólver no morno da mão. Alcança, enfim, o portão da casa: a luz da lâmpada, vinda da janela aberta, tinge de branco o tapete no terraço. Da sala vem uma tosse  e o dono desta enfia o rosto por entre a cortina.

 Professor Zen?!

 Pode dizer, Bartolomeu.

 O senhor anda dormindo de janela aberta?!

 Não, homem. Abri pra refrescar um pouco. Estive lendo. Amanhã cedo dou aula na faculdade.

 Ah!... Qualquer coisa, estou por aqui.

 Tudo bem.

 Boa-noite.

 Boa-noite, Bartolomeu.

Bartolomeu retoma seus passos pela calçada.

Observa nas portas, portões, eleva a vista para as janelas do edifício na esquina. Um guarda-noturno espreita sempre o perigo. E este Bartolomeu espanta com o grilar do seu apito: trrriiii... trrriiii...

Um choro de criança irrompe na noite (com ele o lamento de um armador). Vem da casa amarela próxima ao edifício, o cesto do lixo derreado na calçada. Bartolomeu, na penumbra, encosta-se no poste: acende o cigarro e os pensamentos. Aquele choro o transporta para o outro lado da cidade, no distante, pra bem perto da filha que, como ele, deve agora estar sonhando. Pensar na filha é trazer também para junto de si a mulher. E isto lhe dá sobressalto: sente-se um traidor por seus atrevimentos com Adelaide. Cria um paralelo: arrepia-se com a idéia de a mulher o trair. Os pensamentos se misturam, se diluem  e são sacudidos para longe com a ponta do cigarro.

O que vem agora martelar sua cabeça é a frase de Adelaide: "Eu estou precisando mesmo é de um amor, homem de Deus". E Bartolomeu se sente este amor, o que o conforta, preenche.

 Ainda te pego de jeito, danada.

 

 

2

 

 

O episódio da janela aberta na casa do Prof. Zen alvoroçou o espírito do guarda. E se Adelaide, a partir de agora, deixasse todas as noites a janela do seu quarto apenas encostada? Hein? Então ele, Bartolomeu, viria pisar a grama do jardim de Dr. Cândido, patrão de Adelaide, enfiando-se pelo corredor na lateral da casa, onde há uma samambaia derramando-se do beiral, atrás de alcançar o quarto no fundo do quintal. Aí era empurrar a janela e saltar para os braços de Adelaide.

 Certo.

E de fato, dias depois, Bartolomeu passou a descolar na madrugada o portão do Dr. Cândido. Permanecia no quarto da amante o suficiente para um bom cochilo  e depois, aliviado, saía para a calçada, o canto de um galo abafando os seus movimentos.

Até que a insônia do Prof. Zen, certa noite, descobriu a saída do guarda da casa do médico. Zen, então, fechou-se, sem ser percebido  e Bartolomeu seguiu trilando o apito, despertando alguns cachorros da vizinhança, que começaram a latir.

Como sumira uma calça do varal do Prof. Zen, este achou de bem chamar o guarda para um entendimento. Bartolomeu, então, abateu-se:

 Professor, o senhor pensar uma coisa dessa de mim...

 Foi tu mesmo, filho da puta!

Bartolomeu, dia seguinte, sumiu do emprego.

Agora, o novo guarda, vez por outra, já se demora no portão para a conversa com Adelaide. Antes de seguir na noite, lento, solitário  murcho.

 

 

 

Rinaldo de Fernandes é autor dos livros de contos O caçador (EDUFPB, 1997) e O perfume de Roberta (Rio de Janeiro: Garamond, 2005). Organizador dos livros O clarim e a oração: cem anos de os sertões (São Paulo: Geração Editorial, 2002), Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro (Rio de Janeiro: Garamond/Biblioteca Nacional, 2004), Contos cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea (São Paulo: Geração Editorial, 2006) e Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (Rio de Janeiro: Garamond, 2006). Já colaborou, entre outros, com O Estado de S.Paulo, Jornal da Tarde e Jornal do Brasil (caderno "Idéias"). Colunista dos suplementos literários Rascunho, de Curitiba/PR, e Correio das Artes, de João Pessoa/PB.