De Impuro Silêncio

(inédito, saindo pela azougue editorial, em novembro de 2005)

 

 

 

 

novamente

noite:

janela e luz de vida alheia

 

(o que queria

dizer

já falou

quieto

 

e nunca o galo sonhou com tanta pressão)

 

 

amanhece:

sol sacode camas

 

florestas queimam

as pestanas

 

 

 

 

***

 

 

 

 

folhas flutuam

trazem tanto cheiro doce

como farelo seco

 

verde ao vento

ou cinza no chão

 

folhas chegam na varanda

vazam segundos de especulação

ruído

cansaço

 

verde vento

a tormenta

lado a lado com a rosa

tempestade pétala

nuvem perfume

 

copo cheio sobre a mesa

ligeiramente

inclinada

 

 

 

 

***

 

 

 

 

chuva que lava

gramado de verão

 

dias finos finitos

e fundos de quintal

sem fim

 

prece retocada aos domingos

 

fé em constelação

 

que se insinua

a todo instante

 

corre vento

chuva crua

verdejante

 

 

 

 

***

 

 

 

 

os melhores momentos

são também tensos

e terrenos

como os piores

 

o sol que torna o dia

bonito

escalda

 

a brisa que tempera

despenteia o telhado

 

há riso

onde cicatrizo dor

 

 

 

 

***

 

 

 

 

há silêncio

que não cabe na boca

 

palhaços que não choram

no fim

 

dia que não pimenta a noite

 

almofada muda

onde deita o sonho

 

sala branca

bisturi e esparadrapo

 

 

 

De Cinza  Ensolarada

(rio de janeiro, azougue editorial, 2003)

 

 

 

 

papel amassado

de seda e silêncio

 

dor deixada na pele de uma maçã

tv solidária

 

riso

roubo

rouquidão

 

alma de lavar

muro de lamentação

 

vazio

de navio

desesperado

no mar

 

 

 

 

***

 

 

 

 

Da consciência

tirar o peso

o leve do lenço

do inseto o atrevimento

 

o cisco

do colete

tirar

da pasta o ruminar

dos documentos

 

tirar da manchete a mancha

da sede

pedras

do vento

o assobio

 

tirar da alma

pitangas

e do pão

silêncio

 

 

 

 

***

 

 

 

 

a lágrima de um pai

que esperou para ver

o filho velho

 

a flauta de uma criança

caindo

 

o dia de terror

desabando

 

como helicônias são perguntas

neste pátio

sem pavio

 

 

 

 

***

 

 

 

 

 

filhos de árvores  desconhecidas

vilas lugares

que não existiram

não estivessem eles

unidos

para repartir

pão telefone banho

carinho

almofada

alma

 

depois

é assistir ao corpo gastar

e passo lento buscar o campo

o silêncio

 

até um ver o outro parar

num dia comum

com a novela da tarde

um parar

e o outro assistir

sem saber

o quê

e boquiaberto

 

 

 

 

***

 

 

 

 

parar para fundir

os bilhetes num tecido

 

reunir cenas coloridas

doces machucados

farelos de pão

com as mãos

 

refazer trajeto de pássaro entre antenas

de gota da folha ao chão

 

voltar-se

devagar para os botões

 

abotoar

desabotoar

 

sem sabor algum

 

sem fim

 

 

 

 

 

 

 

De Chave de ferrugem

(são paulo, nakim editoril, 1999)

 

 

 

 

olho navega família

nos cômodos de pó

 

sonho em outra língua

ou quintal sem infância

 

o mesmo amarelo

 

chave de ferrugem

silencia  aporta e aponta retrato

 

 

 

 

***

 

 

 

 

beijo que cumpre rios

reza perda sem febre

 

coração

desafina a falta

de fotograma iludido

 

aqui ainda tudo

é terremoto e lagoas

janela e asa quebrada

 

não há rumor

 

a cuia de digitais ensurdece

sorriso enche piscina

pássaros voam e psius fazem compra

 

o sol vai e vem, nunca voltamos

 

 

 

 

***

 

 

 

 

fala e rua

uma tentação de música

quase iguais

sem dono

 

novamente o frio

vento

árvores tremendo

jardim cães saracuras

 

uma mulher bonita

um menino pobre

 

rua e fala

de asfalto quase iguais

lábios topázio

e a semelhança cinza dos olhos

 

 

 

 

***

 

 

 

 

corpo sem filho

sem o giro das luas

ou pio de pássaro

 

sem corte

uma dor esmagada

 

na boca

prata

pimenta

não choro seco

 

eco

não beco

 

 

 

 

***

 

 

 

 

na manhã seguinte à morte

haverá um jornal

deitado na grama como este

 

latido

abelha silenciosa

rosa

 

 

 

(imagens ©misha gordin)

 

 

Ricardo Lima nasceu em Jardinópolis (SP), em 17 de novembro de 1966. É poeta e jornalista. Sobrevive em Campinas e vive em Morungaba (SP). Publicou Primeiro segundo (S.Paulo: Arte Pau-Brasil, 1994), Chave de ferrugem (S.Paulo: Nankin, 1999) e Cinza ensolarada (Rio de Janeiro: Azougue, 2003. Em novembro de 2005, sai, pela Azougue Editorial, o livro inédito Impuro silêncio. Mais aqui e aqui.