carta aberta

farei minha casa de árvore
no bonsai.

janeleira como olhos,
buliçosa,
araucária cujos galhos
serão verdes cobras...

mas o veneno será todo meu.

vou contente,
saio sem nove horas.
vou lavar minhas únicas roupas
nos arroios da saliva,
quará-las à luz da lua.

farei minha casa de árvore
no bonsai.

amarelecida de fruta-cor e mijo,
a página,
(a língua que lhe falta)
indaga-se:
—  onde estás? onde estás,
tu que sangravas tanto?

escreva-me de mim o que
quiseres, página,
não me ouço mais!
assino-te em branco,
fundo tuas margens
num fio de catástrofe.
as palavras já são calhaus.

longe, fui colher insetos
                  através da noite

e afio minha faca no orvalho

 


o poeta

"Escrevo para tornar-me eterno, ao mesmo
tempo em que me entrego à morte".
                                Eu aos 15-16 anos

é outono — sem lamento — na cabeça do poeta.
as folhas caem, são esturricadas de geada.
o caderno de estudante não me avexa mais.
vou jogá-lo fora mesmo assim. já é tempo de novo.

engraçado quando eu acentuava, compulsivamente,
o pronome tu.
talvez uma faca em você,
uma flechada diagonal no assombro de viver. sei lá.

aprendi outros nomes e jeitos de enunciar,
novas oitavas:
imensidade.
densidão.
arrebóis.
 
densifloro,
soube com os girassóis:
não há beleza alguma
em estar morto.

a glória não passa de uma fotografia
ou de um poema

 


espantalho

"Meus mares interiores ficaram sem praias".
Federico García Lorca

o vento cardíaco
carrega um homem sem voz
que não sabe se encostar
e morrer.
as ventoinhas, a caminho
de serem pedras,
tremem como espinhas de peixe
não tremem
e jazem malferidas
sem sofrer. ai!
só a respiração do trigo
é minha amiga.
o azul cerúleo, que transporta
homens e pássaros, a mim ameaça
— é quando não durmo.
sempre que gepetos à relha
mexem a terra,
conto os minutos
para a cova que me abrem. ai!
essas coisas que vejo sem retinas
existem. não há dúvida!
meus olhos são ossos da cegueira,
caminhos pelo escuro, moscardos cegos.
vou abandoná-los, de todo em todo
não me estiolaram.
serei mais lúcido que o sol ao meio-dia.

ó noite, por terrível que sejas,
no plástico preto
com que asfixias tudo
há furos de estrelas!

moro no plantio,
próximo ao galpão, à colheitadeira.
moram em mim de passagem
como num hotel barato.
fui feito para o terror,
mas não pude senão me assustar
(não dou sombra ou frutos ou coroas.
não sou dafne
em sua grande tristeza vegetal).
dois corações se debatem
em meu peito:
uma maçã cheia de larvas,
mordidas, merda de gralha;
outro que é ninho e fuga e
salsugem do mar nunca visto.
penso através do susto, do mofo,
do amor, da inveja.
meu sorriso de barbante
é uma cicatriz perplexa.
não saio andando porque me faltam
músculos.
meu movimento, às abelhas do sol,
é parar sempre,
estacado sem o céu e o chão.
e no entanto, caso não me traia
e me devolva a solidão,
migro como meus inquilinos.
tenho paina e feno nas carnes.
meu sangue é a água quando chove.

será que estou vivo?
minha voz dobrará horizontes?

deus, dai-me raízes!
um dia terei raízes como que asas

 


epifania

deus criou o mundo em seis dias.
no sétimo
o Homem criou deus.

talvez ele exista
a qualquer  momento, neste agora

talvez, adeus,

morra nossa única morte

 


manuel,

não só crianças, passarinhos
e andarilhos (cães vira-latas incluídos)
têm o dom de ser poesia.

ademais os palhaços, os funâmbulos,
as bailarinas...

em minha infância
fugirei sempre com o circo

 


ademar moletta

"Incompetente para as lágrimas,
choro tinta"                           

                          

tua última imagem foi cor-de-púrpura,
ouvi dizer,
a aurora
no instante mais terrível.
nunca compreendemos o fim
das coisas.

o bom coração funcionava mal.
imagino, em disparate, o músculo
parado, pairando
para observar estrelas (é possível?),  
a vida:
         égua xucra, mal-resolvida,
que passa sensível, em pêlo,
sem saber pra quê...

nem sei o que dizer!
escrevo no fervor do sangue,
no de repente das notícias trágicas,
como a morte que mata
sem cortes marciais, sem trombetas,
sem tiros de escopeta,
tribunais de apelação, revisões ortográficas,

sem ouvidos
para nosso grito na calada.

atuamos em campos diversos:
o mafioso (como chamavas carinhoso à helô, e já não te lembras)
e a autoridade.
mas estávamos encharcados da mesma dor
e esperança.
apanhei, odiei sem excetos tua raça
até estar de posse daquele teu riso,
sem farda, nu de escárnio...

e xingávamos o juiz no brasil-argentina
e, entre sussurros, apertamos as mãos...
ao vê-lo chorar,
pensei na montanha
onde o desespero acha um berço,
ou num escolho debruçado
sobre si mesmo
para aninhar um peixe que adoeceu...

a chuva lá fora tem gosto de uréia.
algo deu errado
e se arrepende.

olhar teu corpo inerte 
me revolta:
onde estão os olhos que brilhavam, à noite,
sob as pálpebras?
onde tua boina de lã, último presente
da mulher amada?

esta grande árvore tombada
apenas finge ser tua ausência.
o que fazer agora?
me ensina, coronel!

serás, talvez,
o último a quem bato continência

(18/06/2005)

 


anaforia

"A tarde talvez fosse azul"
Drummond

porque somos feitos de dia-a-dia,
e não de metafísicas,
vinicius de moraes se tornou melhor poeta.
porque estamos evisceradamente sós
e por amarmos tanto as pernas
e as bocas entreabertas,
dançamos ao vento,
alucinados e comovidos
como árvores que à noite se deitassem

 


dias

o galo grita antes da aurora,
urge não morrer.

mas é o bem-te-vi quem delata
a manhã, nos entrega
a todos.

a cigarra apita o fim do expediente
(sapos acendem seus cigarros e tragam).

sozinha, uma aranha ébria
tece os grilos da noite, música
ao ensejo do veneno.
o escuro se intoxica,
enquanto estrelas
quase vencerão o dia

mais uma vez,
a serpente sem vértebras
está enrodilhada
no abismo vocal, coletivo,
de nosso único galo.

é noite,
não viemos a lume.

azul-violáceo,
o grito do galo
(como dança flamenca)
não preparou a aurora

 


pequena saudação às rosas

I

a pequena saudação às rosas que,
em propriedade medicamentosa,
cânforas seriam, ou uma quintessência
almiscarada...
não.

um botão abre como a jaula:
há dor nesta liberdade.
o cheiro pútrido-perfumado
dos que ainda enganam
e são enganados,
sabem?

aquele olhar de jasmim que marca
na página um galanteio de drummond,
ou o cipó amarrado aos cabelos.

não se esqueçam dos espinhos,
monstros de olhos verdes,
a indicar a febre-paixão.

o que é massa de sonho
entre os pés e o chão,
é também o bafo, o sarro dos dentes,
o inquieto tesão...

a despedida.

as grandes paixões
escorrem entrededos feito água
e não constroem casas,

não geram filhos legítimos,
não acordam seguras, 
não pedem a mão


II

como a palavra precisa
para a imprecisão do que sente?

como, no íris acérrimo,
na chama doente
tal o céu,

traduzir
o beijo de língua
sem línguas?

como?


III

a paixão é uma hipermetropia
que senta nos óculos

juntos
somos maiores que o mundo
que as circunstâncias todas
juntas

maiores que a cama, a casa
a cidade
que nossos corpos nus
no escuro
maiores que nossos filhos futuros

juntos
somos maiores que nossa despedida
amanhã

 


a menina atravessa a rua

está gravado numa árvore

ou leio em bula de remédio

ou ignoro no aviso do veneno:

é tipo "um raio

partindo meu céu em dois

e me presenteando com meu corpo*".

 

mas você não me sabe.

 

é como o sol que nascesse em seus lábios

e se pusesse em suas coxas

o mundo todo

                         encerrado num beijo

 

na volta imensa pra chegar

onde você está

toda paisagem

no jogo da tentativa e erro.

 

você —

a grife sem roupas

o arabesco

a tatuagem no osso

uma espécie de murro 

outra mordida

            na maçã mordida —

você

com botas sete-léguas

atravessando a vida

 

tipo o ônibus em que se vai dentro

à noite? a rua onde se anda?

a cidade em que se perde?

você passa, pássaro líquido

 

e transborda ao que vejo

sozinha no coração de tudo quanto vejo

você passa...

 

mas e se eu —

do alento certo na tristeza

do chão firme às quimeras —

lhe dissesse? "hei, fulana, toda mulher é

pessoa difícil e menina fácil!

hei fulana, venha cá!

se importa se, 'em lugar do luxo 

de um vestido parisiense,

eu te cobrir apenas

com a fumaça de meu cigarro'**?"   

 

ah... se você soubesse

que logo ali, no canto escuro

se você viesse

lhe daria a mais erigida amizade...

 

e meu desejo —

a língua passeia, estúpida — 

se você apenas soubesse...

 

 

  *Nedjma

** Maiakovski

 


*

a régua de ponto mede o imenso

sem contar a sombra
um tijolo é templo

 

 

 

meu

      Livre tradução temporal,
não idiomática, de "Nosso Tempo"
(Drummond, 1940).

"Esta é a época visual. A luz elétrica
obscureceu parcialmente o mundo,
deixando muitos objetos e seres na penumbra".
            Murilo Mendes  


I

este é tempo de partida,
tempo de homens à parte.

em vão percorremos sites,
surfamos e imprimimos.
a hora sem sentido empilha-se em pó na rua.
os homens pedem cartas. fogos de artifício. tênis importados.
as leis quase bastam. o sucesso não nasce
da lei. meu nome é entretenimento, e escreve-se
na tela.

esqueço os fatos, não importam.
onde te ocultas, pelada sílfide,
dívida de dona, luz acordando apagada
na sala de ginástica?
miúdos dum espírito de porco
de préstimo, uma auto-ajuda
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens repletos.

falo, apresso, dou de ombros.
as coisas talvez nem piorem,
quem sabe nem melhoram.
são tão coisadas as coisas!

mas eu tenho coisas e me jacto.
tenho palavras em mim daquele canal,
são poucas e nulas,
engraçadas e dietéticas,
comprimidas há pouquíssimo tempo,
acharam o sentido, apenas querem quebrar o silêncio.
                      

II

este é tempo de network,
tempo de gente com a cabeça noutro hemisfério,
nervos de fibras óticas.
de mãos viajando sem digitais,
obedientes gestos de arremedo.

mudou-se a rua da adolescência.
e o vestido preto
preto básico
descobre a desnudez do amor,
ao sol lento, na crista da onda.

logomarcas reluzentes se multiplicam.
competição, felicidade, amores?
dos laboratórios mcluhânicos mobilizados
vem um sopro que refrigera as faces
e dissipa, nas consciências, o grito.

o dia lá fora se estende mas é eliminado
pelo sucedâneo do buraco negro nas mãos.
certas partes de nós como brilham
em outdoors e vitrines! são bundas,
coxas, sentimentos e piruetas, desforras e peitos,
são partes mais íntimas,
a pulsação ao vivo, o ofego do afago,
e o ar condicionado é o estritamente necessário
para pararmos, e continuamos. 
    

III

e continuamos. é tempo de porte atlético.
tempo de seres tautológicos
e velhas hiper-ativas, de futuro traçado,
mas ainda é tempo de morrer e falar.
a história não se perdeu.
conheço mal este barraco,
sem direita, sem esquerda,
a sala-quarto-cozinha que não conduz nem condiz,
como o do enterro que não precisava ser feito,
da fome procurando uma mesa,
não conduz à copa de frutas agrotoxicadas,
ao jardim do condomínio, à água encanada
que jorra e limpa
o trabalho, a maldição, a pedra de sísifo,
não conduz às celas abertas, que contêm:
                                    papéis.
                                    crimes?
                                    moedas.  

ó desconta, velha preta, ó carroceiro, gari, pequeno
                                                    contador de vigarices,
ó analfabeto, depositário de meus pêsames,
                                        fecha-te e desconta,
moça presa no esquecimento, velho de sete dedos, baratas
                                  dos fossos sociais, portas espessas 1 cm,
                                                 superpopulação e asco,
pessoas e coisas descartáveis, descontai;
brilho do novo, contai;
novos solos de guitarra, aparelhos de primeira
                            necessidade nova, contai;
rua dos carros, fragmentos de filmes,
luta no abraço, pompa, cães ensaboados,
animais falantes, contai.
tudo tão chato depois que vos calastes...
e muitos de vós nunca se abriram, dominicais,
em programas de auditório.
 

IV

é tempo de estardalhaço,
de boca carnuda e flashes,
palavra indiscreta, aviso de cima
da mesa. tempo de cinco anestesiados
num só. o espião-conviva janta em nosso prato,
com nossa boca.

é tempo de vidros sem cortinas,
de céu-objetiva, saliva
no açaí, nos bispos, no gozo,
paixão e paichão, febres
terçãs, uísque com energético,
olhos vidrados,
dentes caiados,
língua de sogra leivosa.
a isso chamamos: blablablá.

no shopping,
um muro invisível,
sobre ele segurança particular.
no céu de marketing
aves anunciam suas penas.
no quarto andar,
irrisão e três colarinhos brancos.


V

vê a hora fulminante da balada na night.
os escritórios, num impasse, esvaziam-se.
as bocas sujam um rio de carne, estrumes e tortas
                                                     envenenadas.
salta pressionado do prata o panelaço de horrores
                                                        argentinos!
os monturos do desperdício riem formigas,
olhos empedrados de criança através do vidro do carro
                                               alimentam tua pressa.
chora, olho mecânico, desmilingua-te, coração de morfina, é
                                                tempo de lágrimas,
mais tarde será o do amor?

subitamente os escritórios demitem, e os negócios,
                                       fôrma indecisa, avolumam.
o malabar insinua-se no tráfego.
alcatéia de carros que o cruzam não vêem.
é negro e com cheiro do meio-dia.

está assustando no bonde, no cangote da guria,
vem no charco, no telefone celular que não tem,
nos aviões em que jamais voou,
rouba tua calma e extrai dela violenta miragem.

fala! da hora spaventosa da ida-e-volta, ida-e-volta.
gordo depois de gordo, obesa, estressado, gordo,
abstemia, boné, roupa, roupa, roupa,
gordo, gordo, estressado, gordo, obesa, roupa,
                                                  gordo,
imaginam um tipo de tortura edênica,
e se quedam fundos, escoam-se quilo a quilo, flexionam-se,
últimos senhores do ócio, imaginam voltar para sociedade,
já remidos, entre muros grafitados, numa fratura-exposta cidade,
                                                                     imaginam.

vê a grande hora matutina da competição,
                            tele-hipnose, apelo às drogas, passeio
                            no parque, cibercafés.
o sujeito ao lado do objeto, afinal entendidos,
com as calça despido o incômodo do pensamento
                                                          humano,
vê o corpo, ranja, enlaça, reflui!,
não erra em objetos remotos e, sobre a objeto soterrada
                                                                  de flores,
confia-se ao bem-me-quer do sonífero.

vê o horrível desemprego do dia
em todos os países de queixa humana,
a falsificação das imagens faiscando em telejornais,
o mundo real das imobiliárias onde a propriedade é um
                                                  bolo com grades,
bancos esganando o microempresário,
formigueiro de estrelas e invejosos,
a despoesia, o anti-romance.
os fashions que se entreguem à bênção do camaleão,
o homem belo, de morta beleza,
passeando de lancha
num aprazível crepúsculo de sexta-feira.
                

VI

nos living-rooms da família,
flor da idade e obstinações
de compra e agenda incompatíveis.
a gravidez das éguas
já não traz delírios.
crianças alegres
tocam-se; resfolegam.
há uma lamentável
trégua com batráquios.
contam-se anedotas
por e-mail.
a mesa reúne
uma faca, um copo,
e a cama devolve
tua solidão.
salva-se a popularidade
e o legado do papa.


VII

ou não se safa, e é o mesmo. há soluções, há pílulas
para cada hora e humor. há fortes pílulas,
dores de classes, de ossificada fúria
e impassível rosto. e há pílulas
maximizadas, chanchadas que espapalham
no segundo ato, lesões institucionalizadas,
e por isso doem,
revolta subornável,
mira, provação, gosto
desse boné novo, da rua sem saída, do velho Estado.
há o pranto na novela,
na câmera? no consumidor? nos sofás de espelhos?
sobretudo o pranto na novela
— como dói a dor de carlos eduardo abandonado por maria eugênia! —
salpica fosfenas, se esfumaça na chaminé,
vai minar nos armados, nos becos bestiais onde
                                       trabalham homens noturnos,
vai manchar, na roça concreta, os arranha-céus arbóreos,
e umedecer o vento, antes de jamais molhar o solo.

e fora do pranto minha face trocista,
meu olho que vê e mal enxerga,
minha repugnância tépida por vosso lirismo
                                              água-morna,
que cospe na essência mesma das queimaduras
                                                   e febres.
                                                        
                                    
VIII

o poeta se inclina a toda responsabilidade
na marcha do mundo individualista
e com suas larvas, intuições, címbalos e outros
                                                     bunkers
promete ajudar-se
a destruí-lo
como uma peneira, uma flor que resta,
um ver-me


(setembro/2002)

 

a criança

        Pequeno pequeno pequeno. Mas já forceja de sol a sol o sísifo interior, das coisas ajuntadas e dividas por desrazão, em categorias. Taxômano pré-mirim, compila selos sem ter selos e borboletas sem borboletas. Chora, pára, sorri. Talvez seja o maior colecionador de coisas invisíveis em todo o universo: leiloou na imaginação e vai adquirindo: fotos das mães dos amigos, peixes das estórias de pescaria, armas usadas na guerra dos feijões, namoradas das folhas de revistas, monstros de césio, roupas ideais das matinês de carnavais, socos em aparelhos nos dentes, ave-marias aos domingos, cães de montaria, paraguaios de rifles às costas, relógios de marcar a eternidade, cantigas para dormir, par-ou-ímpares invictos no melhor de cinco, desaforos, bichos sob a cama, pedras de rios que não passaram, olhares sem piscar pelo buraco da fechadura. Coleciona os dias, um maior que o outro, um mais novo que o outro, mais bonito.   
        A mãe chama para o jantar. Ele não vai. Não pode perder a conta de seu tesouro. A mesada foi toda gasta em bala-chiclete e, mastigando, trabalha o raciocínio: "Um dia vai valer uma fortuna. Vou trocar por um baú de moedas. Vou enterrar numa ilha deserta. Vou fazer um mapa". Não atina com a possibilidade de perder, mais do que os álbuns da coleção, perdidos em si, o ânimo de colecionar impossibilidades.
        Certamente vale muito, certamente só dá para isso: os olhinhos acesos no rosto do homem, e uma saudade que atravessa a rua.

 


despertar

        Há esta menina que me espera impaciente. O corpo de terremoto adiado. Como uma revoada de vespas, sorri — talvez o sorriso que mona lisa não pôde. Será uma fúria? Diz coisas na língua das flores, quase se faz entender; prestes a traduzi-la, e súbito põe-se a falar na língua franca dos peixes de águas fundas. Espero a fio o dia em me deixará sem esboçar sequer o arco-íris. Nas tardes de verão me arrasta pelo braço, em redor de galerias, como uma enchente ou um carnaval de rua, e à noite sob meu corpo, mais molhada que de manhã cedinho, secreta um orvalho ácido que inaugura por dentro os dias...
        De repente a menina de antes que eu nunca vira: respiração monótona, incapaz de comoções e ventos, sua presença de passarinho morto, o vulcão já extinto, as mãos abertas, a língua que é a minha, os olhos que perderam aquele brilho da bomba, a especiosa nudez, ora desenganada, sem trás dos montes, sem morte na esquina, sem horizontes de abandono, sem caminhos de sustos, sem esfinge na encruzilhada das pernas. Crisálida de trás para frente. Observo-a pela primeira — última — vez... Vesti-me e ganho a rua sem fazer barulho ou lágrimas. A aurora será sempre um acontecimento.

 


o pavão

O pássaro. A terra comerá todos os seus olhos, pétala por pétala. Visto demais, em leque, incompreendido. Pisa no futuro, treva após treva após treva.
Abriu-se
                         em sua cauda
                      uma máquina do mundo,
não quer dizer nada.
Coroado por si mesmo. Pateia como um rei no exílio. Vive só, numa única manhã feita de todas as auroras. Arremessou-se no espaço, quase livre. Não venceu.
Bicho mitológico, dorme!,
as formigas te desmontarão.

 

(imagem ©man ray)

 

Rodrigo Madeira (Foz do Iguaçu, 1979). Há 13 anos mora em Curitiba. Poeta inédito e músico diletante. Não conhece Chico Buarque, mas o considera seu melhor amigo. Leitor de Rimbaud, Lorca, Drummond, Guimarães Rosa, Vinicius e João Cabral de Melo Neto. Se pudesse sair impune, plagiaria Rubem Braga. Gosta dos antigos filmes italianos, de Van Gogh e Matisse. Adora arroz com ovo e farofa. Às gostosas prefere as gordinhas. Odeia política, mas acompanha de perto. Dentre os tiros n'água para definir poesia, fecha com Paul Valéry: "a permanente hesitação entre som e sentido".