MONSTRO DA PERFEIÇÃO

 

 

Sou cidadão desta cidade e a beleza me oprime.

O meu nome é Pietro Cannata. Nasci e me criei em Florença. Sempre achei a vida boa apesar de ter me tornado funcionário público municipal. Trabalho em uma repartição. Meus dias são feitos de examinar documentos, bater alguns carimbos, fazê-los seguir adiante e principalmente, calcular o tempo que falta para a minha aposentadoria.

Até alguns meses atrás, gostava de, ao sair do trabalho, vagar pelas ruas e praças, tomar um vinho chianti em alguma cantina, jogar dominó e ver as mulheres. Às vezes, quando estava mais inspirado, seguia Carlo, o seresteiro. Ele ganha a vida tocando e cantando para as moças que o assistem das janelas e sacadas. Apresenta-se sempre em nome de algum conquistador. Muitas vezes joguei buquês de flores nas janelas; por mais de uma recebi de volta o conteúdo mal-cheiroso de um penico, despejado por marido ciumento ou mãe dominadora. Ainda bem que sempre ando de chapéu...

Sempre cortava as unhas na repartição. Não sei por que, comecei a juntar as aparas das unhas em uma caixinha que guardava na gaveta de minha mesa. Todos os dias passava pelo menos uma hora trancado no banheiro, surdo às insistentes batidas dos colegas aflitos. Com uma lupa que também mantinha na gaveta, examinava por todos os lados e ângulos possíveis as fossas das minhas narinas em busca do temido pêlo que poderia estar encravado. Com a tesourinha que ficava na mesma gaveta, aliás muito afiada e jeitosa, e com o auxílio da lupa, podava com  esmero os pêlos que nasciam no nariz e nas orelhas.

Não sei quem me contou a terrível história, não consigo também me lembrar onde, o fato é aquilo ficou gravado em minha mente, tornando-se a minha principal preocupação. Preocupação não, é pouco para exprimir o que sinto: pavor pode ser mais adequado. A trágica história trata da agonia de um senhor que morreu por causa de um pêlo encravado no nariz. O pêlo transformou-se em uma espinha que também inflamou. O nariz do sujeito cresceu de maneira absurda e ficou vermelho como uma beterraba. A inflamação atingiu o cérebro do indivíduo. Fez com que sua cabeça inchasse como uma couve-flor contaminada por radiação atômica. A vítima entrou em convulsão; morreu tendo espasmos horríveis. No último, cuspiu a própria língua que tinha ficado preta. Ninguém conseguiu enfiar a língua para dentro da boca do cadáver, foi velado com aquela língua enorme na frente do peito como uma triste gravata negra.

Minha mulher, desde os nossos primeiros dias de casados, começou a implicar com os meus hábitos e manias. Creio que eles não são piores que os dela ou de qualquer outra pessoa. O fato é que, para evitar brigas e discussões, passei a ficar cada vez menos em casa. Comecei a sair mais cedo e a voltar mais tarde. Antonia, este é o nome da minha mulher, cansada das minhas idas e vindas que atrapalhavam o seu sono, retirou todas as minhas coisas do nosso armário. Levou tudo para o quarto de despejo. Peguei o magro colchão que ficava debaixo da nossa cama para as visitas que nunca vieram, e pus no quartinho. Minhas escassas roupas, cintos e sapatos, guardei em um balaio. As meias e cuecas, numa caixa de onde retirei restos mofados de frutas cristalizadas. Improvisei um gancho com arame para o chapéu e outro para o guarda-chuva. "Roubei" um cabide do nosso armário para pendurar o paletó.

Faz meses que Antonia e eu não trocamos uma palavra que não seja absolutamente necessária. Confesso que me sinto aliviado por não ter mais que dormir ao seu lado e do cheiro nauseabundo do creme que ela passa no rosto. Sem falar na morrinha, um cheiro de coisa morta, que exala de sua carne.

Bem, como disse, sou Pietro Cannata, funcionário público da municipalidade de Florença. Fui expulso do quarto e da cama pela mulher e morro de medo de morrer por causa de um pêlo encravado no nariz. Mas agora quero que saiba por que a beleza me incomoda, maltrata e oprime.

Já falei que gostava muito de vaguear pelas ruas depois do trabalho. Pois é, até então nunca tinha achado nada de diferente nesta velha Florença. Nunca achei que ela tivesse nada de especial, que fosse "uma cidade cujo coração é a arte", como dizem os guias turísticos. É claro que sei, como toda a gente, que aqui tem muitos museus, galerias, estátuas, essas coisas todas. E devo aqui dizer que, se alguma vez entrei em um museu, foi só pelo prazer de acompanhar o rebolado de alguma destas turistas boas que vivem por aí atrás de velharias.

No ônibus, no trem, no bar, no armazém, em todo e qualquer lugar foram sendo colocados cartazes de divulgação das belezas de Florença, coisas que eu nunca tinha reparado. O monumento que mais chama atenção é uma estátua grandona que fica lá na entrada do Palazzo Vecchio. Aquele sujeito peladão, meio macho, meio bicha, é o Davi. Foi feito por Michelangelo, escultor e pintor, que viveu aqui há muito tempo e que ganhou muito dinheiro dos nobres da época fazendo essas tais estátuas que ficam espalhadas por aí, não sei pra quê.

Daí em diante este Davi começou a me atazanar. Onde quer que eu ande topo com um cartaz com o seu retrato. Lá no Palazzo Vecchio ele vive rodeado de gente o dia inteiro. Sempre uma multidão admirando o bonitão, tirando fotos, passando horas ao redor dele. Os guias dizem que o Davi "representa o ideal da beleza masculina". Comecei a sentir uma raiva desgraçada desse sujeito: "Será que um boiola de pedra é mais importante do que eu? Será que nenhuma dessas turistas gostosas vai notar que em Florença, além do Davi, tem o Pietro?".

Comecei a usar meu tempo livre para ficar ali, ao redor da estátua. Li todos os guias e passei a reparar nas linhas perfeitas da escultura de Michelangelo. Passei a examiná-la como examinava antes o meu nariz, todos os seus contornos, do rosto, do corpo, todos os seus músculos, artérias, articulações, tudo o que faz que Davi seja esse monstro da perfeição.

Eu, que sempre fui um cidadão ordeiro e respeitador da lei, tomei coragem e roubei uns cartazes com fotos da estátua. No banheiro da repartição pregava com fita os cartazes e fazia comparações dele comigo diante do espelho. Passei a me achar cada vez pior! A flacidez das minhas carnes, as bolsas debaixo dos meus olhos, meu perfil de ave de rapina, meu queixo pequeno, meus ombros caídos, meu nariz torto, minhas rugas, meu peito encovado, minha barriga protuberante, minhas coxas magras, minhas pernas fracas, minha decrepitude, meu avançado caminhar para um irremediável encarquilhamento, me fizeram odiar mortalmente o Davi. Compreendi que sua beleza é uma afronta, uma ofensa, um desrespeito ao público, ao homem comum, trabalhador, medíocre como eu. Compreendi que a sua beleza me humilha como uma cusparada na cara. Todo dia me obriga a reconhecer que sou um merda, um nada.

Antonia, minha triste mulher, foi ficando cada vez mais esclerosada. Deu agora para falar como uma menininha e não vejo a hora de interná-la numa casa de idosos. Pra falar a verdade, eu também não ando bem da cabeça. Já não sei bem o que faço, nem examino mais o nariz em busca do pêlo encravado. Ando me descontrolando muito... Ontem mesmo me confundi todo com os carimbos, coisa que nunca aconteceu antes. Eu, que sempre fui considerado um funcionário exemplar, um dos melhores do departamento, me vi fazendo coisas que jamais imaginei. Me deu um estalo na cabeça, um ímpeto maluco. Primeiro peguei a caixinha com as aparas das minhas unhas e joguei tudo pra cima. Depois sai batendo carimbo a torto e a direito, carimbei documentos errados, carimbei o telefone, minhas próprias mãos, cheguei até a carimbar a testa da dona Pasqualina, funcionária das mais antigas da repartição. Resultado: estraguei diversos documentos que terão que ser refeitos, aprontei uma balbúrdia e acabei tomando três dias de suspensão. O chefe me recomendou calmantes e banhos frios.

Claro que não fui pra casa. Era meio-dia, fazia um calor dos diabos. Comprei um pedaço de pizza de aliche, lambuzei de azeite, peguei um latinha de refrigerante e sai andando sem rumo. Evidente que fui dar na entrada do Palazzo Vecchio onde uma multidão de turistas e desocupados daqui mesmo ficava em volta do escroto do Davi. Tinha uma sueca, norueguesa, sei lá, que eu já tinha visto ontem. A mulher é um tesão, usa um shortinho muito curto, uma blusinha que mal esconde os peitões, a barriguinha de fora. Fica toda excitada, a cadelinha, passa o dia dando voltas em torno da estátua, soprando a franjinha loura que lhe cai nos olhos e fotografando o sem-vergonha. De repente, me deu um estalo na nuca, a vista ficou embaçada, minha cabeça ferveu, senti o mesmo comichão que me deu mais cedo no trabalho. A raiva tomou conta de mim. Fui até uma caixa de ferramentas que estava no chão ali perto. Sem que ninguém notasse, encontrei nela um martelo. Não era dos maiores mas já dava pra fazer um estrago. Sem uma palavra avancei até a estátua e despejei toda a minha fúria contra o desgraçado! Se pudesse teria quebrado tudo! Mas, depois da gritaria e do corre-corre dos turistas, apareceram dois guardas que me agarraram, tiraram o martelo da minha mão e me algemaram. Um deles, notei depois, é a Sandrina, sobrinha do Carlo seresteiro. Chegaram outros guardas. Tiveram que me proteger dos tipos mais exaltados que queriam me bater. Uma dona me acertou a sombrinha nas costas. Outra jogou um guia grosso de turismo na minha cara. Quando já iam me enfiando no camburão, vi a loura de franjinha. Ela estava sentada no chão com a cabeça entre as mãos, certamente chorando. Não por causa do Pietro que ia sendo preso como um cão, mas por causa do boiola do Davi. Enquanto prestava depoimento na delegacia, soube que só tinha conseguido quebrar um dos dedos do pé da estátua.

Que pena.

 

 

 

(Esta pode ser a história de Pietro Cannata, cidadão de Florença, Itália. Num acesso de loucura, ele atacou a estátua "Davi" de Michelangelo (1475-1564), representação do herói que matou Golias. A escultura foi colocada na entrada do Palazzo Vecchio em Florença em 8/9/1504. Até ser contido, Cannata conseguiu quebrar um dos dedos dos pés da estátua. O dedo foi reconstruído com o próprio material quebrado. Após o ataque, a estátua foi substituída por uma réplica que permanece ao ar livre. O original, recentemente restaurado, encontra-se guardado na Galeria da Academia de Florença.)

 

 

 
 

A MUSA, O POETA E O ASNO

 

A MUSA ESTÁ P/O POETA

ASSIM COMO O VENTO ESTÁ PARA A VELA

DA PESADA CARAVELA.

SENDO A MUSA BELA,

A PENA EMBALA,

A INSPIRAÇÃO SE ACENDE

E A POESIA RENDE.

VERSOS E MAIS VERSOS FLUEM

RASGANDO O VERBO

SOBRE O UNIVERSO ENCANTADO

DAQUELE LINDO SER ILUMINADO.

O MUNDO, VISTO SOB ESTA LUZ,

SE FAZ CADA VEZ MAIS ESPLÊNDIDO.

CANTOS DE ESTUPENDO ENTUSIASMO

SOBRE OS DETALHES, OS RECANTOS,

OS ENCANTOS DESTA MUSA IDOLATRADA

QUE ESTÁ P/O POETA

COMO A CHIBATA

QUE IMPULSIONA O ASNO.

 

 

 

 

 

 

MAIS-VALIA

 

EU TRABALHO

TU TRABALHAS

ELE MORCEGA

NÓS TRABALHAMOS

VÓS TRABALHAIS

ELES DEITAM E ROLAM

 

 

 

 

 

 

COWBOY

 

JANIS SNAKE, LA BELLE

 

A ESCÓRIA DA CIDADE ESTÁ REUNIDA EM VOLTA DAQUELA MESA:

KEITH WATTS, MAIS CONHECIDO COMO ESCORPIÃO,

POIS SÓ MATA PELAS COSTAS.

CHARLIE JAGGER, TAMBÉM CHAMADO DE RINGO TEQUILA OU AINDA, MICK SEM

CULPA, ESPECIALISTA EM DARDOS ENVENENADOS.

ALÉM DELES, TAMBÉM PARTICIPAM DO JOGO,

PAUL LENNON, FALSÁRIO E POETA E O REVERENDO HARRISON GEORGE,

RELIGIOSO.

JOGA-SE POCKER.

AS APOSTAS SÃO ALTAS, OS TRUQUES SUJOS.

AQUELES HOMENS SÓ TÊM DOIS OBJETIVOS NA VIDA:

GANHAR UM DINHEIRO RÁPIDO COM AS CARTAS

E IR DEITAR NOS LENÇÓIS DE CETIM DE JANIS SNAKE,

A PROSTITUTA MAIS REQUISITADA DO SALOON.

O CLIMA É ELÉTRICO, O SUOR ESCORRE,

O WHISKY QUEIMA AS GARGANTAS;

A FUMAÇA DOS CHARUTOS BARATOS

TORNA O AR IRRESPIRÁVEL.

DEPOIS DE MARCHAS E CONTRA MARCHAS,

O REVERENDO HARRISON

FAZ UM STRIP-FLASH E QUEBRA INEXORAVELMENTE

TODOS OS OUTROS.

A PROSTITUTA JANIS SNAKE, LA BELLE, NÃO PERDE TEMPO:

DÁ-LHE UMA PISCADELA E SOBE A ESCADA REBOLANDO OS QUADRIS

AVANTAJADOS.

O REVERENDO FAZ O SINAL DA CRUZ E A SEGUE COM OS BOLSOS ESTUFADOS DE

DÓLARES.

 

 

 

 

 

 

ANTROPOFAGIAZINHA

 

ELE ERA SENSATO

TÃO SENSATO

QUE LHE COMI O PÉ

AO INVÉS DO SAPATO

 

 

 

 

 

 

SÉCULO XXI

 

O HOMEM, COM SEU COMPLEXO DANADO DE LOBISOMEN;

A MULHER, COM A SUA IMPERDÍVEL MANIA DE MARIA,

TROCAM,

MAIS DO QUE NUNCA,

PORRADAS

NA PORTA DO JARDIM ZOOLÓGICO DA ESTUPIDEZ

 

 

 

 

VIDA DE ARTISTA

 

TINHA PRESSA, POR ISSO TRABALHAVA FURIOSAMENTE

ESPREMENDO TUBOS DE TINTA SOBRE AS TELAS

OU ATRAVESSANDO AS LONGAS NOITES EUROPÉIAS

A PINTAR PAISAGENS COM UMA VELA ACESA

NA ABA DO CHAPÉU.

CORTOU UM PEDAÇO DA PRÓPRIA ORELHA

NUMA DE SUAS CRISES

E A DEVOLVEU AO MUNDO EMBRULHADA NUM JORNAL.

TENTOU PINTAR A PRÓPRIA ALMA

BEBENDO TINTAS QUE QUASE O MATARAM.

ENQUANTO VIVO, SÓ VENDEU UM ÚNICO QUADRO DE SUA ENORME PRODUÇÃO.

AMARGOU A MISÉRIA E A SOLIDÃO

E DO AMOR, POUCO CONHECEU...

SUICIDOU-SE COM UM TIRO NO CORAÇÃO,

MAS OS SEUS TRIGAIS E GIRASSÓIS,

TINGIRAM DE AMARELO

O FUTURO!

 

 

(imagens ©thera)

 
 
PROFETAS
 

Pregar nunca foi o mais difícil. Não. Os pulmões vão sendo adestrados, a garganta se acostuma com o esforço e as palavras começam a fluir em jorros. Quanto menos se pensa, mais fácil torna-se o trabalho. A cantilena é quase sempre a mesma: apontar pecados, lançar ameaças de pestes horríveis, içar lagos cheios de culpas, erguer vulcões de lava ardente sendo derramada sobre os que não se arrependerem, arremeter arcanjos vingadores brandindo espadas, raios e trovões. Enfim: contrapor as mil artimanhas do diabo à infinita bondade de Deus.

Nossos profetas não são, em geral, bem apessoados. Pelo contrário, costumam ser tipos de traços grosseiros, muitas vezes estropiados - quando não verdadeiramente mancos. Não são, de maneira alguma, bons exemplos de nobreza e educação. A poeira na roupa e nos cabelos, geralmente desgrenhados, faz parte daquela expectativa que se criou em torno da figura de um desses "emissários" de Deus. Um verdadeiro profeta não deve viver debaixo de teto como os outros homens; sua morada são os caminhos, as estradas. Deve cruzar campos e desertos com o fito de fazer sua voz alcançar os ouvidos de todos, não importando a distância que tenha que percorrer, para levar a sua pregação...

Eu mesmo tenho vagado pelos recantos mais sombrios, encruzilhadas cheias de perigos e os mais desolados desertos. A maior parte do tempo caminho sozinho. Às vezes surge uma turba de fanáticos, daqueles que correm de um lado para o outro se auto-flagelando e clamando por milagres imediatos. Caminho algum tempo entre eles para distrair meu coração de um abatimento que me deixa prostrado e me faz sentir cada vez mais insignificante diante do majestoso enigma da existência. Disfarçado entre os fanáticos, ouço e vejo outros profetas e comparo o estilo deles ao meu. Na maior parte dos casos, acho-os ridículos e temo o meu próprio papel.

Hoje, perambulando como sempre, vim dar numa aldeia que não conheço e da qual nunca ouvi falar. Fui trazido à casa de um rico vendedor de camelos. Aqui se realiza,  em seus bem cuidados jardins, a festa da celebração do casamento de uma de suas filhas com um jovem, filho do chefe de uma tribo muito importante da região. Músicos, bailarinas, engolidores de fogo, encantadores de serpentes, artistas diversos se apresentam em meio a muita comida e bebida. Sinto estranhos presságios, mas o homem que aqui me trouxe, um ferreiro de um olho só, me puxa pelo braço para todos os lados.

As palavras de um profeta são cuspidas aos borbotões. As frases não precisam  necessariamente ser encadeadas; o efeito da pregação está menos no sentido das palavras do que no carisma do pregador. A experiência tem me mostrado que o povo gosta de ser esmagado por sombras terríveis. Montanhas de desgraças costumam fazer um belo efeito.

A profissão de profeta é uma das mais cobiçadas pelas mães de família dos dias de hoje. Todos os que se preocupam com a prosperidade e o bem-estar de seus filhos, com o futuro deles, vêem no exercício desta atividade uma possibilidade de fartura. Crianças que nascem vesgas, zarolhos de um modo geral, os que sofrem de  pequenas perturbações mentais - principalmente, as que produzem visões, alucinações e delírios - são muito bem recebidos pelos seus parentes. Tais defeitos podem ajudar, e muito, um jovem a vaticinar sobre o futuro, ameaçar sobre o presente e condenar a todos pelos erros cometidos no passado.

A festa é rica, a comida não pára de ser servida bem como o vinho. Os artistas se esmeram no objetivo de melhor abrilhantar as bodas. De repente surgem, de dentro da casa, alguns escravos trazendo uma senhora numa liteira. Fico logo sabendo que ela é a avó da noiva. A mulher é toda encarquilhada e sofre de paralisia nas pernas. Disseram-me que há muitos anos não consegue andar. Quase sufocada por tantos colares e jóias, a velha tem os olhos duros e maus como os de uma serpente. A música de repente pára. A liteira com a velha é colocada bem na minha frente. O dono da casa, o gordo vendedor de camelos, aproxima-se e fala sem me olhar nos olhos: "Este homem" - aponta para o ferreiro que me tem seguro pelo braço - "disse que você é um mago, um santo do deserto. Ele te trouxe à minha casa no dia das bodas de minha filha, com a promessa de um milagre: fazer minha mãe voltar a andar. Pois então" - continuou a falar enquanto cada vez mais gente se agrupava ao nosso redor - "faça minha mãe andar novamente que a minha recompensa não conhecerá limites!".

Eu fiquei atônito, completamente embasbacado. Jamais me apresentara como santo, como alguém capaz de fazer milagres. Conheço meus limites, não passo de um reles profeta, um cuspidor de palavras que foge com sua sombra dos lugares mais habitados e vagueia por aqui e por ali. Meus dons limitam-se a arregalar os olhos e vomitar uma meia dúzia de ameaças, revirar os dedos e mãos como garras e, por fim, gritar como se sofresse um ataque qualquer. Para arrematar a cena, eu puxo os meus próprios cabelos e simulo entrar numa letargia quase absoluta. Na primeira oportunidade que surge, sumo, levando sempre que possível um pouco do leite das cabras daqueles a quem atemorizei, alguns de seus damascos e tâmaras ou, pelo menos, um pouco do óleo de oliva de suas cozinhas, para massagear os meus pés cansados...

Fazer milagres! Como eu posso dizer a eles que isso não é comigo? Talvez o nazareno, o carpinteiro... Mas eu?

Meu silêncio é gritante. Os olhos maus da velha paralítica, deitada na liteira, me espetam. As veias do pescoço do gordo pai da noiva engrossam e latejam a olhos vistos, enquanto a mão calosa do homem de um olho só aperta cada vez mais o meu braço. Tenho que fazer alguma coisa, corro o sério risco do meu sangue servir para tornar mais vermelhas as rosas do jardim... Mas o que fazer? Ergo minha fronte aos céus. Respiro profundamente. Desprego meus braços do flanco como se fossem asas; o ferreiro arregala os olhos e, momentaneamente, me solta. Junto as palmas de minhas mãos sobre a cabeça, solto um urro e aponto as mãos unidas na direção da velha, falo três ou quatro palavras que escutei um profeta falar ao fazer uma falsa mágica no mercado. A velha começa a arfar, revira os olhos. A multidão, em volta, me lança um olhar de admiração. O dono da festa aproxima-se da liteira e oferece um braço para que a mulher possa se erguer.  "Essa velha não tem forças nem para pentear seus próprios cabelos!" - penso enquanto passo os pés sobre a poeira do chão.

 

 

 

 

PROFETAS (2ª parte)

 

 

Auxiliado pelos escravos, o vendedor de camelos bem que tenta manter a velha em pé, mas as pernas dela estão mortas há muito tempo. A mão do ferreiro torna a se fechar contra o meu braço, agora com a raiva de três tigres. As vaias dirigidas a mim surgem de vários pontos, acompanhadas de frutas e tigelas atiradas com toda a força. O pai da noiva aproxima-se e lança uma sonora cusparada bem no meio da minha cara. Sou um cordeiro acossado por leões.

A cuspida do dono da casa foi a senha para o início da solenidade do meu sacrifício. Fui puxado pelo ferreiro para fora do jardim. Todos abandonaram a festa, seguindo em cortejo para o lugar onde, certamente, são realizados os apedrejamentos na aldeia.

A primeira pedra passa raspando minha têmpora; sinto o vento produzido por ela eriçar os cabelos. Instintivamente levanto os braços e as mãos para proteger a cabeça, mas a segunda pedrada me atinge no meio do peito, quase me derrubando. Percebo que quem mandou aquela pedra foi um sujeito monstruoso. Ouvi alguém chamá-lo de Isaac, um brutamontes capaz de levantar sozinho um boi do chão. Com seu sorriso de cacos de dentes pretos e podres, Isaac celebra sua pontaria e força com um colega, o anão.

A pedrada do Isaac me provocou uma crise de tosse; fiquei engasgado, com falta de ar e uma violenta ardência nos pulmões. Acho que ele conseguiu me quebrar uma costela, o desgraçado. As mulheres e crianças, ainda que atirem pedras menores, são mais impiedosas que os homens. Suas ofensas são mais cruéis, mais humilhantes, suas expressões são da mais profunda selvageria. Têm a volúpia de aves de rapina quando agarram suas presas. Estou no meio de um círculo e pedras é que não faltam nesse maldito lugar!

Em meio às pedradas me veio à lembrança uma cena macabra que assisti; quase passei mal com aquilo... Foi na praça de uma aldeia perto de Nazaré, onde vi a gente do lugar matar um urso. O animal foi amarrado num poste e picado com golpes de lança. O corpo ficou logo banhado de sangue. Trouxeram então, dentro de umas gaiolas de madeira, alguns cachorros famintos. As gaiolas foram abertas e os cães, enlouquecidos, se atiraram com fúria desenfreada contra o pobre bicho. Ainda que estivesse preso por uma corrente e enfraquecido pela perda sucessiva de sangue, o urso se protegeu como pôde. Matou dois daqueles cachorros com suas poderosas patadas, arrancou a orelha de um outro, mas não conseguiu resistir a tantos ataques. Foi desabando lentamente, cerrou os olhos e parou de lutar. Os cães então abriram com os dentes a barriga e comeram as entranhas, lambendo todo o seu sangue. A multidão assistia aquilo com indisfarçável prazer. Afastei-me rapidamente do lugar com o mau presságio de que um dia, talvez, no lugar do urso, um homem poderia estar acorrentado ao poste...

As pedras são grandes, cada vez maiores e a mira deles está melhorando. Sinto  dor em todo o corpo como só senti uma vez. O sangue brota de várias partes; percebo que isto excita os cachorros que também fazem parte do círculo dos que me atacam. Penso de novo no urso. Tento me concentrar nos poucos raios de sol que conseguem furar o bloqueio de todas as nuvens carregadas no céu. Logo-logo vai chover forte. Ao cair no chão, meus olhos se encontram com os de uma lagartixa; ela me olha por alguns instantes e depois se esconde, assustada, atrás de uma dessas pedras. Juro por Deus que ela sorriu pra mim...

 

 

 

 

 

  

 

Rodrigo Leste (Rodrigo Octávio Amarante Leste).  Poeta, escritor, ator e produtor cultural. Co-editou os jornais "Gol-a-Gol" (DCE-UFMG), "O Vapor" e a revista "Circus". Publicou os livros de poesia Tesão e fé e Lobos no cio e, de contos, O labirinto de Machado de Assis e outros contos. Atua em teatro desde 1974. Escreveu e produziu as peças Quando os Beatles tocarem juntos outra vez, Tudo certo... mas tá esquisito e O Brasil que o Brasil não viu (a última, em parceria com Sérgio Fantini e Caio Ducca). Através do projeto "Literatura em Cena", que coordena, vem adaptando e encenando obras dos grandes autores brasileiros como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Cruz e Souza e Manuel Bandeira. Produziu e apresentou por dois anos o programa "Radiopoemas", na Rádio Geraes-FM. Vive em Belo Horizonte.