la diabla



Não foi da responsabilidade de nenhuma maçã, muito menos da serpente, o nascimento do pecado ordinário que aumentou seu capital.


Local: Ladário, cidade fronteira com Corumbá.

Ano: aproximadamente, 1975.

Um rosto lindo: oval, pele branquinha, impecável, pêlos negros e lisos, franjinha ressaltando ainda mais seus lindíssimos olhos verdes. Vinte ou vinte-e-dois anos. Una peintura!

 

Seu corpo... bem, ele já havia visto outros melhores. Mas o que realmente valia, é que na cama seu desempenho era como o de alguém que precisasse aproveitar todos os momentos finais do planeta condenado.


Pelo que ele me contou durante um porre de Gin, ela era o lado mais cavado da calcinha.

 

— Y aún la diabla murmurava dulces palabras castellanas en mis oídos! Todo muy exhaustivo, puesto que drenava al hombre el total de sus sugos, además de su energía vital. Pero, Diós lo sabe, como era buena!


O marido insuficiente dividia a mesma opinião com Deus e o mundo. Só não concordava com a generosidade da esposa, que distribuía sua sofreguidão entre os escolhidos. O consorte azarento acreditava realmente que a fartura de jóias com que a diabla se enfeitava, vinha dos ponchos que ela fazia para vender pros gringos. Que as rendas pretas, usadas por debaixo dos artesanais vestidos, eram para seus olhos de cânhamo. Os perfumes de alfazema, fabricados apenas para seu nariz de vinagre.

 

Daí o súbito e ruidoso arrombamento da porta da alcova num início de noite pelo dono do chifre, que também era dono do bar que ia até às tantas. A escapada do guerreiro (nu) na noite gelada, por uma janelinha pela qual mal passaria um gato magro, driblando no jardim mil roseiras já despidas de folhas e flores, a gritaria, os vários tiros, a agulhada da penetração do estilhaço na perna, a invasão apavorada da única farmácia da cidade, o retorno urgente para o Rio de Janeiro, a medalha de honra ostentada na coxa esquerda, para os netos que adoravam suas histórias de major maioral.

 

 — É big, é big, é big big boy! Vovô é um herói! Herói, herói, herói!

 

Grande à vera foi a pensão que recebeu das forças armadas pela bravura em nome da pátria. Afirmou até a morte, que deu tudo de si na Araguaia. Que deu tudo de si, deu mesmo, só se esqueceu de colocar um "P" antes do nome da guerrilha. Gostosa a muchacha made in Paraguai.

 

No seu enterro apareceram mais duas chicas aos prantos. Pelo visto o companheiro tinha um grande mensalão dentro da cueca: viva o Brazil!
 
 

 

 

anônimo suburbano

 

Do lado da academia onde nado, tem uma antiga padaria que acabou virando um bar. O Pão de Bigode. O dono descobriu, há alguns anos, que cerveja dá mais grana. Pôs mesinhas do lado de fora e ali reúnem-se mestrandos em sua hora de almoço, aposentados do INSS, casados fujões, pinguços de plantão. Jogam porrinha (basquete-de-bolso), dama, lêem jornal, saboreando uma cerva.

 

Para chegar à academia, forçosamente tenho que estacionar o carro antes da padaria, pois depois é proibido. Eu e todas as mulheres, portanto, passamos a ser o alvo das brincadeiras diárias dos freqüentadores. Na aula, costumávamos reclamar dos modos destes homens. Particularmente de um, que parecia ser o mais atirado: falava alto, algumas e muitas abobrinhas.

 

Sabíamos que o nome dele era Ernesto. A idade, indefinida. Era daquelas pessoas que a vida castigou tanto, que não conseguimos definir a idade da certidão. Tem a idade da vida vivida.

 

A galera sempre perguntava:

 

— E aí, Ernesto, tua mulher deixou tu entrar ontem bêbado?

 

Sorria e revidava.

 

— Num tava bêbado, tava feliz. Vocês não sabem o que é isso. Além do mais, não sou viciado, pois só bebo das dez da matina até às vinte e duas.

 

Parava de conversar quando eu começava a passar e falava alto:

 

— A professora ontem foi à praia, tá cor-de-canela. Vem pra minha canjica, doçura!

 

Eu passava séria, com ar de ofendida. E questionava-me como ele sabia a minha profissão. A minha e de amigas da academia. Todos os dias, durante dois anos, a cena se repetia três vezes na semana.

 

O bando de marmanjos sacaneando ele.

 

— Ernesto, se toca e pára de mexer com as mulheres, tu não funciona nem com Viagra!

 

Ele respondia com seus provérbios de beira de calçada.

 

— Enquanto tiver língua e dedo, de mulher não tenho medo... E aí, professora, clareou o cabelo?

 

Eu ficava doida, pois o danado percebera minhas luzes, que lá em casa ninguém vira.

 

Ouvi um dia chamarem ele de suburbano, dizendo que saía às sete da manhã para chegar às dez no Pão de Bigode. Tinha sido obrigado a mudar de bairro, dinheiro curto. Mas estava arraigado aqui.

 

Aos poucos, por conversas altas e paralelas, eu ficava sabendo da vida dele e ele sabia da minha, pelo que víamos um do outro e pela Dilcilene, faxineira da academia, chegada a uma fofoca.

 

Descobri que ele era um homem-povo, casado há 40 anos, oito filhos, aposentado por insuficiência cardíaca. Este anônimo suburbano, ardoroso fã do sexo oposto, sequer imaginava o bem que fazia para o nosso ego. Dizia o que queríamos ouvir de nossos amados. Dizia de forma aberta, simplória, descaradamente deliciosa.

 

Nunca recebeu um sorriso nosso. Um sorriso meu! Na última sexta, falou de minhas argolas novas e reclamou que eu estava de cabelos presos. Meu sorriso foi interior.

 

Ontem, passei por lá. Reinava um silêncio absoluto. Não entendi, e depois minhas colegas foram chegando e comentando sobre este maldito silêncio. Cadê a Dilcilene para dar o furo de reportagem??? Tinha saído.

 

Renata, curiosa como ela só, arrumou o pretexto de comprar uma diet-coke, só para bisbilhotar. Voltou pálida. Havia um comunicado de falecimento do Ernesto na parede.

 

Comecei a chorar, silenciosa e contidamente. Aos poucos, percebi que todas choravam. Nada dissemos. Nada a declarar. Cada uma sabia o que este homem tão anônimo representava para nós. Com ele, foi muito da alegria do cotidiano... Foi mais, bem mais. Parte com Ernesto um pouco do folclore carioca, uma maneira alegre e despretensiosa de viver. Parte ele sem saber como era importante o seu viver.

 

Saudades, Ernesto.
 
 
 
 

minha máxima culpa!

 

Você se foi tão de repente, sem referendo algum. Não tive liberdade de escolha, ainda não se decide isso por aqui, apesar dos humanos se sentirem maior que Deus. Penso em você e imagino-o conversando com o George Harrison, ambos fumantes. Aí é proibido fumar? Tem que se ir ao purgatório dar três tragadas rapidinho e voltar? É um inferno ou um paraíso? Aqui o Cristo Redentor continua de braços abertos, mas os olhos estão cada dia mais fechados. Será que a culpa é do cigarro? A Tsunami acho que foi sim. Será que eu tô fazendo apologia e a galera vai cair de pau? Não deveria, pois já estou convencida de que o planeta vai acabar por culpa dos fumantes. Minha culpa, minha máxima culpa!
 
O Maraca não fica mais lotado em dia de Fla x Flu; o estádio está tão doente quanto o Rio e os fumantes. Os flanelinhas continuam exigindo dois reais a cada estacionada de carro, institucionalizou-se esta multa. Fumante deveria pagar mais. A empada praiana ainda dá piriri, em fumantes deveria dar mais, como castigo. Os tiros ressoam bem alto em nossos ouvidos, culpa do cidadão que foi dizer não à proibição de armas. Estes, com certeza fumam muito! A Feiticeira ainda usa esteróides anabolizantes, mas virou crente e parou de fumar, que nem a Darlene Glória e jogador de futebol decadente. Viraram exemplos de força de vontade. O café do Rio Sul continua uma delícia e o garçom permanece preguiçoso. Lá não se pode mais fumar. Shopping agora é um lugar muito saudável. O botox barateou demais, então as mulheres estão todas com cara de arigatô! Não tragam, pra não criar bigode chinês, rugas de expressão! Botox não faz mal algum. Sacou, baby? O celular está menor que um isqueiro, porém eu insisto em não aprender a usá-lo. Permanecem os desafios: operar um celular e parar de fumar, duas coisas facílimas e corriqueiras. Uma amiga comparou ambos e afirmou que basta querer. Vou usar Ziban para as ligações.

 
No inverno está fazendo muito calor e no verão, frio pra dedéu, culpa do efeito nicotina. Em cada esquina persiste um pagodeiro ex-fumante, só viciado em bebida, esta não liquida o azul do céu. Querem virar celebridades no Faustão e este ainda briga com o Gugu, um cara muito bacana, pois nunca fumou, pela audiência no domingo "legal". Quebrar barraco também virou moda. Amassar maços de Free poderia virar, né? A violência aumentou muito e o presidente transferiu a responsabilidade desse caos total para nós, o povo. Fica com a responsabilidade maior, é óbvio, o viciado em nicotina que, certamente, tem escopeta. Bastou ter arma que se virou guerrilheiro, portanto, seu bisavô — adepto de Ghandi e chegado numa cigarrilha — não era da paz. Ele tinha aquela espingarda na parede e muita fumaça na alma.
 
Não tente achar sentido em nada, pois nunca fomos bons em lógica, não conseguimos parar com o vício. Uma novidade é o "nome" do roubo dos políticos, que agora se chama mensalão. Ou cuecão, uma puta sacanagem que não dá tesão. Tem gente morrendo por isso. Deveria se chamar cigarrão, que é um mal social bem maior! Decerto, a seca no Amazonas é culpa dos índios, que sempre foram chegados ao tabagismo. Enfim, a transferência de responsabilidade sempre foi a grande solução do mundo.
 
Ontem fui votar a questão da comercialização de armas. Estacionei e fumei um cigarro dentro do meu carro. Fui abordada por um adepto do Sim, que perguntou qual a minha opção. Disse Não! Olhou com asco para a minha mão. Mereço provavelmente a cruz e levar muita pedrada. Sou o tipo de pessoa nociva para um mundo tão puro de idéias e ideais. Sem tribo, é como eu me sinto. Fantasiar foi o que restou. As linhas de acesso: além da amarela e da vermelha, agora tem outra. Branca! Da cor de seus cabelos. Linha imaginária de uma só mão. Por ela toco na sua. Nela e nas espirais da fumaça assassina eu viajo. Forma de continuar a viver sem você, que acendia meu cigarro sem me olhar, como se eu fosse um ET.
 
Por que aquele carro atropelou você? Sou capaz de apostar: porque você fumava.
 
 
 
 
imagem original ©liesl stangl
 
 
 
 
Rosa Pena (Rio de Janeiro-RJ). Professora e administradora de empresas. Especialista em recursos audiovisuais e artes cênicas. Trabalhou na Divisão de Multimeios da Educação na Secretaria de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, com projetos ligados a cinema, teatro, música e literatura. Compulsiva para ler e escrever, considera a Internet a grande biblioteca contemporânea. Tem livros virtuais publicados e dois livros editados no papel: Com licença da palavra, antologia do grupo Pax Poesis Encantada (Editora Scortecci, 2003) e PreTextos, seu livro solo, onde reúne cem crônicas de sua autoria (Editora All Print, 2004). Mais em seu site.