ANIVERSÁRIO
Metade do tempo consumada ou ainda mais. No peito, a mesma fome, a mesma sede do menino, do rapaz. O mesmo olhar perplexo o mesmo sem resposta gesto crispado interrogando.
(É dezembro e noite e abro a janela e vejo outras janelas iluminadas. Ali há vida, como na rua, como no campo e no mar e nos velozes aparelhos que cortam o espaço e talvez noutros planetas e universos. Como há incontáveis séculos e provavelmente amanhã. Mas tudo rápido demais que nem nos podemos saber e partimos no mesmo escuro em que chegamos.)
Perdi colegas, namoradas, cães. Perdi árvores, pássaros, perdi um rio e eu mesmo nele me banhando. Isto o que ganhei: essas perdas. Isto o que ficou: esse tesouro de ausências.
(A noite avança e as janelas aos poucos se apagam. No silêncio meu coração permanece iluminado. Eis que trabalha, fiel, mesmo quando revela a si mesmo em breve imóvel ou, depois, a última estrela sem testemunhas no céu final.)
EPIFANIA
Alguns anos não consigo deixar nas águas do Lete: os teus catorze morenos e os meus magros dezessete. Muitas coisas se afogaram, e rostos, e pensamentos, e sonhos, e até paixões que eram imortais... Porém, os meus magros dezessete e os teus catorze morenos não entram nem em reflexo nesse Rio do Esquecimento.
Que magia nos levou a um espaço e a um momento para que de nós soubéssemos: tu, meus magros dezessete; eu, teus catorze morenos? Que astúcia do Imponderável nos abriu aqueles dias que permanecem tão claros como quando nos surgiram? Eu não sei. Mas sei que a vida nunca mais me foi vazia.
Como não foi fácil, nunca, por tanto me visitarem os Arcanjos da Agonia. Pois, se fui iluminado por estarmos lado a lado — os teus catorze morenos e os meus magros dezessete —, seria fatal que também viesse a sentir a alma em chagas multiplicadas por setenta vezes sete.
Ah, os teus catorze morenos e os meus magros dezessete!... Quanto sofrimento fundo — mas quanto sonho profundo e alto! Que belo mundo foi-me então descortinado, porquanto me era dado o privilégio preclaro de penar de amor no claro, no escuro, em todas as cores, em todos os tons da vida, dia e noite, noite e dia, varrido ao vento das asas dos Arcanjos da Agonia (que eram, por algum prodígio, os mesmos da Alegria!...).
Ah, que por mim chorem flautas, pianos, violoncelos, as cachoeiras, os céus comovidos dos invernos... Chorem, chorem, que mereço essas lágrimas, porque tudo sofri no mais pleno de paraísos e infernos. Que chorem... Mas eu, eu mesmo, não choro... Como chorar, se mereci essa dádiva de um amor doer na vida por setenta vezes sete mais que qualquer outra dor, mais que qualquer outro amor? Só me cabe agradecer, pois a vida perderia (e, o que ainda é mais cruel, sem nem saber que a perdia...) se não provasse os enredos, insônias, febres, venenos que em meus magros dezessete acendeu a epifania dos teus catorze morenos!
SONETO DO QUINTAL
para Matilde e Mario, em Monte Gordo, março de 91
Ao recordar a moça, eu me comparo ao cão que vejo a interrogar a brisa. O que é mal comparar: bem mais precisa é a mensagem de odores que o faro
decifra. E então medito sobre o claro ser desse cão, e invejo essa precisa vocação de existir. E ausculto a brisa e nada nela encontro. Nada. E paro
de lembrar e pensar. Há mais profícuas ocupações. Exemplo: só olhando estar. Cão. Nuvens. Ramos. E, dormindo,
um gato. E essas formigas — três — conspícuas, vestidas a rigor, deliberando em torno de uma flor de tamarindo.
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SONETO DO ANJO DE MAIO
Então, em maio, um Anjo incendiou-me. Em seu olhar azul havia um dia claro como os da infância. E a alegria entrou em mim e em sua luz tomou-me
o coração. Depois, suave, guiou-me para mim mesmo, para o que morria, em meu peito, de olvido. E a noite, fria, fez-se cálida — e a mágoa desertou-me.
Já não eram as cinzas sobre o Nada, mas rios, e ventos, e árvores, e flamas, e montes, e horizontes sem ter fim!
Era a vida de volta, resgatada, e nova, e para sempre, pelas chamas desse Anjo de maio que arde em mim!
CANÇÃO MATINAL
a Ricardo Vieira Lima
Acorda bem cedo o homem da casa de telha-vã e abre janela e porta como se abrisse a manhã.
E eis que a vida não é mais nem triste, nem só, nem vã. É doce: cheira a goiaba e brilha como romã
orvalhada. E ele caminha, o homem, com passos de lã para em nada perturbar a quietude da manhã.
Já não há mágoas de perdas nem angústias de amanhã, pois a alma que há na calma entre a goiaba e a romã
é a própria alma do homem da casa de telha-vã, que declara a noite morta e acende em si a manhã.
ESSA MULHER A que nunca amei e me ama pensa em mim à noite antes de dormir, e nos escombros do sono vê o meu rosto suave, arrogante, de há muitos anos e sente uma mão fria empunhar-lhe o coração.
É bela a que nunca amei e me ama, cada vez mais bela com seus cabelos soltos ao sopro da memória, com uma voz onde sonham luas que jamais iluminaram um caminho que me levasse à que nunca amei e me ama.
É doce essa mulher que acorda e diz o meu nome com unção. Seus olhos me fitam do longínquo e doem em mim como dói nessa mulher que me ama amar quem nunca a amou, disperso em seus enganos.
A que nunca amei e me ama acaricia a minha ausência com pena de mim, que teria sido feliz, bem sabe, se a tivesse amado; a ela, que me ama e nunca amei e nunca hei de amar, como até hoje, amargamente.
CAMPO DE EROS
Amor: esta palavra acende uma lua no peito, e tudo mais se esfuma.
E testemunho: eis que Amor deixou ferida cada coisa que tocou.
E tudo dele fala: a mesa, a cama (como abrasa este hálito de chama!),
o bar, cadeiras, livros e paredes vivem, revivem: de fomes e sedes
a corpos saciados. Tudo fala, tudo conta. Só a boca é que se cala.
Amor. Do extinto pássaro, o vôo prossegue, inexorável. Mas perdôo,
eu, essa lâmina que me escalavra, revolve em mim, em sua funda lavra,
amor, restos de amor, gestos quebrados, enganos, mais amor, olhos magoados,
e fúria, e canto, e riso, e dança, e dor. E a Quimera. E amor, amor, amor
por toda parte trucidado e em flor.
SONETO DA NEGRA
a Maria da Paixão
A cor da suavidade é que a modula. Nela se abisma a luz e se revela incapaz de alterar nada daquela penumbra que a atrai, absorve, anula.
Nessa paisagem que coleia, ondula como um rio, ou o mar (e é dela e ela), um vento violento me desvela um animal que me trucida e ulula.
O tom da suavidade não se altera, eleva um canto cálido e me diz que são garras de amor, e é bela a fera.
E assim, em carne rubra e cicatriz, entrego à cor profunda que me espera estes despojos em que sou feliz.
CANÇÃO DA MOÇA E DO SONHO
a Neyla, in memoriam
Com que sonhavam, no baile, seus olhos semicerrados?
Há mais de quarenta anos foi tirado este retrato:
a moça em vestido casto e luz de sonho no olhar.
Com que essa moça sonhava nesse intervalo de baile
e de maneira tão clara que os olhos quase fechavam?
O que — ou a quem — contemplava o sonho no seu olhar?
Há mais de quarenta anos, como era serena a face
voltada para esse sonho (moça e sonho: face a face).
Que sonho nela sonhava, e que tanto a iluminava?
Não importa. Importa a face doce; e, nos semicerrados
olhos, a canção do sonho. Importa que houve um sonho
e o resplendor dessa face — antes que o tempo passasse.
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CANÇÃO DA MOÇA DE DEZEMBRO
A moça dança comigo nessa noite de dezembro. Na sala onde giramos, se alguém mais há não me lembro.
O ondear da moça ondeia uma melodia ainda mais doce que a da vitrola — e uma alegria vinda
dessa doçura me envolve. Cabe bem no meu abraço esse perfume com que vou girando e em que me abraso
em meus quinze anos (a moça terá, talvez, dezessete ou dezoito). Como a valsa, a vida o melhor promete.
E já oferta: esse corpo a cada instante mais perto. Ao qual responde meu corpo, como nunca antes desperto.
E a moça vai-me queimando em seu hálito, afogando-me nos cabelos, e nos olhos luminosos siderando-me!
E eis que, dançando, saímos além da sala e do tempo. E dançando prosseguimos, sempre que sopra dezembro,
nos mesmos giros suaves, nos mesmos ledos enganos: eu, o antigo rapaz, e a moça, morta há treze anos.
CANÇÃO DE DEPOIS DE TANTO
a Roniwalter Jatobá
Vamos beber qualquer coisa, que a vida está um deserto e o coração só me pulsa sombras do Ido e do Incerto.
Vamos beber qualquer coisa, que a lua avança no mar e há salobros fantasmas que não quero visitar.
Vamos beber qualquer coisa amarga, rascante, rude, brindando sobre o já frio cadáver da juventude.
Vamos beber qualquer coisa. O que for. Vamos beber. Mesmo porque não há mais o que se possa fazer.
ELEGIA DE AGOSTO
"... procura tua filha, beija-a e fecha-a para sempre em teu coração". Carlos Drummond de Andrade: "Desaparecimento de Luísa Porto".
Ali estava, cintilando na dor da morte de sua própria carne, morte de sua própria mais preciosa carne, aquela de rosto (como ele escreveria no diário) lindo, puro, sem rugas, juvenil.
Ali, assim. Nas velas rotas da alma não mais recolhe o vento de Minas. Já não acolhe o rei de Sião, nem o menino chorando na noite, nem Fulana (embora tanto houvesse amado deitar-se à sombra das moças em flor), nem o operário, nem o leiteiro sutil da madrugada, nem Clara passeando no jardim com as crianças, nem os heróis que cantara na construção de um mundo que não chegara a ser: o Mundo, o país de todo homem.
Apenas arde, agora, a derrota incomparável. Mãos se estendem, abraços o envolvem, entre cálidos sussurros compassivos. Mas nenhum ali é Mário, nem Manuel, nem Pedro, nenhum é alguém para essa terrível rutilância (talvez a única companhia seja o filho nascido sessenta anos antes e morto instantes depois).
Ali estava. Em tempo algum assim, tão vácuo, nem mesmo restavam as casas de silêncio, as roças de cinzas, a memória do Halley no céu da infância (cuja história fora mais bonita que a de Robinson Crusoé).
Nada restava. Nem um botão. Nem um rato.
Nunca antes assim, sob um céu vazio, avaliando o que perdera, e eis que tudo perdera, e o que ainda havia só era uma dor circulando sobre a ruína, sobre o que já não era vida, sobre o que era, na morta e no fatal seu lado esquerdo, apenas barro sem esperança de escultura.
ANTIELEGIA DE AGOSTO (1902-1987)
"... a mensagem que ensinava a esperar, a combater, a calar, desprezar e ter amor". Carlos Drummond de Andrade: "Mas Viveremos"
As estações do coração cessaram há dez anos em ti. Em nós, no entanto, ainda se abrem com a luz do encanto dos teus primeiros versos que pousaram
em nossa mocidade, uma oferenda sutil, porém espessa, e nossa vida dela embebeu-se até (hoje vivida) a madureza, essa terrível prenda.
A nossa vida, que se fez segundo tuas palavras. Só nos embalavam teus versos graves, que em nós pulsavam como um coração maior que o mundo
— ou menor, que importava? Um coração nos corações, cantando-nos toadas amorosas, desejos, saqueadas montanhas, desencantos, solidão
(que — tu o disseste — é também palavra de amor), ternuras, sonhos, ironia, humor, em sopro vasto de poesia que circulava em nós e ainda lavra
em nossos dias. Tua voz soava em nossa voz. E nada se fazia sem ela a ritmar a alegria ou a tristeza. Tudo se cantava
segundo o Poeta, o irmão maior: assim no bar como no baile; assim na rua como no mangue, ao vento, ao sol, à lua; assim na escola como no jardim
onde giravam Dulces, Beatrizes, Rosas, Leonoras, Cármens... (e ainda estão girando, e vão e vêm, e vêm e vão em névoa anterior às cicatrizes
e outras memórias). Exigiam rumbas, algumas; outras, valsas; outras, ambas — e ainda havia as que dançavam sambas bravos, violentos, sobre as nossas tumbas.
Ah, nunca é fácil essa dança... O amor é isso que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija, depois foge e ficamos coçando a nossa dor
de cotovelo. E então, contigo, íamos a outras danças: em Berlim, fraternos, entrávamos com o russo; os infernos da guerra se evolavam; e o que ouvíamos
era uma voz falar de um tempo novo, sem igrejas, quartéis, ouro, bandeiras, país de todo homem, sem fronteiras: voz da tua canção, rosa do povo.
O mundo não pesava mais que mão de criança em nossos ombros. E as almas eram confiantes e fitavam, calmas, o horizonte futuro: amplidão
de esperanças. O sonho se cumpria. Era só caminhar na claridade e semear a terra e ter vontade de amanhecer no azul que amanhecia.
Se assim não foi, se agora a incerteza se alastra, pouco importa. Em nós se esconde, e queima, um fogo — e a um grito ainda responde outro grito, outro homem, outra certeza.
Teu coração repousa. Mas a lavra de tua voz persiste. Em nós, ainda, traça seu sulco fértil, que não finda essa rosa, esse canto, essa palavra. |
(imagens ©grant faint | digital vision)
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RUY Alberto d'Assis ESPINHEIRA FILHO nasceu em Salvador, Bahia, no dia 12 de dezembro de 1942, filho de Ruy Alberto de Assis Espinheira, advogado, e Iracema D’Andréa Espinheira, de ascendência italiana. Passou a infância em Poções e a adolescência em Jequié, cidades do Sudoeste baiano. De volta a Salvador, em 1961, estudou no Colégio Central da Bahia e, levado pelo poeta Affonso Manta, que conhecia desde Poções, ingressou no grupo boêmio capitaneado por Carlos Anísio Melhor. Ainda nos anos 60, começou a publicar na revista Serial, criada por Antonio Brasileiro, e se iniciou no jornalismo — como cronista da Tribuna da Bahia (1969-1981), onde também trabalhou como copidesque e editor (1974-1980). Colaborou ainda com o Pasquim, como correspondente na Bahia (1976-1981), e foi contratado como cronista diário do Jornal da Bahia (1983-1993). Atualmente assina artigos quinzenas em A Tarde. Graduado em Jornalismo (1973), mestre em Ciências Sociais (1978) e doutor em Letras (1999) pela Universidade Federal da Bahia, UFBA, e doutor honoris causa pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, UESB (1999), é professor associado do Departamento de Letras Vernáculas do Instituto de Letras da UFBA, membro da Academia de Letras de Jequié e da Academia de Letras da Bahia. Publicou 11 livros de poemas: Heléboro (1974), Julgado do Vento (1979), As Sombras Luminosas (1981 — Prêmio Nacional de Poesia Cruz e Sousa), Morte Secreta e Poesia Anterior (1984), A Guerra do Gato (infantil — 1987), A Canção de Beatriz e outros poemas (1990), Antologia Breve (1995), Antologia Poética (1996), Memória da Chuva (1996 — Prêmio Ribeiro Couto, da União Brasileira de Escritores), Livro de Sonetos (1998; 2. ed. revista, ampl. e il., 2000), Poesia Reunida e Inéditos (1998), A Cidade e os Sonhos (2003), Elegia de agosto e outros poemas (2005; em 2006 – Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras, Prêmio Jabuti – 2º lugar –, da Câmara Brasileira do Livro; Menção Especial do Prêmio Cassiano Ricardo, da UBE-RJ). Tem ainda publicados vários livros em prosa: Sob o Último Sol de Fevereiro (crônicas, 1975), O Vento no Tamarindeiro (contos, 1981); as novelas O Rei Artur Vai à Guerra (1987, finalista do Prêmio Nestlé), O Fantasma da Delegacia (1988), Os Quatro Mosqueteiros Eram Três (1989); os romances Ângelo Sobral Desce aos Infernos (1986 — Prêmio Rio de Literatura [2º lugar], 1985), Últimos Tempos Heróicos em Manacá da Serra (1991); Um Rio Corre na Lua (2007) e os ensaios O Nordeste e o Negro na Poesia de Jorge de Lima, dissertação de Mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia(1990), Tumulto de Amor e Outros Tumultos – Criação e Arte em Mário de Andrade, tese de Doutorado em Letras, também pela UFBA (2001), Forma e alumbramento — poética e poesia em Manuel Bandeira (2004). Lançou ainda o CD Poemas, gravado pelo próprio autor, com 48 textos extraídos de seus livros, além de alguns inéditos (2001). Contos e poemas seus foram incluídos em diversas antologias, no Brasil e no exterior (Portugal, Itália, França, Espanha e Estados Unidos).
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