Sariema — a hora e a vez

               

            (para o conto de Rinaldo Fernandes em O perfume de Roberta)

 

nas pernas febris

em sussurros  de saia

o tremor trai

                   a fome de delicadezas 

 

na  boca sedenta

a saliva que vibra

afia doce e voraz

                   o cortejo do medo

 

no corpo sem hora

a dor é lâmina quente

que a cada vez

                   corta dentro

 

 

 

 

 

 

 

Sísifo  calado

 

            (à maneira de Affonso Romano)

 

sobre minhas falhas eloqüentes

agradeço o silêncio

de olhos bocas tatos ouvidos

                   

a única escolha-Sísifo
não é porém só pedra circulando
líquidos desejos em carne viva
constatam ainda nocivas
memórias atalhos

talhos pulsando

se o poeta é um fingidor tão imenso
calo transtorno recolho infiro
diz outro poeta que prefiro
 não pergunte

(mesmo sendo um modo tenso)
melhor não se explicar
calar
é às vezes fina forma de amar

 

 

 

 

 

 

memória de Tróia

 

revogo minha história que não faz inveja a outra Helena

— aquela de Tróia

 

sou obrigada a descriminalizar minha morte

que ninguém viu você entrar nem sair

 

assim como certos crimes jamais serão resolvidos

assim o seu

 

suas mãos bem lavadas

redimem o dolo

                       de empunhar um punhal de prata

                       (como disse Cecília poeta,

                       o problema não é morrer

 mas saber quem te mata...)

 

mesmo que a história só registre uma vez

há certos atos que não acabam nunca

 

helenas sabem disso

 

 

 

 

 

 

purgatório

 

(à Lorca)

 

às cinco da manhã

chovo

incerto tempo

encontro

rasgo

como um olho

aberto como fenda

às cinco da manhã

pêndulo

fixo fronteiras

impulso

pulsa

não escreve

treme

às cinco de manhã

como às cinco de la tarde

há um vulto insone

há um corpo intenso

há uma memória vasta

há um purgatório de amor

às cinco da manhã

dormente

bata

chega

 

chova-se você também

 

 

 

 

 

 

Surre virtu al

 

Sua palavra

que pensa

sobre a tela

instiga

aqui... como                     

                    Dali

                                           e muito...

muito mais que

                    Rodin.

 

 

 

gostos de Afrodite

 

 

                       tépida desmedida

mistura de escuta

                       sombra e semeadura de minha espera

                       — ainda verde

 

depois do sol

a vereda penetra

debaixo da lua urgente                                     

                       orgia de cheiros hortelã–pimenta

                       crescente adágio

                       sorve o jorro

 

                       transformador e febril

                       em minha boca

                       o fermento úmido na polpa e sumo  

                       é passe para o Olimpo

 

 

             

 

 

flor da pele

                       (ou... a tua poesia  em Goyás)

 

a hora úmida

da flor

exala o amadeirado

                       de seiva e mel

                                        em ponto caramelo

                                          

tua  receita milenar e doce

expande minha idéia de fome e de jardim

                                                             — minha idéia de sim

 

 

 

 

 

 

                      a insustentável leveza do ser

 

quero teu corpo, sim

 

mas quero tua alma

inteira

— antes

sobre mim

 

 

 

 

 

 

                     a verdadeira leveza do ser

 

 

essa mania de focos

melhor fossem

 

 

 

 

 

elogio às coisas

 

        (como em Borges)

 

ou claro ou escuro

ou água ou fogo

a retidão do provável grita

e dói

    

por entre sombras e sedes

reflexos e semitons

a alma voyeur sussura

e sorri

 

frações do tempo

entrelaçadas na ante-sala do acervo

encaminham cores

e matizes

 

só eu sei que

as coisas que me cercam

sigilosamente são você

 

 

(Finalista do prêmio SESC Carlos Drummond de Andrade 2005)

 

 

 

 

 

 

milagres acontecem

príncipes existem

 

para um príncipe que desbrava

não se dá qualquer poesia

não se pede

âncora

rede

anestesia

 

para um príncipe que voa

se faz o sinal da cruz

se reservam beijos

se mantêm acesos

o desejo...

e a luz

 

 

 

 

 

...epur si muove

(ou... assim também em Galileu)

 

 

o esplendor da manhã não se abre com faca

diz                                     manoel de barros

nem que haja tiroteio cerrado de

                                           silêncios e pausas

 

não entendo de armas mas

entendo de música

                              tons, semi-tons, propagação de sons

 

 

faço escuta clandestina

preparo a pele para o sol

            (não há como impedir o calor a queimadura sim) 

            nua   nem surda   nem cega  

            apuro o paladar                                                

          

 a manhã é reordenada geografia

 ultrapassado o canto das sereias

 afino minha palavra        

 especiaria

 

 

 

 

Sylvia Helena Cyntrão. Carioca, formada em Letras pela UFRJ, mora em Brasília desde 1983, por opção e paixão. Professora adjunta do Departamento de Teoria Literária e Literaturas na Universidade de Brasília - UnB. Mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UnB, com tese sobre a poética da canção de Chico Buarque e Renato Russo, entre outros autores. Foi fundadora e diretora por 8 anos da Editora Universa, da Universidade Católica de Brasília e representante–presidente do Centro-Oeste na Associação Brasileira de Editoras Universitárias - ABEU de 2000 a 2002. É editora da Revista Cerrados de Literatura do Programa de Pós-graduação e coordenadora do Curso de Especialização em Literatura Brasileira da UnB. Coordena  o Grupo de Poesia na UnB que reflete sobre as linhas de pesquisa "A literatura e as outras áreas do conhecimento" e "A representação na lírica contemporânea" e orienta teses sobre temáticas relacionadas. No prelo, a da mestranda Yara Fortuna, "Da lama ao caos", sobre o Mangue Beat de Chico Science. Mantém interlocução pessoal, sobretudo, com os poetas contemporâneos que vêem a poesia como espaço híbrido e de inclusão. Em julho de 2006 (de 17 a 21), estará coordenando, no 52º. Congresso Internacional de Americanistas na Universidade de Sevilha, o Simpósio "Novos vetores de representação da literatura brasileira e latino-americana", que reúne 14 pesquisadores de diversos países.

 

Livros publicados com uma visão teórica da poesia contemporânea e das letras de  canções: Da paulicéia à centopéia desvairada: a MPB e as vanguardas. Com Xico Chaves, Rio de Janeiro: Elo Editora, 1999; A forma da festa: Tropicalismo, a explosão e seus estilhaços (org.). Brasília: Editora da UnB, 2000; Como ler o texto poético: caminhos contemporâneos. Brasília: Editora Plano, 2004. Livros de poesia: Sopros e Mordidas. Rio de Janeiro: Elo Editora, 1999; Coração em III atos. Rio de Janeiro: Elo Editora, 2001. No prelo, para 2006: O IV quarto e o ato.