Soares Feitosa, Francisco José: poeta, escritor, jornalista, consultor tributário. Vive em Fortaleza, no Ceará, onde nasceu, em 1944. Escreveu seu primeiro poema em 1993. Publicou Psi, A Penúltima (1997). É o editor do Jornal de Poesia, do Jornal de Tributos e do Jornal de Filosofia. Jornalista responsável pela Revista Agulha, editada por Floriano Martins e Claudio Willer. Planeja publicar Salomão, "coisa pra mais de 900 páginas", em 2003/2004.
habitação

Nem saberia dizer onde moro exatamente.
Desconfio que habito dentro de meus dentes.

Doutras vezes era a penugem dos canários,
e era ali, naquelas sedas, penugem e cor,
que eu me mudava para minhas mãos,
senão os gatos, o dorso, viajava neles.

E se um pássaro súbito:
não pelo avisto, pelo ouvido porém;
(o som é que é súbito) — e outra vez me mudava,
era só ouvidos.

Para os meus olhos,
eles se esbarraram — sobre todos os horizontes —
em cima da beleza:
clamassem os dentes,
clamassem as mãos, clamassem as oiças,
a pele também clamasse — qual nada! —
haveria de engolfá-la só com os olhos —
anos a fio moro neles.

Um dia morei sobre o peito de minhas mães,
branca e preta, as mães,
(todas verdadeiras)
na mesma medida, agora, assim,
minha banda-fêmea
te regaça:

...........desta vez
..........."mulher",
...........sou tua "mãe".

Pousa, amor,
te esbalda na cavilha deste peito-pulso
que pulso de pulsar te estremece:
teus dentes, tua-inteira, toda-tua,
tua cara, teus cabelos, tua pele — tudo — e alma;
deixa-te cair neste infinito-agora.

Terminei de sair dos meus dentes, dos meus olhos,
das minhas oiças também saí;
habito agora apenas esta minha mão;
sou apenas esta mão:
nenhuma diferença entre todas as coisas,
um dia quis pegá-las, mordê-las; mão,
o calor de tuas sedas.

...........E se dormires
...........recobrirei respeitosamente a tua nudez,

...........que é só tua —

...........pausadamente, pousa
...........o hálito
...........na cavilha deste peito largo:

...........dorme, amor,
...........sossega,

....................da
....................tua
....................nudez — sossega —

...........que da aurora,
...........vigilante
...........eu tomo conta.

millenium

Nem anzóis, nem redes.

Sequer ele próprio, em boa culinária,
aos molhos, azeites, azeitonas,
numa manhã de folguedos. Não.

Nem isto. Peixe algum te chegue à boca.

Que seja teu,
permanente, ainda que escuro seja
o dia —
espelho e face, a ti, o Retrato do Peixe.

uma canção distante


Guardo tuas coisas para uma viagem
..............................(em que tempo?),
em que vagão viajaremos — e as janelas:
abertas pr'uma paisagem verde...!?


Guardo tuas coisas para uma viagem,
..............................(em que modo?):
no modo presente, no modo advérbio, passado —
passam, passam coisas,

que os meus dedos aos lábios,

de uma mão perfeitamente trêmula,
cantam uma canção distante:
..............................silêncio.

Guardo tuas coisas para uma viagem,
..............................(em que vontades?):
pois se me fugiram os cavalos meus,
arrebentados todos os trens,
mortos os condutores de todos os carros,
naufragadas todas as jangadas,
..............................e o mar
..............................brutalmente mar,
..............................mesmo assim,
..............................as coisas tuas guardadas, fiel:
..............................(onde?):

navegar é possível.
o prisioneiro


Trouxeram-me a prisioneira ao interrogatório.

Recusei-me às perguntas porque as respostas
estavam ao passado. Sequer o futuro
se lhe indagou; que também recusou
perguntar, quando os carrascos lhe disseram:

....................................
— Pergunte o que quiser.

Ela apenas balbuciou:
....................................— Eu sei.

Mentíamo-nos,
porque jamais nos víramos.

Decretei a prisão imediata de todos os carrascos.
Mantive a prisioneira sob algemas,
que ninguém é louco de manter
tesoiro tão rico ao léu;

........mas, prudência maior,
........soltei-lhe os braços e mudei as algemas
........aos meus próprios pulsos.

Ela —
os gestos diziam que me seriam
sob afagos.

Deixei:
apenas que os olhos, os cabelos úmidos:

....................................— Os meus? Os dela?

Era o chamamento.

1.

bromélias para rachel

..............."Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
.....................Com as estrelas lentejoulas rápidas
.....................No teu vestido franjado de Infinito".
............................................Álvaro de Campos

O teu retrato, ontem de noite, na revista do Távola,
e não me assombrei. Pelo contrário, estás linda.

Agora de manhã, mostrei à advogada,
ela trabalha aqui comigo,
e disse-lhe, já mostrando:
"Parece com você".

Ela disse: "Parece não, é muito séria".
Eu disse: "É não; ela é

uma poeta dos aurorais, os sóis do pântano".

Ela perguntou se tinha bromélias.

Eu disse que bromélias, com muito espinho e muitas
abelhas que me ferroavam
todo o tempo, eram-lhe
[as bromélias, os espinho, as abelhas]
eram-lhe os olhos.
Não reparei
se enrubesceu; uma liminar, essas banalidades do "pncd" —
o pão nosso de cada dia — o cliente ao telefone;
e então a noite tomou conta outra vez.

2.

os desenhos

E todos os desenhos eram prévios.
Até mesmo o gesto:
pegar uma xícara, coisas banais,
riscar um risco, o dizer que sim,
levantar da cadeira; eram prévios
todos os desenhos.

E bebíamos e nos ríamos às coisas fúteis,
e nos dizíamos duma casinha bem branquinha,
como se à mata, os regatos
já rumorejassem a nossos pés.

— Que mais queres, leitor ávido de coisas?

Uma montanha? Exiges uma montanha,
que eu te fale da montanha? Pois havia montanha,
sim; o horizonte encurvava-se ao nosso olhar,
profundamente
às coisas de que aos olhos...
..........................................................E eram
excessivamente prévios todos os desenhos.

Agora,
este triturador de papel.

a lágrima súbita

................................"Porque o medo não é outra coisa
................................senão o desamparo da reflexão".
................................Livro da Sabedoria, 17,12)

Nenhuma grande chuva
jamais encheu
o mar;
nenhuma seca do Ceará conseguiu baixar
o nível das águas
deste mar-oceano;
logo,
esta lágrima súbita,
neste mar salgado, é inútil
como volume.

— De que medos tenho coisa?

Transito eu — ela disse — entre o abismo
e a lembrança;
que agora,
neste borrifo de espuma e brisa,
os escorridos da minha face me confundem:

..............— serão de mim,
..............serão do mar? —

— De que medos tenho eu?

Por que agora uma lágrima,
nascida num canto de minha face,
quando lágrimas
só as conheço de alegre?

Seria este azul de mar
profundo, fundo,
cheio, soturno,
a fonte obscura do meu terror?

..............Se eu chamar a reflexão,
..............aplacadas serão minhas aflições?

Ou, mais prudente clamar pelo sonho,
que prefiro imaginar, agora:

..............(optei pelo sonho,
..............claro que é sonho)

esta vontade de fugir
e cavalgar horizonte e brisa,
tanger os ventos no corcel dos meus cabelos,
navegar os azuis e céus na esquina de minha face
e quando gritar por lágrima,
venha, senhora lágrima,
eu quero
eu preciso chorar,

.....................::::::::::::::::::::::::::

..............::::::::::::::::::::::::::

e de surpresa,
quando olhar de lado,
é sonho, claro que é,
reencontrar,
no vento ligeiro,
a fuga dos teus olhos!?

Um quadro

e

suas versões ao passado

 

 

 

Quando Teófilo abriu o estabelecimento, lá estava, por baixo da porta, uma gravura. Quem a botara ali? Recuou-se ele, desde a infância, àquelas professorinhas a quem os meninos de então, ele também, chamavam "fessora". Não. Não era.

— Apenas uma foto de currículo, senhor. O vento. Quem sabe, algum retrato que vazou do cesto — disse a auxiliar das pastas. 

O vento. Isto mesmo! O que fazem as empresas com os currículos que lhes chegam aos montes? Afinal, não se sabe de alguém que tenha tomado currículo de volta. As cartas, as fotos, sim. Mas não era uma foto. Nem carta. Um quadro, com aparência de coisa fina: oil on canvas — e, no verso, ilegíveis os nomes, do quadro e do autor.

— Não é fotografia! — disse Teófilo.

A secretária deu o dito pelo não dito. Bem que o assunto poderia ter morrido ali mesmo. Contam que Teófilo pegou a gravura e, cuidadosamente guardou-a. Contam que ele, todos os dias, colocava-a sobre uma mesa imensa, de tampo de vidro, e botava-lhe lupa. Examinava-a repetidamente. Quando entendia que o tamanho estava bom, retocava-a em vermelhos, tudo a partir de um lápis de cor, desses de marcar CD's, que ele antes utilizava para avivar os rótulos do estabelecimento. Pior, mal chegava um freguês, lá estava ele a indagar se conhecia aquela jovem. Muitos, de tão repetidos os interrogatórios, antecipavam-se e, antes mesmo de regatear preços, esclareciam que não.

— Bem que o amigo poderia tê-la visto na quermesse... não?!

Na quermesse! Como se as jovens de hoje fossem à quermesse. Não; ninguém sabia. Não fora encontrada. Outros garantem que o retrato nada teria de misterioso e muito menos a ver com um suposto vendaval, mesmo porque o vento, ali, as janelas fechadas, seria nenhum.

Teria sido assim, de uma outra versão: Teófilo, um dia restaurou um sonho e rascunhou-o no ar. Aliás, "riscou-o" em cima da perna, mal acordara. Correu com toda pressa para o estabelecimento, botou o sonho em papel e remeteu-o, mediante gorda retribuição, a uma sociedade de pintores. Até abriu concurso. Deu instruções, assim e assado. Quando chegou o quadro, um amigo objetou que não havia, naquela pintura, nenhuma referência sobre a parte de baixo. Realmente, olhando-o, não dá para garantir que a jovem tenha algo abaixo cintura. «Claro que deve ter!», dizia ele ao amigo. Realmente, não existe pessoa só do peito para cima. E o resto? Como haveria de ser o resto?

Contam que Teófilo, do alto de suas muitas exigências, não teria reclamado da equipe de pintores, mesmo porque as indicações do sonho a nada mais abrangiam que as partes superiores, tal como está. Dizem que Teófilo padecia do medo pânico de exigir algo a mais, digamos, um novo quadro, de corpo inteiro, pois lhe assaltava o terror de jamais "encontrá-la" se acaso aparecesse nesse novo formato, dos pés à cabeça. Afinal, no sonho, era-lhe somente aquela parte, a de cima. Mostrava-se ela também de lado, mas nem tanto. Sim, a outra manga da blusa, onde estaria a outra manga? Não dá para ver — os cabelos são-lhe longos e espessos. Muito estranho, não?!

Até que um belo dia, um caixeiro viajante deu notícia de um pintor, um certo Allan R. Banks, norte-americano, nascido em 1948. O quadro? Justo aquele da gravura: Hanna. Nada a ver, portanto, com o sonho, aliás, com o pesadelo de Teófilo. O problema é que ninguém acreditou.

Leitor, por obséquio, não me pergunte sobre desfecho. Isto pertence ao passado, algo totalmente inacessível até mesmo aos senhores historiadores. De fato, se dois historiadores se encontram, igual aos críticos de Literatura, desentendem-se imediatamente. O que, pois, dizer dos muitos boateiros que balanceavam dia e noite a vida de Teófilo e seu quadro misterioso?! Sobre o futuro, não! Isto é assunto calmo, o futuro. Todos nós sabemo-lo. Experimente colocar qualquer pergunta no modo "acontecerá", e a resposta será imediata. Por isto mesmo é que os  feiticeiros e adivinhos estão todos desempregados. Inclusive Teófilo.