A necessidade brasileira
de esquecer os problemas agudos do país, difíceis de encarar, ou pelo
menos de suavizá-los com uma cota de despreocupação e alegria, fez com
que o futebol se tornasse a felicidade do povo. Pobres e ricos param de
pensar para se encantar com ele. E os grandes jogadores convertem-se
numa espécie de irmãos da gente, que detestamos ou amamos na medida em
que nos frustram ou nos proporcionam o prazer de um espetáculo de 90
minutos, prolongado indefinidamente nas conversas e mesmo na solidão da
lembrança.
Mané Garrincha foi um
desses ídolos providenciais com que o acaso veio ao encontro das massas
populares e até dos figurões responsáveis periódicos pela sorte do
Brasil, ofertando-lhes o jogador que contrariava todos os princípios
sacramentais do jogo, e que no entanto alcançava os mais deliciosos
resultados. Não seria mesmo uma indicação de que o país, despreparado
para o destino glorioso que ambicionamos, também conseguiria vencer suas
limitações e deficiências e chegar ao ponto de grandeza que nos daria
individualmente o maior orgulho, pela extinção de antigos complexos
nacionais? Interrogação que certamente não aflorava ao nível da
consciência, mas que podia muito bem instalar-se no subterrâneo do
espírito de cada patrício inquieto e insatisfeito consigo mesmo, e mais
ainda com o geral da vida.
Garrincha, em sua
irresponsabilidade amável, poderia, quem sabe?, fornecer-nos a chave de
um segredo de que era possuidor e que ele mesmo não decifrava, inocente
que era da origem do poder mágico de seus músculos e pés. Divertido,
espontâneo, inconseqüente, com uma inocência que não excluía espertezas
instintivas de Macunaíma — nenhum modelo seria mais adequado do que
esse, para seduzir um povo que, olhando em redor, não encontrava os
sérios heróis, os santos miraculosos de que necessita no dia-a-dia. A
identificação da sociedade com ele fazia-se naturalmente. Garrincha não
pedia nada a seus admiradores; não lhes exigia sacrifícios ou esforços
mentais para admirá-lo e segui-lo, pois de resto não queria que ninguém
o seguisse. Carregava nas costas um peso alegre, dispensando-nos de
fazer o mesmo. Sua ambição ou projeto de vida (se é que, em matéria de
Garrincha, se pode falar em projeto) consistia no papo de botequim, nos
prazeres da cama, de que resultasse o prazer de novos filhos, no
descompromisso, afinal, com os valores burgueses da vida.
Não sou dos que acusam
dirigentes do esporte, clubes, autoridades civis e torcedores em geral,
de ingratidão para com Garrincha. Na própria essência do futebol
profissional se instalam a ingratidão e a injustiça. O jogador só vale
enquanto joga, e se jogar o fino. Não lhe perdoam a hora sem inspiração,
a traiçoeira indecisão de um segundo, a influência de problemas pessoais
sobre o comportamento na partida. É pago para deslumbrar a arquibancada
e a cadeira importante, para nos desanuviar a alma, para nos consolar
dos nossos malogros, para encobrir as amarguras da Nação. Ele julga que
entrou em campo a fim de defender o seu sustento, mas seu negócio
principal será defender milhões de angustiados presentes e ausentes
contra seus fantasmas particulares ou coletivos. Garrincha foi um entre
muitos desses infelizes, dos quais só se salva um ou outro predestinado,
de estrela na testa, como Pelé.
A simpatia nacional
envolveu Mané em todos os lances de sua vida, por mais desajustada que
fosse, e isso já é alguma coisa que nos livra de ter remorso pelo seu
final triste. A criança grande que ele não deixou de ser foi vitimada
pelo germe de autodestruição que trazia consigo: faltavam-lhe defesas
psicológicas que acudissem ao apelo de amigos e fãs. Garrincha, o
encantador, era folha ao vento. Resta a maravilhosa lembrança de suas
incríveis habilidades, que farão sempre sorrir a quem as recordar. Basta
ver um filme dos jogos que ele disputou: sente-se logo como o corpo
humano pode ser instrumento das mais graciosas criações no espaço,
rápidas como o relâmpago e duradouras na memória. Quem viu Garrincha
atuar não pode levar a sério teorias científicas que prevêem a parábola
inevitável de uma bola e asseguram a vitória — que não
acontece.
Se há um deus que regula o
futebol, esse deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de
seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios.
Mas como é também um deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a
faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e
pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O
pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível.
Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho.
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Publicado
no Jornal do Brasil, em 22 de janeiro de 1983, dois dias
após a morte do craque. Publicado na Sibila com a
autorização da Agência Literária BMSR, a quem agradecemos. Carlos
Drummond de Andrade ©Graña Drummond — www.carlosdrummond.com.br
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dezembro,
2005
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