Raposas

 

Chegou em casa e a mulher estava com o açougueiro na sua antiga cama de casal. Já a vira com o padeiro, o lenhador, o entregador de raposas. Depois o leiteiro, o encanador e o engolidor de fogos do Circo São Judas Tadheu. Foi pro quarto chorar escondido. Fumou com um certo medo-coisa. Só tinha de vida o conhaque com Fernet, o luar de Itararé, o violão e o dominó dominical com os amigos que o perdoavam por ser impotente.

 

 

 

 

 

 

Vôo

 

Queria ter nascido Vôo de Pássaro e não Ser "humanus", disse certa vez o pianista chorão à irmã micro-empresária. Ela assustou-se a principio, mas estava acostumada com ele que era mais novo e metido a Poeta Cubista e visionário nas horas vagas. Quando o coitado finalmente um dia anoiteceu e não amanheceu nunca mais, ela não se preocupou muito. Cuidou bem dos pertences íntimos, partituras clássicas e dotes financeiros dele, porque também sabia escondido que, cada Pássaro pousa um dia e, todo Vôo, cedo ou tarde vira cerca de tabuinhas brancas.

 

 

 

 

 

 

Gaiola

 

Criava pássaros raros. Além de pardais, corruíras, patativas, bem-te-vis até alguns exóticos pássaros que sequer existiam. Quando a Polícia Florestal descobriu foi preso por crime ambiental em flagrante delito sem direito a fiança. Na Cadeia Pública de Itararé, triste e melancólico, sempre faminto e miserável canta Chitãozinho e Xororó toda manhã e toda tarde que camufla no íntimo.

 

 

 

 

 

 

Finados

 

Vinham roubar flores no secreto jardim imperial todo dia de Finados. Depois ele tinha trabalho dobrado para replantar, arar, colocar estrume e flor de carinho para recuperar a invasão e o desperdício. Mas naquele dois de novembro estava devidamente preparado. Armou a besta de mão e ficou esperando os guris carvoeiros da periférica Vila dos Pobres de Itararé.

 

 

 

 

Cego

 

Cego de nascença, aprendeu a ler no escuro. Desde pequeno os livros lhe eram abertos, os toques lhe fundavam janelas, os sons lhe eram caminhos de pedras, polindo vazios de serventias, ninhais e encantários em palavras timbrais. Um dia achou um doador de córnea e pensou que os recursos adquiridos poderiam lhe render a visão total. Não aceitou ser operado por conta do governo, nem enxergar no claro. Ficou com medo de se olhar no espelho das pessoas e ter medo da escuridão que havia nelas.

 

 

(Lido no programa Provocações, por Antonio Abujamra. Entre no site da TV Cultura e ouça)

 

 

 

 

 

 

Crime

 

Quando entrou pro Partido Liberal foi que descobriu que o crime compensava e dava imunidade parlamentar. E não havia riscos como nos assaltos a bancos e nas montadas glosas ao Fisco. E ainda podia retornar sempre ao local do crime, pois teria carteirinha do Juízo Eleitoral, o que lhe daria a guarida até da imunidade diplomática.

 

 

 

 

 

 

Polenta

 

Fazia uma polenta como ninguém no mundo. Parentes, vizinhos, amigos, todos  brigavam por um pedaço daquela guloseima benta. Pensou em abrir um fast food com polenta e frango, polenta e ovo de codorna, polenta e leite condensado, polenta e mel-silvestre. Mas não deu certo o investimento e continuou caseiro e artesanal. Ninguém sabia o segredo desse confeitar perene, sequer que ela tinha lepra e as casquinhas das feridas ajudavam no delicioso e inigualável molho secreto.

 

 

 

 

 

 

Volta

 

Com 33 anos, a idade de Cristo, resolveu mudar de sexo, descrente que se restava com a herança genética-genital de varão molóide. Vendeu todos os bens e foi para o exterior fazer a coisa certa. Voltou quase dez anos depois. É que a operação lhe tirou toda a grana arrecadada, e, depois de fêmea artificial teve que se virar para levantar fundos e poder então voltar pobre e com Aids à saudosa Pátria Amada.

 

 

 

 

 

 

Barriga

 

Cada vez que tomava água no Chafariz do Bairro Velho na Estância Boêmia de Itararé, sentia borbulhos perto da barriga aos solavancos, com a sede não passando e a inanição estranha piorando. Quando comia era pior ainda. Inchava. Começou a engordar e alguns topetudos alegaram que ele, o Peu Cambalhota, estava era grávido. Levado ao hospital foi que veio à tona o inusitado. Tinha criado um girino na barriga que depois virou sapo-martelo com úlcera sonora.

 

 

(imagens ©david de lossy e ©jaroslav)

 

 

 

Silas Corrêa Leite, de Itararé-SP, poeta, professor, autor do livro virtual O rinoceronte de Clarice, onze contos fantásticos com três finais cada — um feliz, um trágico e um politicamente incorreto — (pioneiro, único no gênero, de vanguarda), no site www.hotbook.com.br/int01scl.htm. Mais em sua página pessoal: www.itarare.com.br/silas.htm