Ele fumou um cigarro. Ela comeu uma nêspera. E nem notaram as cinzas vindo ao chão. Nem notaram os caroços, e as cascas, que nunca germinariam. Que nunca brotariam daquele chão de carpete. De carpete, assim, tão encardido.
 
Como nem notaram antes as gotas que derramaram sobre o lençol. Não notaram a saliva sobre a fronha nem o suor no cobertor. O esperma atravessando o colchão. Gotas de sangue fazendo parte. Talvez até lágrimas, até lágrimas, se eles pudessem notar, se eles pudessem perceber o que era, felicidade ou fantasia, tristeza, o que fazia aquele quarto tão úmido e tão vivo, enquanto eles ainda estavam lá. Tão encardido.
 
Ele apagou o cigarro. Ela engoliu a nêspera. Fecharam os olhos e nada viram. Os cílios escorrendo pelo rosto. Para tirar a sorte. Os fios de cabelo de outra, encostados ao ouvido. Os pêlos de um amor antigo, por debaixo da unha. Nem notaram porque dormiam. Alienados. Ela era apenas mais uma. Ele era apenas ninguém mais.
 
Ninguém além dos dois viveu aquela vida descartável, que se acaba num segundo, num quarto. Nem mesmo eles se lembravam do que havia sido dito. Nem eles poderiam reconstituir o que havia acontecido. E, atravessando paredes, viviam como fantasmas, mortos, dormindo, gemendo. Quem se importava?
 
Ninguém. Nunca ninguém se importou. Nunca ninguém sorveu de volta o suspiro que veio ao chão. Nunca ninguém recolheu para dentro de si o que não germinou, o que evaporou, o que restou apenas como uma mancha no carpete, ou mesmo no teto. Ninguém nunca cuidou do gozo como feto. Apenas dormiu e se esqueceu.
 
Mas não eu. Não ele. Nós que atravessávamos juntos a porta daquele quarto de cabeça erguida. Não atravessávamos paredes porque ainda existíamos, ainda vivíamos, quando ninguém mais acreditava. Ninguém ao menos se importava. Ele a limpar. Eu a escrever. Eu a escrever sobre ele que andava através da porta, sobre o carpete, a limpar o que ninguém mais se lembrava.
 
Cinco reais a hora. Contou os centavos e pegou a vassoura. Nem podia ver, os olhos que foram fechados, os cílios que foram derramados, os suspiros, só via mesmo os centavos. Tilintando em seu bolso à medida que ele esfregava. Incentivava. E mesmo quando ligava o aspirador, o motor, continuava acreditando. Ainda há algo sacudindo por aqui.
 
Num motel barato, pouco mais do que seus centavos. Amores de todos os preços e de qualquer sentimento. Um sentimento qualquer. De dever cumprido. Cada noite que ia embora. E cada manhã seguinte. Cada manhã seguinte uma nova mancha, um novo calo, um novo amor derramado. Nunca se perguntou quantos haviam se frustrado. Nunca se perguntou se a bolsa, depois da camisinha, havia estourado.
 
Sábado, domingo e feriados. Comemoravam. Importava para ele tão pouco quanto para os outros. Talvez menos. Talvez menos por hora, menos centavos, um quarto. Mas estava acostumado. Tinha cinqüenta e seis. Cinqüenta e seis quartos por centavo, por hora, quatro reais. Mal contava. Quantos anos. Não contava a ninguém. Não sabia calcular. Nem comentava. Engolia a salsicha. Virava o refrigerante. Enquanto o vigia na frente do prédio o acompanhava no cachorro-quente.
 
"Mas que empreguinho ordinário você foi arrumar, hein?". Ele dava de ombros e voltava para dentro com um tapinha no amigo. "Não me importa". Mastigava o orgulho e entregava os centavos, sacudindo as migalhas do uniforme. "Deixe-me ir que hoje as coisas estão movimentadas". Véspera de feriado. Dia dos namorados. Aniversário de casamento, de divórcio, de noivado. Ele comemorava sozinho, esfregando, depois do ato consumado. Cigarro consumido. Sementes postas de lado. Como caroços, cabelos, cabaços. "Mas bem que eles podiam tirar as malditas nêsperas desses quartos".
 
Quanto menos amor, menos trabalho. Quanto menos se amavam. Ria com o canto da boca, ouvindo as brigas no quarto ao lado. "Esses aí vão embora mais cedo". Mas sempre sobrava um copo quebrado. E se não era dor na coluna, era corte no dedo. Não era o único, mas era sozinho. Nunca cruzava com os outros, enquanto cruzava os andares. Enquanto os fregueses ainda cruzavam, esperava, impacientemente. "O pior é o durante, sabendo o que vem depois. Eu iria embora mais cedo, se eles não chegassem lá".
 
Ele chegava de manhã cedo e ficava até o sol começar a se pôr. Até todos os quartos estarem trancados. Depois era um longo caminho de volta para nem sei onde. Para onde ninguém se importava, contanto que estivesse de volta de manhã cedo, para esfregar a noite anterior. Às vezes, ele chegava antes. Às vezes chegava depois. Quando chegava durante, tinha de esperar que os casais terminassem e desocupassem os quartos a serem limpos. "Como podem dormir sobre as manchas que deixam para mim?".
 
A vida não era fácil, mas continuava sendo assim. Esperava na lavanderia, enquanto os quartos ainda chacoalhavam. "Esses aí vão dar trabalho pra você", a lavadeira deixava de molho. Ele dava de ombros. "Um dia eu vou estar lá em cima, contando minha própria história. E não vai sobrar nenhuma gota para você ser testemunha". "Deus te ouça", ela completava, "isto aqui é um tremendo desperdício".
 
A máquina vibrava tanto quanto os amores. E pegava de volta o que eles haviam deixado. Ele escutava o motor rítmico e concentrado e se perguntava se aquilo era mesmo amor. O motor, o sabão, lençóis limpos e passados para serem novamente amados. Logo a festa acabava. E o silêncio era sinal de que sua ação era solicitada.
 
Pegava seu balde, seu aspirador, subia até onde os ânimos já houvessem baixado. Aonde o turno o tivesse escalado. Para não cruzar com os outros e com ninguém. Para não perder tempo.
 
A engrenagem do elevador era lenta e ruidosa. Sabe-se lá se subia. "Podiam lubrificá-la. Material é o que não falta". Levava o molho de chaves, a chave no molho e no buraco, na porta, girando em serviço. Entrava no quarto como tantas vezes eu entrei e encontrei a mulher que ficou ali, logo lá, para ele encontrar. "Essa bagunça vai ser difícil de eu limpar...".
 
Enrolada nos lençóis, lençóis brancos vermelhos, pousando a mão sobre o carpete, cinza, encardido. Esquecida como todos os outros e como todos nós. Todos nós sabíamos que um dia isso aconteceria. "Tanto esperma derramado, logo fecundaria". Poderia ter sido um bebê, um amor, uma árvore de nêsperas. Poderia ser romance, um livro, "Lívia", um conto, ou apenas um poema. Mas era uma mulher, morta, depois do sexo.
 
Depois do sexo, a vida, a morte, sabe-se lá o que existia. Ele achou que só havia trabalhos e centavos, mas algum dia encontraria. E encontrou. Vamos voltar ao quarto.
 
O que havia de vermelho nos lençóis havia de branco nela. O branco dos lençóis em suas veias, em sua boca e entre as pernas. "Veja só, se não fosse a paixão no seu sangue tudo aqui estaria cândido". Glóbulos brancos. E puxou o lençol que cobria seus seios. Seus bicos pálidos vermelhos. Puxou e sentiu o perfume. Do amor. E da morte.
 
"Aspirei de volta a vida que tiraram de ti". Um cílio para dar sorte. Fazia mais sentido. Fazia-a mais completa. A vida. A mulher. A morte. O amor. Gota por gota. Dia após dia. Cílios por cílios, para fechar os olhos. Ou abrir. Saliva. Suor. Lágrimas. Todas inteiras, completas, estendidas. Fazia mais sentido, deitada sobre a cama. Quase nos fazia acreditar que a vida realmente importava.
 
Então, pela primeira vez em sua carreira, sacudiu mais do que centavos. Derramou mais do que sabão. Ao chão, suor, esperma, sobre o sangue, e os restos de todas aquelas noites e manhãs. Era tarde. "Sabe-se lá o que nós dois não vamos germinar". Aquele era apenas mais um fim de um longo amor. Um longo amor que ele nunca aproveitou. Chegou tarde. Depois. Depois do sexo. "Depois do sexo, eu penso". Não pensou em mais nada, porque havia trabalho a fazer. Não fumou cigarro, nem comeu nêsperas. Não sobraram cinzas nem caroços nem sementes. Sobrara um balde com água e sabão, esfregão, e um quarto para arrumar.
 
Retirou toda a roupa de cama para lavar. Deixou o corpo dela sobre o colchão. "Essas manchas não vão sair assim tão fácil", imagine se ela fosse virgem. Não achou nenhuma lingerie perdida. Nenhum documento, sapato ou gorjeta, enquanto esfregava o carpete. Apenas encontrava as velhas manchas de sempre, "Vanessa, Lorena" e algumas novas, algumas suas. Lívia.
 
"Se me fosse dado algo além da visão. Se eu pudesse provar o gosto, ouvir os suspiros e sentir o calor. Enquanto essas manchas ainda estivessem vivas. Enquanto o sexo ainda fosse fresco. Enquanto as possibilidades existissem, eu iria mudar a minha vida. Mas depois do sexo está tudo morto. Depois do sexo está tudo em silêncio. Depois do sexo está tudo acabado. É só eu sair deste quarto pra ninguém mais se lembrar".
 
Mas eu sim, eu ainda estou por aqui. Eu ainda estou por aqui. Sacudindo, pensando. Usando os dedos e a cabeça, depois do sexo. E o acompanhei enquanto pensava o que fazer com o corpo. Eu a carregava. E junto a ele fui até o banheiro. Apertado. Pingando o refrigerante na privada. Ligou o chuveiro e pegou a esponja. Esfregou-a na banheira. Branca, branca, nunca mais vermelha. "Se eu me derramar por você agora, ninguém se derramará por mim. Se eu escorregar no banheiro, quem limpará o meu sangue? Ninguém se importa. Ninguém saberá de nada".
 
Por isso fez com cuidado. Fez valer cada centavo. Esfregou a pele alva e cada vez mais, cada vez mais se desbotava. "Deve ser pressão baixa. Bem que minha mãe falava. Comendo sempre porcaria na hora do trabalho". Sentiu-se mal. Lembrou-se do cachorro-quente e do refrigerante. Deu a descarga. "Já fiz mais do que o meu trabalho!". Fechou a torneira e enxugou os dedos. Olhou pelo quarto e nem viu seus próprios cílios vindo abaixo. Como o sol, o balde, as chaves, o esfregão. Pronto para outra. O sexo antes da vida, o sexo depois da morte. "Depois dessa virão outras. Sabe-se lá a história que essas manchas contarão".
 
Saiu pela porta da frente de cabeça erguida. Saiu meio corcunda, de tanto se debruçar sobre o chão. Saiu mais branco e mais faminto. Saiu com a roupa manchada de vermelho. Passou pelo vigia. Pelo cachorro-quente. "Um dia eu vou estar contando minha própria história. E não vai sobrar nenhuma gota para você ser testemunha".
 
Alguém sabe para onde ele foi? Alguém ouviu seu testemunho? A polícia o procurava tanto quanto eu. Tanto quanto a mim. A mim, pouco importava. Fecharam o motel e a porta do quarto. Calaram as manchas e seus nomes, seus amores, suas mortes. Tanto derramado em vão. Demoliram. Ninguém nunca entendeu. Ninguém nunca se importou. Nunca ninguém sorveu de volta o suspiro que veio ao chão. Nunca ninguém recolheu para dentro de si o que não germinou, o que evaporou, o que restou apenas como uma mancha no carpete, ou mesmo no teto. Ninguém nunca cuidou do gozo como feto. Apenas dormiu e se esqueceu.
 
 
 
(imagem ©darin boville)
 
 
 
 
 
Santiago Nazarian (12/05/1977, São Paulo). Publicou os romances Olívio (São Paulo: Editora Talento, 2003. Vencedor do Prêmio Fundação Conrado Wessel de Literatura 2002), A morte sem nome (São Paulo: Editora Planeta, 2004 | Portugal: Editora Palavra, 2005) e Feriado de mim mesmo (São Paulo: Editora Planeta, 2005). Em 2006 lança o romance Mastigando Humanos, pela Editora Nova Fronteira. Tem contos publicados em diversas antologias. Foi um dos destaques da Primeira Festa Literária Internacional de Parati — FLIP, recebendo bolsa para participar do livro Parati Para Mim, escrito durante 20 dias, na cidade. Atualmente, além de escritor, trabalha como tradutor e roteirista. Edita o blogue Amor & Hemácias.