"Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,

Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;

E a mim, não há questão que mais me contrarie

            Do que escrever em prosa".

                                                     Cesário Verde

 

 

Caros, esta é a edição primeira de Stultifera Navis. Mas que diabos é Stultifera Navis? Bem, Stultifera Navis era um barco da Idade Média (a famosa Nau dos Loucos) que passava pelo Rio Reno recolhendo os loucos, os bêbados, os vagabundos, os anti-sociais e os patetas da família. (Em tempos de sobriedade punitiva, como diria Foucault, é melhor ficar louco). E agora é uma coluna sobre poesia que assinarei aqui na Germina.

 

Nesta Stultifera Navis só se falará de poesia. Só a poesia me interessa. Pelo menos quando estou escrevendo neste espaço. Pelo menos quando estou colhendo do mundo pindorâmico os loucos, bêbados, vagabundos, anti-sociais, e patetas da família. Aqui só se fala de poesia. Poesia é sempre o prato do dia. Todo dia. E tudo que não é poesia me irrita.

 

Contrariado, como na estrofe do belíssimo poema "Contrariedades" de Cesário Verde, porém defendendo causa perdida (porque causa ganha é café pequeno), vou escrever em prosa, sobre (e somente sobre) poesia.

 

Vamos começar com algumas coisas legais que andei notando no cenário de poesia por aí afora:  A Abram os olhos! * eu e meu comparsa poeta Dirceu Villa organizamos todo mês O BANQUETE — que mais adiante virará livro. Fiquem ligados, comida sempre boa e farta à mesa. Leituras e discussão de poesia (quem quiser — centros culturais, bibliotecas, livrarias e afins — ter um O BANQUETE, escreva para a redação * Aguardamos com imensa curiosidade os novos livros de Marcelo Montenegro e Zhô Bertholini * Procurem aí nas livrarias, urgente: a cadela sem Logos, de Ricardo Domeneck; Rilke shake, de Angélica Freitas; e 20 poemas para o seu walkman, de Marília Garcia * Extra! Extra!! Extra!!! Em breve nas melhores livrarias Modo de Usar & Co. * E vem aí Inimigo Rumor 20 Especial * E vem aí A Cigarra Especial também — 25 anos mandando brasa na poesia * Quem passar por Santo André, minha San Francisco careta, que vá olhar a exposição de arte montada pelo já citado poeta Zhô Bertholini na Casa do Olhar. Vale muitíssimo a pena! * Abaixo minha leitura do último (e muito bom) livro de Fabrício Corsaletti * That's all folks!  Valeu!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A insatisfação ou, melhor dizendo, a sugestão de apagamento/esvaziamento do sujeito, como antídoto para insuportável angústia do real, neste tempo confuso, hipócrita e violento, onde o homem realmente não se ajusta, talvez pelo pasmo de sua própria viagem incoerente e com tanto chão a palmilhar (já que sabemos, há algum tempo, desde Michel Foucault, que o homem é uma invenção recente). Bem, da exploração deste sujeito surgem as mais variadas falhas (ainda estará na garantia esse produto chamado Homem? ou sua garantia estilhaçou-se com o próprio?), dentre estas, a tentativa sempre utópica de inventar seu campo ou desativá-lo para sempre. Não só uma aventura intelectual, mas também do corpo e do espírito. O caos soberano onde de alguma maneira se venha decidir o sol a se esquentar e torná-lo particular, como as experiências. Dentre todas as experiências, alguns escolhem a poesia. Fabrício Corsaletti assim o fez e agora a Cia. das Letras lança Estudos para o seu corpo, uma coletânea de dois livros (Movediço, 2001; e O Sobrevivente, 2003) com acréscimo de dois inéditos, História das demolições e Estudos para o seu corpo, ambos com data deste ano.

 

O tempo todo de passagem, checando estradas tortuosas, Corsaletti apura, no plano geral, a idéia de "outro lugar", como uma utopia delirante, como uma saída para este produto / de séculos / de desamor (p.43) que é o sujeito, em eterna fuga, sem lugar, sem eldorado, caminhante atemporal sempre em areia movediça. Esse outro lugar transforma-se o tempo todo (as cidades reais, as imaginárias, a memória, o amor de fato e o amor idealizado, a própria escrita), porém tem deságüe, senão idêntico, carregado de parecenças, de semelhanças. Muitas vezes um poder de contenção a que o poeta lança mão extirpa o que pode parecer horripilante nesse desastre do existir, tornando a tijolada na face um gesto lírico. Não, contudo, imprimindo qualquer maquiagem para esconder-lhe os defeitos ou os hematomas, mas apenas construindo, através de uma linguagem enxuta e sóbria, um outro ponto de vista.

 

A palavra "cidade" se espalha por quase todos os poemas do livro de estréia do autor — não só a cidade em si, mas também como deslocamentos metonímicos. O espaço geográfico, que se lê em versos como "Acontecia às vezes / da cidade / se abrir como manhã de maio" (p.19), "a cidade era maior" (p.20), "não procuro ninguém/ nesta cidade" (p.21), "A cidade não cabe" (p.22), entre outros, é onde o sujeito tenta se encaixar, mas impossibilitado pela sua própria natureza de deslocado, permanece sempre a sensação de vácuo, de extravio. A cidade (todas, na verdade), reaparece em forma de memória ("saía da panela / já naquele dia / um cheiro forte / de passado" (p.23). O sujeito, dando concretude à lembrança (a cidade, pois, está sempre a ser construída no seu deserto particular), sente-se desconfortável no ambiente, aspira a outros espaços, como em "Família": "não ouve mais / o trauma de / um grito: // a dor de / ser parte ainda / de uma família: // quer morar em todas as / casas que vê / e imagina".

 

Todas essas casas que o sujeito percebe e das quais debanda-se em devaneio, são os seus motivos para sair desse sufocante mormaço geográfico e temporal, mais ainda: são como um escape, um éden perdido entre a desolação e ruína, uma guerra interior.

 

A mulher, outro ponto de fuga do poeta, aparece, muitas vezes em momentos belos, como em "Dois sóis": "Como se / o sol / fosse / possível / ser dois / sóis: // essa mulher / (faz / sol / por acaso) / é um / corpo / de luz / no centro / do dia" — impossível não lembrar aquela que também é um ser-de-sol inesquecível, a Lady de João Cabral de Melo Neto em "Portrait of  a Lady", onde "não vi nenhuma ser o sol, / o centro de algum arredor, / dessa gravitação que crias / se no centro da sala ficas".

 

Neste primeiro momento, cansado da tragédia da vida, bradando que, "se a morte vier / que venha de uma vez" (p.65), mas, ainda assim abrandando, "mas não posso / morrer não posso/ não assim / maravilhado" (p.70), a urgência de algo que o poeta parece ainda desconhecer, que more talvez em outra terra, em outro coração ou em outra linguagem.

 

Já em O sobrevivente, o curso central é dedicado à alma feminina. O amor, talvez aquele mesmo, drummondiano, que resultou inútil, ou aquele alcançado a duras penas e fruído em sua plenitude, ou aquele, segundo ponto da tríade freudiana, o materno. Num dos mais belos poemas do livro, dedicado justamente à mãe, lê-se: "Avessa / aos gritos aos excessos / a equilibrista do caos / a de inexorável doçura / a que não escolheu sua personagem / a que dá adeus sorrindo / porque vê no amor um exercício de liberdade". Não é demais notar que aqui a mãe "equilibrista do caos" se aproxima daquela que "tocava piano no caos" do clássico poema de Murilo Mendes, "Pré-história".

 

Em outros momentos, o amor sensual é resultado de estradas diferentes, pode-se notar isso em dois poemas que se seguem no livro, e que são, cada qual à sua maneira, momentos altos do trabalho: "Gostei porque não cheirava / a perfume nenhum / nem falava mal da cidade / onde nascera / gostava de sexo e / entendeu perfeitamente / meus propósitos / no final disse: 'foi bom, / melhor do que eu imaginava'"; e "a ruiva molhada / da sala de bate papo / sumiu". Nota-se, em ambos os poemas, o tom erótico, sensual, num primeiro momento, a cópula de fato, casual, do nosso tempo; num outro, também de nosso tempo, a garota, molhada, como imprime o poema, está não-estando, do outro lado da tela do computador, e, agora não entendendo propósito nenhum, dá o fora.

 

No poema "Balada", outro momento de brilho do livro, novamente lê-se o sensual neste longo (em relação aos outros) escrito. Aqui desde já, apesar de não original, mas fundida ao poema de maneira muito bonita, a bela imagem do órgão genital feminino, "romã fendida". O melhor momento deste poema é o fragmento de número 8 (que mais tarde ele retomaria, trazendo para si a idéia de mostrar um "ponto de vista"): "entrei na sala / onde você trabalha / estava vazia sentei / na sua mesa / vi o sol se pôr / do seu ponto / de vista".

 

Chega-se, enfim, ao material novo desta coletânea: História das demolições e Estudos para o seu corpo.

 

No primeiro, observa-se a mesma "desajeitação" de antes, daquele momento de demolição que percorre todo o livro, na busca incansável (poética?) de "outros lugares". Algo um tanto trágico, porém que jamais se vinga, que nunca se propõe ao reparo da inevitável rachadura nos vínculos. Poemas belos, como "não estão mortos / foram para outra cidade / a que não sei como chegar", ou o poema intitulado "História", mantêm o nível bom do trabalho.

 

O derradeiro poema-livro, Estudos para o seu corpo, que batiza o conjunto, possui momentos de extrema felicidade, como em "cabelos não são seus cabelos que entristecem", ou na música de "axilas uma salva de palmas / ao dia distante / da infância trêmula / em que você ficou febril // desde então / houve tremenda reviravolta / na História dos Termômetros". Os Estudos continuam e chegam a um momento curioso em costas, onde a anatomia desperta no poeta um sentimento de liberdade e certa revolta (romântica, como o próprio poema aponta), quando diz em sua estrofe final: "país / onde a impunidade / será uma vergonha". Onde será esse país? Creio que está situado no mesmo tempo daquela belíssima "João e Maria" de Chico Buarque e Sivuca, naquele "tempo da maldade / acho que a gente nem tinha nascido". O corpo da musa como estímulo a um sentimento bonito. Estudos para o seu Corpo é realmente um belo poema, um momento de imensa delicadeza.

 

Fabrício Corsaletti, possuidor de uma linguagem invariavelmente simples, remete muitas vezes a poetas como Mario Quintana (quanto à própria linguagem, ao desajuste e, paradoxalmente, a um certo maravilhamento do "apesar de" perante a existência, como mostra o poema "Anulação"; além de uso de algumas formas fixas populares, como a redondilha menor no poema "Mulher" ou "Canção de inverno"; ou a redondilha maior em "Canção para Raissa"). Dialoga também com um certo Vinicius de Moraes em outros momentos (como as canções para Zaba e a do Barco de madeira e ouro, além de outros cantares). E isso não é, de jeito nenhum, uma crítica ruim, como pode parecer neste nosso tempo de aniquilamento lírico. Ao contrário, são tons que na poesia brasileira tinham se tornado desbotados, tolos e ruins, mera água com açúcar. Aqui, o poeta, ao perceber o piso escorregadio em que anda, fornece outras saídas possíveis. E isso torna o livro muito interessante.

 

Ao final de tão delicados e dedicados estudos, guardadas as musas (as musas de carne, arquiteturais e geográficas), o que fica é um livro muito bom, honesto, importante para o panorama da nova poesia brasileira. Neste ano de lançamentos centrais (como os livros de Angélica Freitas, Marília Garcia e Ricardo Domeneck), este Estudos para o seu corpo chega para também promover outras possibilidades de leitura e fruição para aqueles que não suportam mais os rumos toscos do semgracismo dos poetas-pedantes-travestidos-de-sérios e dos experimentadores-de-coisa-nenhuma travestidos de radicais.

 

 

Stultifera Navis foi escrita num domingo nublado ao som de

Quatro — Los Hermanos

— Caetano Veloso

Alice — Tom Waits

Space Oddity — David Bowie

Medulla — Björk

White Album — The Beatles

 

 

 

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O livro: Fabrício Corsaletti. Estudos para o seu corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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setembro, 2007

 

 

 

 

 

 

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