Ao morrer, em 1936, o dramaturgo Luigi Pirandello orientou
o seu funeral como orientava os seus atores: em casa, queria ficar
nu, num lençol, sem choro nem velas; na rua, quis um cortejo de
terceira classe, nada além do coche, cavalo e cocheiro; depois de
cremado, pediu que espalhassem as cinzas na pequena aldeia da Sicília
em que nascera e que se chamava, por ironia, Chaos. Acima de tudo,
que deixassem em silêncio sua morte: a vida não passava de "uma
fúnebre farsa em que nós — mais ou menos inconscientes — representamos
os mais diferentes papéis, pobres marionetes nas mãos do destino
cego".1
Desde o nome da aldeia em que nasceu e para a qual suas cinzas
voltaram, a vida de Pirandello parece um romance (ou uma de suas
peças). Sua ficção recriava o real e o mostrava como ficção. Três
anos antes de morrer escrevera uma sátira à fama, Quando se é
alguém, que invertia o mito de Pigmalião e Galatéia: um escritor
célebre não pode viver como quer, pois tem de amoldar-se às opiniões
que as pessoas fizeram dele; ao completar cinqüenta anos, enquanto
profere seu discurso na cerimônia de comemoração, vai se transformando
em estátua. Como o escritor que virou estátua, seríamos atores a
representar um papel que impomos a nós mesmos ou que nos impõem,
porque a vida não passa de uma permanente mascarada "da qual
somos os fantoches involuntários, quando, sem o sabermos, nos mascaramos
daquilo que parecemos ser".2
Sua obra desenvolve três motivos básicos: a ilusão
da compreensão mútua; as múltiplas personalidades dentro de cada um; e o
trágico conflito entre a vida, que se move, e a forma, que a fixa. Dizia
pertencer desgraçadamente à categoria dos escritores-filósofos, construindo sua
obra sobre um pântano, isto é, sobre o pressuposto de que a realidade é
inacessível, mostrando tantas máscaras quantas seriam as consciências
perspectivas. Por isso, seu uso exacerbado da metalinguagem era, menos do que
uma novidade técnica, expressão de uma dúvida básica.
As três peças-chave, que englobava sob a designação de "teatro
no teatro" — Seis personagens à procura de um autor,
Esta noite se representa de improviso e Cada um a seu modo
—, exploram sua dúvida básica. Conforme nos diz Francisco Silveira,
ao iluminar os segredos da ribalta, revelando os bastidores da carpintaria
teatral e da criação literária, Pirandello efetuava o rompimento
das fronteiras entre palco e platéia, inserindo o espectador no
espaço-tempo da ficção que, em última análise, corresponderia à
própria realidade.3
No ensaio "Humorismo", de 1908, o dramaturgo italiano
teoriza sobre a máscara de todo dia, que cada um ajustaria como
pode, porque dentro se encontraria outra máscara ainda e que não
se harmonizaria com a de fora. "Nada é verdadeiro!", exclama.
Verdadeiro poderia ser o mar, verdadeira poderia ser a montanha,
verdadeira seria a pedra, verdadeiro um talo de grama, mas o homem?
Sempre mascarado, sem que o queira e sem que o saiba. O homem, até
quando velho, sempre tem febre, delirando sem se dar conta: "não
pode deixar de posar, mesmo diante de si próprio, de algum modo,
e imagina uma porção de coisas que ele tem necessidade de crer como
verdadeiras e tomar a sério".4
A descoberta não consola. Equivale a Prometeu, no Cáucaso,
descobrindo que o Zeus que o pune e o atormenta é apenas a projeção
agigantada da sombra de seu próprio corpo, por causa precisamente
do facho que mantém aceso em sua mão. Zeus, e conseqüentemente a
punição, desapareceriam se ele apagasse o fogo da tocha, mas é isto
que ele não sabe, não quer e não pode fazer: a ilusão o constitui.5
Na sua peça mais conhecida, Seis personagens à procura
de um autor, Pirandello coloca alguns atores ensaiando, sem entendê-la
direito, justamente uma peça de... Pirandello. Chegam de repente não outros
atores, mas seis personagens procurando o autor que lhes dê vida. A rubrica
assim as descreve:
As Personagens
não deverão, com efeito, aparecer como fantasmas, mas como realidades
criadas, elaborações imutáveis da fantasia e, portanto, mais reais
e consistentes do que a volúvel naturalidade dos Atores. As máscaras
ajudarão a dar a impressão da figura construída por arte e imutavelmente
fixada cada uma na expressão de seu próprio sentimento fundamental,
que é o remorso para o Pai, a vingança para a Enteada, o desdém
para o Filho, a dor para a Mãe, que terá lágrimas fixas de cera
na lividez das olheiras e ao longo das faces, como as que se vêem
nas imagens esculpidas e pintadas da Mater Dolorosa das igrejas.6
Os Atores, os Personagens e o Diretor discutem asperamente,
confrontando suas realidades e suas necessidades. O espectador parece
que vê um ensaio que não começa, uma peça que não se encena, mas
isto é a peça. O Pai (desviando-se da Enteada, que o ameaça) explica
que o autor que os criou não quis ou não pôde metê-los no mundo
da arte, deixando-os no limbo, o que terá sido um verdadeiro crime,
"pois quem tem a ventura de nascer personagem viva, pode-se
rir até mesmo da morte".7
Morre
o escritor, morre o homem, mas a criatura, como Sancho Pança, não
morre.
As discussões entre os dois grupos vão crescendo, bem como
as discussões internas de cada grupo, o que leva o Pai a reconhecer o mal
exatamente nas palavras, que ora não dizem o que se queria dizer, e portanto
são insuficientes, ora dizem o que não se queria dizer, e portanto são
excessivas:
Mas aí
está todo o mal! Nas palavras! Todos temos dentro de nós um mundo
de coisas; cada qual tem um mundo seu de coisas! E como podemos
nos entender, senhor, se nas palavras que eu digo ponho o sentido
e o valor das coisas como elas são dentro de mim; enquanto quem
as ouve, inevitavelmente as assume com o sentido e com o valor que
têm para si, do mundo assim como ele o tem dentro de si? Acreditamos
nos entender — jamais nos entendemos! Olhe — a minha piedade, toda
a minha piedade por esta mulher, ela a assumiu como a mais feroz
das crueldades!8
Logo a seguir, lamenta, em fala tipicamente cética:
"pudéssemos nós prever todo o mal que pode nascer do bem que acreditamos
fazer!". Assim como o mal se encontraria escondido no bem, por baixo da
dignidade de cada um se esconde o inconfessável. Ainda que estejamos acostumados
a jogar sucessivas capas de herói sobre os ombros, no íntimo seríamos apenas
mesquinhos e assustados.
O medo das palavras, ao mesmo tempo matéria-prima do teatro,
é retomado na peça Cada um a seu modo pela fala de uma jovem
senhora: "Sabe quanto mal nos infligimos por causa desta maldita
necessidade de falar. Enquanto dentro de nós houver uma incerteza,
dever-se-ia ficar de lábios costurados".9
Ou seja, quando não se pode falar com certeza, diria certo filósofo,
deve-se calar. O ceticismo obrigaria ao silêncio. No entanto, apesar
de todas as dúvidas ou por causa mesmo delas, continua-se vivendo
e falando, o que se pode fazer com menos responsabilidade (como
se a vida fosse dada) ou com mais responsabilidade (como se a vida
e a realidade fossem, de fato, desenhadas).
Pirandello reduz o leitor a uma série de peças de um
mosaico, detonando a noção de unidade. O ser humano que surge a partir dessa
detonação é irônico como um desenho cubista. Abandonado pelo destino, percebe a
contingência em todas as coisas – mas não se resigna a ela.
Sua liberdade é uma ficção — pois que seja.
Notas
outubro, 2005
Gustavo Bernardo é professor de Teoria da Literatura
na UERJ e autor dos ensaios A dúvida de Flusser (Rio de Janeiro:
Globo, 2002) e A ficção cética (São Paulo: Annablume, 2004).
Mais em Dubito Ergo Sum
e aqui.