sexta, 70
Dias da Cruz, Méier,
1970. O que vejo é um quarto, com entrada independente da casa,
pelo oitão, como dizíamos no Recife. O dono da casa nos alugara esse
quarto.
Ouvíamos Armstrong,
naquela sexta-feira santa. Dizíamo-nos, pior, não nos dizíamos, mas era
como se nos disséssemos, que naquele quarto nos trancávamos porque
grande era a saudade do que havíamos deixado. Em alto e bom som
proclamávamos que um revolucionário deveria fazer todo e qualquer
sacrifício, até mesmo deixar o mundo familiar. Para uma nova vida, novos
valores, dizíamo-nos.
Ouvíamos Armstrong.
Tentei retomá-lo há pouco, busquei as canções que ouvíamos em 1970, mas
como? Era um LP duplo, que por sua vez lembrava um compacto mais antigo,
em que ele cantava "shoeshine boy". Na impossibilidade de achar esse
compacto, quando fugimos trouxemos o LP duplo, e nos compensávamos com a
faixa Nobody Knows. Verdade, confesso, que não era bem essa canção que
ouvíamos naquela sexta-feira. Confesso e fecho os olhos, tão forte é a
lembrança. Fecho os olhos como quem resiste à luz e vejo as sombras da
tarde, e ouço apenas o disco rangendo na agulha da
Philips.
O que ouvíamos, o que
buscávamos, eram sons de trompete, os solos e variações agudas,
intermináveis pela ressonância na gente. Nós e só nós, naquele quarto
fechado. Os dois, os três, quando incluímos Armstrong, indo e voltando
na agulha, até um final sozinhos cada qual no seu canto. Chorando seco,
aquele choro sem lágrimas que não se demonstra, apenas ulcera a alma da
gente.
Engraçado, agora sei
que é inútil buscar Armstrong no disco físico de 1970. Ainda que fosse
possível pegá-lo, tocá-lo, ainda que os sulcos do disco estivessem
conservados, ainda que fosse possível retomar a vitrolinha Philips,
aquela mesma portátil, preta e prata, feito uma caixa, ainda que pudesse
voltar àquele quarto, se ele estivesse ainda em pé ao fim de uma
geração, ainda que nós pudéssemos retornar a nossos corpos, ao que fomos
em 1970, ainda assim seria impossível tocar mais uma vez o Armstrong
daqueles infernais solos.
Eu me dizia, e não
sabia o quão ignorante era, eu me dizia e me jactava, de mim para mim,
de que nunca em minha vida havia amado tão bem quanto naquela
sexta-feira santa. Eu me cantava, naquele ano da graça, como se
estivesse num ranking de performance. E assim me dizia porque ouvindo
Armstrong durante toda uma tarde, até atingir e penetrar a boquinha da
noite, eu me acreditava assim porque ouvi Armstrong em
intermináveis sessões de fogo e abraçamento. Isto mesmo, de
fogo e de abraço, de apertar e fundir. Então eu me dizia e me achava no
topo do ranking. Mal sabia que não existe 1o. lugar para o
amor.
Nem julgava que o
amor tem mil e uma formas, mil e mil astúcias, inumeráveis, loucos e
inimaginados disfarces. Estúpido, estúpido, milhões de vezes estúpido
fui: nem desconfiava que não se copula pelo número de idas e vindas. O
ritmo talvez se comande, se comando cabe ao que sulca os mares da
imaginação, mares largos, extensos e fundos, o ritmo talvez se comande
pelos sopros do trompete.Talvez, mais precisamente, como naquela
tarde.
Na curva destes meus
50 anos, agora sei, agora, que a tarde amorosa daquela sexta pouco
possuía de mim mesmo. Pois como pode um rapaz saído do Recife somente
sabendo do sexo a penetração, como pode uma jovem fugida de milicos, que
julgava ser a paixão um percorrer tentativas até atingir o puro amor,
como podem em um ano como o de 1970 atingir o corno da
experiência?