Eu sou do tempo da bóia preta, a câmara de ar, torta e encalombada que, quando posta à roda do vivente, na altura da cintura, o fazia parecer alguma coisa inusitada, tão estranha que não consigo comparar com o que se pareça.
        Alguém sempre tinha uma em casa, resto de algum pneu que não mereceu ter pelas entranhas uma figura como aquela, cheia de remendos e caroços. Passavam o ano murchas, enfiadas em algum caixote por sua vez enfiado em uma prateleira também enfiada em algum cômodo escuro e pouco visitado da casa, e só vinham à luz quando há mais luz: no verão, nas praias.
        E se transformavam em todo o tipo de diversão possível. Podiam ser argolas para tentar acertar o pino, e o pino então podia ser qualquer coisa, um guarda-sol, uma estaca, um primo menor, um cachorro distraído, a antena do carro, certos tipos de retrovisor, a canela levantada da bronzeante prima adolescente — que sempre reclamava muito quando se acertava o pino, dizendo que tinha ficado "cheia de areia", como se cada uma de suas dobras brancas já não carregasse areia para se encher um travesseiro. Podiam também ser uma roda para se rodar, correndo atrás dela feito idiota ou — ainda mais idiota — podia se jogar a roda para a frente, já rodando ao contrário, para que batesse no chão e voltasse ao jogador, bumerangue redondo. Podia ser cadeira para se ficar desconfortavelmente instalado numa posição entre o sentado e deitado, já cansado de lançar argolas e bumerangues, mas olhando o mar com cara de louco, aquela cara que as crianças felizes fazem quando estão pensando no que vão fazer daqui a pouco, mas ainda sem coragem de entrar no mar. E, é claro, podiam ter a função mais nobre que o artefato poderia ter: a de bóia, aquela coisa que nos salva de sermos tragados por três palmos de mar feroz, seja posta à volta da cintura, ou na posição de cadeira flutuante — como anteriormente citada — ou ainda compartilhada por vários parentes banhistas, todos à volta da câmara como pétalas de uma margarida gigante atirada à água, uma oferenda ao deus africano do mau-gosto.
        Havia uma hierarquia. As bóias feitas de câmaras de ar de carros de passeio eram as mais fáceis de se conseguir, qualquer mortal que tivesse possuído um fusca com pneus ruins as teria em casa. E nas quinze polegadas de seu diâmetro interno já havia diversão que chegasse. Mas a espécie humana, neste caso representada pelos meninos, quer sempre mais. E mais havia quando aparecia pela praia um desconhecido com seus filhotes, motorista de caminhão que, assim como todos, trazia sua bóia à praia. Nós, crianças da espécie humana, não podíamos perceber que aquele artefato estupendo, capaz de levar de uma só vez dez ou mais meninos para dentro d'água e lá mantê-los em segurança, era conseqüência da vida dura e mal paga de um motorista de caminhão. A nós, pouco importava. Ele tinha uma bóia imensa, um navio em borracha preta, uma possibilidade de se chegar, talvez, quem sabe se todos batêssemos os pés, quem mais iria comigo?, àquela ilhota que se vê daqui. Nessa hora, o motorista de caminhão era Deus, e o seu pai, reles dono de loja de eletrodomésticos, não passava de um bosta, incapaz de ser o possuidor de uma daquelas maravilhas náuticas.
        Acima dos deuses? Nas religiões, nada nem ninguém. Na sociedade das bóias de pneu, há o dono de trator. Mas este, assim como os deuses, pouco dá as caras na praia. Vi-o apenas uma vez — deve mesmo ser um só o dono de trator que vai à praia — com seu inesquecível transatlântico redondo, um gigante de dois metros de diâmetro que carregava dezenas de meninos amontoados no seu dorso, uma torrada coberta de caviar para o desfrute de um tubarão de passagem, raiva que senti por não ser convidado à tripulação.
        Certa vez, na praia das Vacas — e talvez saiba Deus porque uma praia tem um nome destes — minha mãe sentou-se numa bóia, remou com os braços e alcançou a água calma por detrás das ondas. Da praia vazia, já quase na hora de irmos embora serra acima, aguardávamos seu retorno sem lhe prestar muita atenção, um a jogar bola, outro cavando um buraco na areia fina. A demora começa a incomodar, estica-se um pescoço na direção da bóia, depois outro e, em poucos minutos, estão todos como pingüins parados na areia, uns em pé, outros sentados, todos de olhos na bóia e na mulher que, sentada nela, abana os braços furiosamente. Seria um pedido de socorro? Alguém, comenta que a correnteza a estaria levando para o sul.
        Sei eu hoje que o sul é frio, e que minha mãe sempre detestou as baixas temperaturas. Mas não precisava saber disso para entrar no pânico em que entrei. Comecei a chorar, não sei se antes ou depois que um primo, Floriano, suficientemente forte e jovem para a empreitada, arrancou em direção à água. Minutos ou horas depois — sei lá, eu estava ocupado demais chorando desesperadamente —, trouxe minha trêmula e molhada mãe, tão sã e salva quanto sempre conseguiu ser.
        As crianças hoje, mesmo mais desenvolvidas do que as crianças de ontem, permanecem teimando em afundar. Hoje os pneus não têm mais câmaras. As bóias, portanto, são outras. Ontem, ao encostar a boca na válvula de uma bóia de hoje, uma dessas coisas de se enfiar no braço, cor de laranja e não menos ridícula, deparei-me, à distância de um nariz, com uma série de advertências em dezesseis línguas, inglês, francês, alemão, italiano, algum outro saxão, espanhol, um outro nórdico, português, russo, outros quatro bálticos, dois tipos de chinês e uma outra muito estranha, em que "perigo" se escreve Uwaga!
        Não falo todas estas línguas, mas acredito que todas as advertências tragam a mesma mensagem, depreendida das inscrições em idiomas que consigo perceber alguma coisa: que este artefato não é um salva-vidas, que deve ser usado sob supervisão competente, e apenas em águas em que a criança alcance o fundo. Que coisa mais chata! Para que uma criança precisa de uma bóia, se pode alcançar o fundo da água? Como o mundo anda chato! Onde foi parar a bóia preta? Onde foi parar o brinquedo que, se ainda tivesse algo escrito, seria Pirelli? Dizeres como estes são o máximo de globalização que um brinquedo pode ter para permanecer brinquedo de verdade. Mais do que isso, qualquer coisa vira um perigo. Imagine uma boneca tatuada com advertências tatuada com advertências em dezesseis línguas.
        Mas, por ora, me assolam outras questões. Por que um norueguês, que vive num país onde nove graus é verão escaldante, compraria uma bóia? E como, meu Deus, como uma mãe grega abanaria os braços para chamar a atenção, se estivesse usando uma porcaria destas?
        Uwaga pra você também!

 

Houve época em que achei que precisava de um pseudônimo. Arranjei este, Branco Leone. Quem me conhece, sabe que faz sentido. Incorporei. Virou nome. Continuo procurando pseudônimo...