©mark oatney

 

Os pelicanos são como avis raras, e moram, em seu silencioso coração, as reticências.

 

Arcar com o severo pesadume do bico é, deles, dos pelicanos, uma insubstituível marca e, de certo modo, um glorioso acinte. Pudessem, não envergariam pela vida afora  os bicos como trombas tristes e nem exibiriam as longas melancólicas pernas feito uma humilhação compulsória.

 

Ah, guardam, no escuro papo guardam uma esmeralda viva e sonham por nós o sonho oblíquo de que sendo sumamente feios, de físico e de feição, nós, os dois, neste lago merencóreo, alcancemos soar, quem diria?, perfeitamente escarlates.

 

Voar não podemos dada a complexidade do corpo contra a magra asa. Assim, jaburu, o nariz e a dilatada marca de teu lábio inchado.

 

 

 

 

 

 

Bicho líquido de fiel transparência, as chuvas chovem no zinco de nosso teto humilde com a graça quase invisível de ariscas lagartas, e mínimas, muitas, coleantes, uma que vez cândidas.

 

Quis no verão sua morada, e o ímpeto com que serpenteia da nuvem ao telhado e dali às caleiras da casa, ninho suspenso entre o arrozal e as águas.

 

Há, contudo, diversas espécies de chuva — de chuviscagens a chuvões, veros maremotos, bebendo a Terra, rios e lagos, riachos e cascatas.

 

Se me sugas feito um vício eu sou a chuva que teu chão lambe com uma volúpia de amantes entranhados — um no outro encharcados até a última gota e a derradeira raiz mais chã.

Lavas-me o rosto a esguichos; brinco de intempérie sobre o vosso ventre. Líquidos e miasmas, cobrem meu corpo vossas mágoas. Águas? Cantam as calhas nosso lamento, longe, enxurrada em lá maior, aguaceiro, coral de anilhas.

 

 

                                                                                                                                           ©mark oatney

 

 

 

 

 

Que de sons ecoa o tímpano do caracol? Enrodilhado em sua louça multicor acaso o ausente sexo freme? Um que de porcelana fosse dificilmente sobreviveria em sua fragilidade exaltada, e complexíssima.

 

Andam na noite, inenarráveis dromedários ou uma absurda espécie de formiga — levando às costas sua montanha de osso e marfim.

 

Onanistas, narcisos, centrados em sua têmpera, os caramujos, às frescas manhãs de areia e espuma, da longa praia deserta, são uma aleluia viva, e numerosa.

 

Prescindir da rubra curva de vossa nádega e ainda assim, encaracolado aos vossos crespos e pentelhos, imaginar com os ruflos de um colibri-de-asas, ramblas, ramonas, ai que te incenso a coxa grávida com meu filete d'água cinza-pálida.

 

 

 

 

 

 

Se me perco de amor por vós pela galhofa com que me rides, carniceira, te esconjuro.

 

Alta noite é que estás rindo de meus odores, vossos incensos, a dura ambígua carne com que corrompo em vós o apodrecido encanto. Não somos seres de caça; antes provamos do banquete alheio os restos dele, as suas sobras.

 

Rasgo-lhe a cara a dentadas; furas-me o olho, sinistra. Finco em vossos esquálidos os meus caninos, os dois, como  uma forma cruciante de gancho, ou de anzol. Ganindo  persigo o cio aziago e sob a grande noite, seus quietos, seus possíveis duendes, capaz me mijes.

 

Amamos um ao outro, mas com tal ódio que, focinho em riste, mais que rir, uivo quebrado em dois, e magro. Sobre mim tripudias o solene cacto de nossa vida vesga. Vergas?

 

Ensinaram-nos o amor feito ele fosse a chibata. De que fezes, hiena, o vosso nojo?

 

 

 

 

(Quatro  dos treze textos inéditos que deverão compor a futura reedição de Manual de Zoofilia — reedição revista e ampliada)

 

 

 

 

Wilson Bueno  nasceu em Jaguapitã (PR) e mora em Curitiba (PR).

 

É autor do Manual de Zoofilia (Florianópolis, Noa Noa, 1991) — textos que refletem a mitopoética do amor erótico humano —,  da novela Mar Paraguayo (São Paulo, Iluminuras, 1992), da novela Meu Tio Roseno, a Cavalo (São Paulo, Editora 34, 2000), do romance Amar-te a ti nem sei se com carícias (São Paulo, Planeta, 2004), apresentado por Aurora Bernardini.

 

Outras publicações: Bolero’s Bar (Curitiba, Criar Edições 1986), Ojos de Agua (Argentina, El Territorio, 1992), Cristal (São Paulo, Siciliano, 1995), Pequeno Tratado de Brinquedos (São Paulo, Iluminuras, 1996), Medusario — Mostra de Poesia Latinoamericana (Organização de José Kozer, Roberto Echavarren e Jacobo Sefamí. Fondo de Cultura Económica, México, 1996), Jardim Zoológico (São Paulo, Iluminuras, 1999), Os Chuvosos (Curitiba, Tigre do Espelho, 1999), Mar Paraguayo (Santiago do Chile, Intempérie Ediciones, 2002).

 

Foi criador e editor por oito anos do suplemento de idéias Nicolau.

 

Colabora, com resenhas de livros, para O Estado de S. Paulo e é  cronista semanal do jornal O Estado do Paraná.