Os bichos

 

aqueles caminhos,

caminhos de argonautas sonâmbulos,

eu não esquecerei na água que lava o desleixo.

 

e agora eu caminho riscos de estrangeiro e dói!

como dói atiçar os meus pés branquíssimos,

dói terrivelmente!

 

e o brejo que não era feito de sapos seresteiros,

tinha o colapso de invisíveis girinos.

 

e os sapos e os girinos,

e a lembrança do brejo em meus caminhos.

 

e agora eu caminho riscos de estrangeiro e dói!

saudade tonta foragida entre a ferida e a cicatriz.

 

o tempo se rasga feito brisa no silêncio,

se rasga!

 

nesse meu caminho de argonautas invisíveis,

onde meu cabresto é potro ruço,

 

e o brejo dos bichos, eu o perco antes de assassiná-lo.

 

 

 

 

 

 

Contemporâneo

 

sobrepujarás antes da iniciação,

o teu sono de rosto tombado varando os meus olhos ilhados

a minha insônia arrastando a tua respiração milenar.

(na cozinha, cascas ácidas de laranja-lima

despidas pela sede de teu cansaço mais do que incauto).

da cor do ouro sobrepujarão escoriações esvoaçantes,

os meus olhos encarnados em tua respiração milenar,

os morcegos na cabeça e as jias nos pés.

(no quarto, dois olhos encharcados de alívio

e as costas pacíficas debulhando insônia e sonolências).

insônia do éter e sonolências da overdose.

 

 

 

 

 

O andarilho

 

antes fosse o andarilho da noite

a desvendar mistérios que não desvendam

e esculpe na areia dos passos

agonia de emaranhar o coração

 

antes fosse o andarilho da noite

vexame de virar bandido e sumir

na memória do medo que me alucina

 

antes fosse o andarilho da noite

e não me ardesse em chamas de vadiagem

 

 

 

 

 

 

Moulin de fleches, 11

 

j'ai planté mon parterre de fleurs et de poudre

pavé dans l'argile or l'argile n'est pás un nuage

l'embuscade de sueur resplendit et fleurit

jaillissante de déchirures et affranchi

lê blutoir, un éclat qui ne germe

mais blesse, fait couteau mon être.

 

(Tradução de Jean-Paul Mestas)

 

 

 

 

 

 

3

 

imitar o matagal sem flautim, o sertão

de exíguas gaitas, não murchar o semblante

de águas no cio e espanto.

                   espreitar, menino de vargedo e vau,

o moinho de flechas. arrancar, de soslaio

e espreita, o medo de semear trigo

                 domar potros, lobos e fingir.

colher ananás, logro e lufada

de espanto com fendas que não ferem.

     lá nos trigais de antigo tempo, trigo

é sêmen e coração, ou arco-íris

imerso em montanhas e mares de árvores.

eu, de espora e na garupa, emendo: olho

no olho, boca na boca, peito nas costas,

um punhal dentro da noite, uma paixão    

                                               suicida.

 

 

 

 

 

 

Flauta agreste xii

 

anoiteço e uivos dentro dos ouvidos

onde as corujas delatam os invasores

as axilas plenas de suor calor e deserto

rasgam-me a pele até o incêndio

caço teu corpo misturado de verdes coágulos

e receio não alçá-lo antes do amanhecer

 

emendarei os meus dedos aos teus

e calarei teus gemidos com os meus gestos

a noite é um segredo e estás dentro dele

 

 

 

 

 

 

Flauta agreste viii

 

habito la misma noche que habitas

como del mismo pasto que rumías

pero soy todo insomnio y amalgama de hiedras

deseo apenas adivinar qué escondes

oír cómo respiras y las pausas

que tanto me crispan de hielo y pasión

 

la noche en que dormimos tiene una constelación

ella adorna tu semblante y recrea en mí

ese miedo visceral de entregarme

 

(Tradução de Ana Esteves)

 

 

 

 

 

 

Vigésimo oitavo solo

 

invento saveiros de beijos

e faço de mim — teu sertão

no meio da noite \ raposas

esquivas eu caço, corcéis

em são pedro de alcântara

onde estuco os tropeiros \

roubo arco-íris que inverto sóis e luas que eclipso

 

 

 

 

 

 

Letra u

 

verso diamantes q sculpu

i infeitu tuas corxas anis-

permeio micos-floraestais

trago roxinóis q amavios

:sinas de vlerlis i pázsara

 

 

 

 

 

 

Esodo

 

cogliamo il frutto

maturato dal tempo

nel ventre della terra.

 

divoriamo la scorza

e la polpa e la fibra,

ma il seme inumidito

dalla salsa saliva

non crescerà nel suolo indaridito.

 

solchiamo l'imo

e tratteniamo il succo.

 

giunti da luogo ignoto

sperso nella memoria,

forestieri campestri,

stradali della morte,

calchiamo l'infinito.

 

contempliamo gli uccelli

e ne udiamo i gorgheggi,

ma disciolte lê redini

i puledri saparirono.

 

viandanti senza meta,

andiamo in qualche posto.

 

mattinieri o vespertini,

marginali o viperini,

ci affidiamo al destino

sotto al sole e alla luna.

 

(Tradução de Amélia Sparano)

 

 

 

 

 

 

Turvação

 

o  homem sórdido não é feito

de palha e milho — colchões de catre sim

são de palha capim e paina

madeira desenhada a nós

 

mas o homem sórdido é sorumbático

até o fundo vertiginoso da alma

não toma banho

apenas as mãos os olhos os pés

lava antes do sono

 

o homem sórdido espantou avoantes

dormiu no pomar e ficou silvestre

e não coloriu as íris de arco-

íris

 

 

 

 

 

 

Cólera

 

sem dúvida essa fadiga que entardece

é mais forte do que o vento

o vento que não é da família dos chacais

e me procura com uma lente invisível

 

o vento que racha as paredes

e atravessa a pintura

 

o vento que atravessa a pintura

e diz que os decibéis

das flores que lhe oferto

estão em anomalia

 

 

 

 

 

 

*

 

euengluisêmentvireiarvor

paumelradgraçaíqeufrago

anusânusuantascorçonãoé

clavmascorcelonjurarãsdi

vivapáraesseamordoentio

doídoémeuriflecéuvargem

nirvanadourocristalàsíris

 

 

 

 

 

 

*

 

áspero i trans|lúcido: ao ermo só a carp|ir i si eu|corvo

dor|só nu a fer|r|o ar|menta erval al|rastra igual sarg|asso seca|dura

vela|lume|lá i cipó|cá lâmina re|lume terral|meu espinhaço

lavra|dio eu lavro|cotovia a|videira eu canto|via meu p|rasto

imicobracoral

lírica de paralelepípedo ao p|asseio

cromo i q açude ó! nevral-jia esta re-presa pá|mpulha i cor|pó|ento a

passa|r|redo raro nesse

atol|olho d´água cá|o rio eu perco:

vis-a-vis|mar-fim até o serro mais céu|

de sos|laio arre|medo de bote

"enseada de u|ira-m|iris

 

 

 

 

 

 

Arranjo de pica-pau e flor-de-lótus, dia 4

 

o sangue no limiar das marés, córrego

inviolável de área livre para acesso,

como ensandecer lápis / ó flor de lótus

viola-me a índole que esculpo arrebóis

e, no convés de nau frágil — o baque

arrefece líquen colheita de anis látex

baque de peixe, escorpião/caranguejo

eu-pica-pau enxerto cidras na boca

e bico não apenas teu peito de paetê

, cítrico é meu desejo, azedo sou eu

 

 

 

 

 

 

Wilmar Silva (Rio Paranaíba-MG, 30/04/1965). Poeta, ator e performer. Vive em Belo Horizonte desde 1986. Publicou Lágrimas & orgasmos (1986, 2ª edição, 2002), Águas selvagens (1990), Dissonâncias (1993), Moinho de flechas (prêmio Jorge de Lima de poesia da União Brasileira de Escritores, 1994), Cilada (5ª edição, adaptado para o teatro por Geraldo Octaviano), Solo de colibri (prêmio Blocos de poesia), Çeiva (1997), Pardal de rapina (indicado por Alécio Cunha/jornal Hoje em dia, Belo Horizonte-MG, como um dos três melhores livros de poesia publicados em 1999), Anu (2001), Arranjo de pássaros e flores (finalista prêmio Cidade de Belo Horizonte e prêmio Academia Mineira de Letras, como um dos melhores livros de poesia publicados em 2002), Cachaprego (prêmio jornal O Capital de Teresina, como melhor livro de poesia publicado em 2004). Participa da Antologia da nova poesia brasileira (Org. Olga Savary), A poesia mineira no século XX (Org. Assis Brasil), Fenda — 16 poetas vivos (Org. Anelito de Oliveira). Organizou a antologia O achamento de Portugal (2005). Tem poemas publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais, Revista Dimensão (Brasil), Revista Apeadeiro (Portugal), poemas traduzidos e publicados nas revistas Jalons (França) Sìlarvs (Itália). Curador do projeto "Terças poéticas".