TIA MARIA

 

Tia Maria continua padecendo das crises de loucura. Mas o que me choca particularmente no caso dela é o quadro clínico paradoxal: quando está bem da cabeça, cai de cama e fica melancólica como alguém prestes a se despedir da vida. Quando está mal, porém, deixa transparecer exatamente o contrário: madruga de segunda a segunda sempre cantarolando a marchinha "Acorda, Maria Bonita"; mostra-se muito saudável; a alegria em pessoa; sai às ruas com freqüência a visitar parentes e amigos.

 

A causa do mal de tia Maria?

 

As opiniões se dividem radicalmente entre os familiares e os eventuais conhecedores do problema. Mas duas correntes sobressaem: uma, formada de gente mais íntima de casa e portanto conhecedora a fundo do caso, diz que o mal vem de família e traz a marca da hereditariedade. Exemplos não faltam, na árvore genealógica de tia Maria, de pessoas que igualmente penaram, e mesmo no presente há um caso parecido, mas não tão grave ou evoluído como o de tia Maria e cujos sintomas... Ave Maria! A verdade é que as pessoas que compartilham dessa corrente se compadecem do sofrimento dela, suplicando a que Deus, na Sua infinita misericórdia, interceda pelo restabelecimento da coitada, já que não há perspectiva de cura através dos meios convencionais. "Só um milagre", reconhecem, piedosas.

 

A outra corrente, pouco razoável e composta em grande parte de curiosos, tem opinião bem diversa da anterior: sustenta que tudo não passa da mais pura e simples ausência de homem na vida de tia Maria. Comenta-se amiúde que a quarentona continua virgem da silva, como quando tinha 15 aninhos... Esse pessoal tem uma receita infalível para solucionar o problema da coitadinha: basta arranjar um homem pra ela e adeus, enfermidade. Será?

 

Por via das dúvidas, os familiares resolveram apostar todas as fichas na sugestão alheia e, doravante, "casar Maria" virou obsessão lá em casa. Mas todos sabem que não será tarefa fácil conseguir um pretendente para tia Maria, ainda que ela disponha de um bom dote. "Estou disposta a abrir mão do véu, da grinalda e das bênçãos de padre Paulo", declarou, emocionada.

 

Desconfio de que, para se casar, a pobre donzela seja capaz de mandar a felicidade à merda.

 

 

 

 

GAL

 

 

Gal era a mulher da minha vida: a mais bonita, a mais charmosa, a mais adorável. (No fundo, meu Eros ainda engatinhava na inexperiência amorosa. Ou seja: eu amava Gal porque necessitava dela, quando deveria necessitar dela porque a amava.)

 

Por isso mesmo sofri bastante porque o meu amor por Gal nunca era correspondido. E, à medida que o tempo passava, eu gostava mais dela.

 

Na ânsia de sensibilizar Gal, passei a lhe dedicar lindos poemas de amor. Mas Gal não se tocava; parecia uma musa impassível, sem coração.

 

Quando eu já havia escrito perto de uma centena de poemas, resolvi procurar Gal pessoalmente. Afinal, eu estava farto daquele amor platônico e unilateral.

 

"O que eu preciso fazer para conquistar seu coração?".

 

"Ora essa! Você só precisa ser mais convincente".

 

"Mais convincente?".

 

"Isso mesmo".

 

Eu só precisava ser mais convincente! Mas como, se eu só sabia poetar? Pensei, pensei. Então resolvi produzir um acróstico, composição em versos cujas iniciais formavam a frase: "EU TE AMO, GALZINHA". E, claro, caprichei no romantismo.

 

Cheio de esperança, enviei o acróstico à danada, quando ela ainda morava no primeiro andar do único prédio da Praça Otávio Mangabeira e a literatura, naquela época, não passava de um passatempo sem maiores conseqüências pra mim. Agora, sim, eu esperava convencê-la de uma vez por todas. A desalmada, no entanto, nem tchum!

 

Em vão, ainda compus madrigais, idílios, quadrinhas sentimentais e haicais ridículos, na tentativa desesperada de conquistar o coraçãozinho pétreo de Gal.

 

Em face de tanta indiferença, acrescentei o seguinte artigo à Lei de Murphy: "A quantidade de amor que você sente por alguém é inversamente proporcional à que esse alguém dedica a você". Em seguida, abatido mas decidido, concluí que havia chegado o momento de tomar um pouco de vergonha na cara e partir pra outra. No início foi difícil. Aos poucos, porém, o sentimentalóide que era cedeu lugar ao cético-niilista em que me transformei. Mas isso é outra história...

 

 

[Do livro inédito A primeira vez de Z.]

 
 
 
 

Independência ou morte?

 

o sotaque do grito

seus ecos na história

do brasil, sil

 

a boca épica do grito

devore nossa

convicção do mito!

 

 

 

 

 

Made in Brazil

 

aindadetemos o monopólio da bananaosuldequa(dor)

 

 

 

 

Esse jeitinho

 

de curtir a lua fora de moda

e repetir o mesmo amém

ao final da mesma prece

 

jeito besta de ser feliz

adiando a indignação de sempre

 

minhas idiossincrasias baratas

óculos de segunda

platão de antigamente

 

bis preso na garganta

medo bípede de articular nãos

gripe recolhida neste nariz

que a terra há de comer

 

jeitinho brasileiro de ser

pouco partisan

vá na frente que vou atrás

com minha musa às costas

 

minhas pegadas indecisas

na areia movediça de

cada santo dia útil

 

 

 

 

 

Alfred Sauvy

 

o terceiro mundo

não é um bicho do

outro mundo

 

(meus versos)

migalhas de pão

não enchem o vão!

 

(meus versos)

natureza-morta

não ora nem arrota!

 

quantos bichos!

quantos mundos!

quanto apetite!

 

 

 

 

Por que não?

 

eu quero a sorte dum primeiro mundo

com gosto de rapadura, por que não?

que é pra gente berrar de felicidade

como fazem as crentinhas da igreja

vizinha lá de casa: as quais gritam o

nome do senhor com performance

e alegria dia e noite, noite e dia

 

eu quero a sorte dum primeiro mundo

com gosto de coca-cola, why not?

 

 

 

 

Manifesto

 

vivam os lugares-comuns

de todos os tempos

revolução de erratas

 pão nosso de cada dia

arroto sem imaginação

 pois o pós-moderno

não passa de um pot-pourri

de belas bobagens

 

 

 

 

Perfil

 

sou fã deste narigão animal

(o político e seu catarro:

duas essências? quem se salva?)

que aponta sempre a capital

 

 

 

 

Da arte de ficar

 

não como cuscuz porque quero

não voto no lula porque quero

não amo o brasil porque quero

não acerto o alvo porque quero

não sinto prazer porque quero

 

como não sou liberal porque quero

vou ficando, ficando, lero-lero!

 

 

 

 

Vice-versa

 

nossa república vive sempre por um triz

porque nossa república é feita com giz

 

nossa república é sempre feita com giz

porque nossa república vive por um triz

 

 

 

 

Platão e o computador

 

platão está cai

                      n

                       d

                         o

do céu feito um cão

 

platão admirado

diante do computador

essa máquina da dor

 

implume e belo

amigo de sophia

cúmplice dos arcanjos

presa da tecnologia

 

solidão de platão

diante do computador

nessa postura clássica

de (quase) operador

 

platão derrotado

platão coitado

deus grego acorrentado

 

mas

uma máquina é só uma máquina

os pesadelos de platão é que

ficarão para sempre

 

2.

 

se insistes nessa (dis)

posição patética

em erguer diálogos

sistemas e éticas —

platão —

nós patetas globais

vamos te aprisionar

na nossa pós-máquina

de fazer belos ais

depois

mui (res)peitosa

e (publica)mente

vamos te deletar

para sempre.

 

 

 

 

Relaxe e goze

 

conselho de autoridade

não se dê ao trabalho

de ficar fora de si ou

se estressar à toa

nada disso resolve

take it easy! acalme-se!

não se dê à tarefa de

visitar quem quer que seja

no espaço sideral

 

conselho de gente grande

não se dê ao desfrute

de perder o juízo

meia-volta, companheiro!

o inimigo pode estar

a um triz do seu nariz

pairando sobre sua cabeça

atentando contra seu

sagrado direito de ir e vir

 

conselho de sexóloga

com mestrado no assunto:

o ponto g é uma estrela

perdida no horizonte

lá onde o arco-íris papou

as cores primárias

(o brasil continua rosa)

e o cidadão aéreo mandou

a ministra ir tomar no...

 

 

 

 

Peccavi

 

dizem que não sou merecedor da

 amizade do esquistossomo,

esse verme baianeiro que me

devora as entranhas por inteiro

 

tudo isso porque, como david

e santo agostinho,

eu também cometi meus vacilos,

mas fi-lo só um tiquinho

 

aliás confesso: pequei, pequei

e pequei feio, minha gente.

por isso me condenem à vontade,

ainda que provisoriamente.

 

mas não tenho culpa no cartório

e, embora todos duvidem,

estou falando a sério:

não me mandem pro purgatório!

 

que sou apenas um operário

da palavra, de preferência, escrita

 que é quem faz de mim

o que bem quer: às vezes me grita

 

seus pedidos, suas indecências

que eu, sempre obediente,

cumpro calado e com deferência.

afinal sou um pobre-diabo,

 

um estóico a serviço da dor

pra quem a virtude é uma piada;

e o pecado uma doce lambança

 que corre solta ao sul do equador.

 

de resto tenho minha filosofia:

nem situação nem oposição,

esse jogo-empurra confiado

ao grande circo da alegria:

 

hoje tem espetáculo jururu!

com dona democracia

 servida em banho-maria

num repertório déjà vu!

 

ai de mim! ai de mim!

 enquanto se divertem à beça,

eu ainda sou acusado de

pecaminoso, de outrossim

 

me passar por hipócrita,

alquimista e até feiticeiro

que, do estéril verbo, é capaz

de fazer brotar dinheiro!

 

quando na verdade sou apenas

um pobre escriba que luta

(em vão) fazendo da vida

uma nobre labuta pelo pão.

 

ainda querem me condenar, é?

então fica o dito pelo não dito,

e saibam que o degas aqui

é muito macho pra dar no pé!

 

 

[Do livro inédito Respublica etcétera] 

 

 

 

(imagens ©kapsellos)

 

 

 

  

 

Almir Zarfeg, ou simplesmente A. Zarfeg ou ainda AZ, é poeta, jornalista e ficcionista. Autor dos livros de poemas Água Preta, Respublica etcétera, Sutil, pero no mucho e Jan(eu)ce i outros poemas à flor da pele, Zarfeg publicou também livros de contos, crônicas, reportagens, infanto-juvenil e uma novela literária, Uma besta plena de palavras. Vive em Teixeira de Freitas (BA).