Três quartas partes da terra pertencem ao meu pai e eu sou pequeno perante a sua grandeza.

 

Ele é hábil com a faca e a sua voz ecoa pelo mundo quando a manhã é ainda uma ténue neblina

e os utensílios funestos percorrem a casa, obscuramente.

 

Ele carrega essa máquina, acorda-me a meio da noite para me mostrar o gume de uma lâmina.

 

No meu sonho testemunho esse brilho e fico cego pela luz repentina por que hei‑de perder a alma.

 

Ele há-de chegar animado, o álcool operará maravilhas,

a marca da infância reconduzirá a inocência a esse calafrio de me ver submerso no inebriamento.

 

O pai enxameia a casa de palavras, os gritos ouvem-se nos confins da cidade,

sobrepõem-se aos rogos da mulher que espera em frente ao oratório onde Santa Filomena pontifica.

 

O pai exagera a força que tem, há-de zurzir na mesa um murro brutal,

e todos ficamos apaziguados pelo consequente silêncio, as lágrimas.

 

O pai não sabe ler. Vê, adivinha.

 

Quando passa na sombra dos sentidos clama o número da sorte

que risca com fogo vermelho, a frio, na pedra fundadora.

 

O pai arrebata, extasia.

 

Quando acende o cigarro e atira o fumo para o rosto dos que passam

o concílio estremece, ficamos com as mãos submersas em suor.

 

O pai é uma pessoa exclamativa, rebarbativa,

deixou-se fotografar ao lado da trapezista do circo internacional,

enquanto sorria, intensificando a frivolidade da noite.

 

O pai usa uma estranha máquina de barbear,

embrulha o rosto num creme viscoso, pastoso, translúcido,

e sangra abundantemente para uma toalha lavada, acintosamente lavada pela mãe.

 

Quando o pai acorda procuro refúgio nos mais inesperados lugares,

certa vez procurei refúgio no frigorífico e as minhas lágrimas congelaram,

ainda hoje irrompo em pranto em pequenos flocos de neve

que me conduzem a um certo abeto que nunca conheci, mas sei que existe.

 

O pai esteve na Suíça, trabalhou num restaurante requintado,

entre o faisão e os pudins variados está um homem velho para tanta impaciência.

 

Ele sabia que os aviões também têm música,

uma velha senhora, Monsieur, acreditava nessa estupefacção,

fruía entre o ski e o cosmopolitismo extravagantes pontualidades, receios, recorrências.

 

A mãe cansou-se, o desgosto havia de a matar bem mais que o inefável cancro

que grassava nas suas entranhas, mãe, sempre fiel, anos a fio de credulidade,

e a abominação a culminar uma vida de sacrifícios, rogos, ralhos, lágrimas.

 

O pai não esteve presente na cerimónia fúnebre,

mas alguns gestos trágicos marcaram o evento,

as minhas lágrimas congeladas atapetaram as veredas sombrias do cemitério,

a irmã esteve exuberante no vestido negro, justo, que realçava as formas e intimidava o vazio.

 

Uma crueldade após outra crueldade, a que se veio juntar a voz langorosa

de um cantor de tangos argentinos que ao longe gemia, atingia em cheio a câmara ardente.

 

O pai sabe que os aviões também têm música, não há fórmula freudiana que tanto o explique como essa noite, em que chegou de surpresa.

 

Tinha dormido ao relento e vagueou pela cidade,

debaixo do braço trazia o gato amarelo que miava freneticamente,

ao ritmo das carícias que ia recebendo.

 

Entreolhámo-nos, soubemos imediatamente que a ternura não era senão o pavor

de nos encontrarmos ali, completamente abandonados à pouca sorte do gato.

 

Ele encheu a panela com água e aguardou que fervesse, com a sua habitual impaciência de pai.

 

Tomou o gato, benzeu-o, elevou-o acima da cabeça,

acariciou-o uma última vez e, lentamente, suavemente, submergiu-o no líquido fumegante.

 

O pai é um herói amantíssimo.

 

A partir dessa altura foi um ser desterrado na sua própria casa,

avaliava a erosão da terra, a malignidade da doença, a queda sem remorso, a pedra na espírito.

Projectara-se para além de qualquer convicção.

 

Aparece, desaparece.

 

É um ser despojado que cilindra os limites

pela exuberância de uma dor muito antiga, transcendente, elíptica.

 

O pai beatifica a infância.

 

É um corrupio de imagens devoradoras onde o fogo mantém a claridade em cada recanto,

onde o medo se instalou definitivamente.

 

O nosso ódio é o modo como tememos, a raiva surdamente engolida

com a colher de óleo de fígado-de-bacalhau e visão infernal, desproporcionada.

 

O sacrário onde mantemos o pai é o terror que nos acompanha.

 

Abrem a boca porque abrimos a boca e nas mãos fechadas nem um raio de luz

aconchegamos.

 

Sempre que nos masturbamos, masturbamos o pai,

ele é a dimensão da ausência quando nos acompanha a solidão e o terrível fascínio dos anjos

e do silêncio.

 

O pai é amor — disseram.

 

E o amor que temos procede dessa vingança,

hesitamos entre a árvore do conhecimento e a árvore da ignorância,

mas é o amor o êxtase desse instante, o amor pelo ódio que vislumbramos

nessa noite de chuva e imprecações, essa noite de choro e ranger de dentes.

 

O pai tem o pénis erecto e o tango argentino viola a morte da mãe.

 

Eu tenho o pénis erecto e morro pela morte da mãe.

 

Acaso cada um de nós está morto nessa erecção, o enforcamento é o transe

porque nos perdemos e perdemos o pai e o gato amarelo.

 

Os aviões também têm música, Monsieur,

na bicicleta da vida, surpreendente oferta do pai num aniversário,

escalo a montanha que as nuvens formaram no horizonte da casa e sei que já nada há a recusar,

mesmo a mulher do sonho e a maldição de o ter,

mesmo a realidade náufraga de cada um dos eclipses que invadiram três quartas partes da terra.

 

A invocação do pai é fulminante.

 

O artista transfigura o close-up do pai

e representa-o em Roma numa luta de morte com um escorpião gigantesco, não muito longe da luz.

 

Mais tarde percorrerá a lua, agora resta-lhe a máquina de filmar

e a profundidade de campo para extrair do real a ficção ímpar, a sublimação do golpe,

a pancadaria na ampla esplanada onde uma criança arenga uma litania letal.

 

A grandiosidade do pai comporta essa similitude.

 

Olha nos olhos essa criança infame e regressa à infância nessa aproximação fortuita.

 

Há-de ver outro rio. Há-de ter outra mortalha. É cinza já.

 

A perseguição é feroz e implacável, enche o ouvido dessa magoada melodia

de ter que ripostar à agonia do gato com outra espécie de dor que não sabe explicar.

 

É a sua mãe que morre, talvez.

 

Ou o pai do pai, que entorna o corpo na enxerga miserável

e fede com novecentos anos de história sobre os ombros, entupido de fezes.

 

A nebulosa infância do pai. A poderosa infância do pai.

Uma brasa que cintila no mais recôndito da treva e o faz parar estupefacto sobre a orla do mundo (leia-se: a ordem do mundo).

 

Ele está parado e regista a simultaneidade das coisas, o zero e o nada, o um e o único.

 

Ele regista com a ilusão do poder e desconcerta no desencontro das coisas.

 

Adianta-se para a abominação. A violência excita-o.

 

A sombra recorta-lhe a silhueta e a angústia sobre o negrume intenso de cada uma das perguntas,

o montante de angústia que o sitia e destrói.

 

Jocasta encanta-o. Responde ao apelo de Ulisses. Inveja o poder de Tirésias.

 

Está perdido nas múltiplas encruzilhadas de Édipo,

definitivamente perdido porque ignora a que mar da Fenícia e a que lua indiana

pode rogar o poder de tudo destruir, o acinte pelas insígnias ancestrais do medo, o medo poderoso.

 

Nesse palácio entra, um talismã prende-o inexoravelmente à danação do fascínio,

todas as coisas são letais, agora, imaculadamente letais.

 

A loucura é a chave de todos os sinais, o pai precede-a, arrasta-a pelos cabelos,

e longe, muito longe, ressoam as pancadas na cabeça — e o corpo estremece nesse ritmo avassalador.

 

A loucura é a chama que incendeia o real.

 

Todas as representações que a terracota figura

e uma dracma paga pelo preço da inocência, são o pavor, o assombro: o pai está feliz.

 

Ele conduz a quadriga e luta com os leões. Ele solta o grito libertador.

Transpõe a passagem e invectiva os deuses para o eterno desafio, o clamor indemne,

as entranhas do pombo. E não há interrogações.

 

O que o pai vê é impossível ver, o que aí transparece é um cristal negro que tange o mistério,

oprime a respiração.

 

Pavilhões extensos marcam esse limite,

gorriões magníficos despenham-se das alturas, não há sol,

arrastam-se as sombras na exiguidade do ar.

 

O pai é enorme, colossal.

 

As sombras são enormes, colossais.

 

O pai inclina a cabeça e a metamorfose acontece,

todas as ruínas estão em fogo, os olhos e a boca ardem nesse instante subtil,

as mãos crispam-se, um fio de baba marca a face, uma onda de espuma alastra-lhe pelos lábios,

borbulha entre os dentes.

 

Os braços são uma cruz repentina que convulsiona as pernas e os pés.

 

O êxtase da cabeça estremece o tronco, está a árvore preparada para o abate lustral,

que purifica e sustém.

 

Ah, o pai! A liturgia conclama-o para a oração suplicante, a murmuração amplia‑se,

o incêndio propaga-se.

 

Uma estrela no céu: o pai é essa estrela, com os olhos vazados.

 

O pai não tem perdão.

 

Há uma meticulosa confusão no sentido de todas as coisas,

a asfixia alastra, dilacera a alma, projecta sobre o olhar um mal real — incontido, intratável.

 

Como num sonho sem som, tudo é lento e distante, ténue e indistinto —

os brancos são água que escorre, o sangue uma visão de transparências levíssimas.

 

Já nada é leve nas têmporas, nesse peso cedem e levitam, nesse peso imponderável

o que é claro é escuro.

 

O passado e o presente. O presente e o futuro. Roma e Genebra.

 

O pai vocifera.

 

Essa vociferação é contagiante. Ficamos estupefactos, perplexos, por esse inusitado equilíbrio.

 

Ele oscila entre o claro e o escuro das coisas, condensa a penumbra sobre os lugares

numa espécie de recolhimento que é a beatitude do pai.

 

Ele é santíssimo.

 

O seu coração contrito tem a forma de uma granada, uma romã.

 

Ele pode perder a vida numa acção meticulosamente preparada, a queda na máscara é o sinal

da defesa, o ataque corresponde a um ligeiro deslize.

 

Quando a mina rebenta, o clarão espalha os testículos do pai por tudo quanto é sítio:

amor de mãe guiné 1968.

 

Os testículos do pai são santíssimos, eis o sacrilégio.

 

Ele apenas aguarda um sinal, guarda no peito um saco de lacraus, o ódio eterno, preclaro, infalível.

 

A sabedoria do pai é inexorável.

 

O enigma do pai é um quebra-cabeças porque o jogo do pai é o triunfo

e todas as cartas estão marcadas, o ás, o rei, a dama, o valete, a manilha.

 

A manilha do pai é inexorável. Os aviões também têm música. O sino toca, tudo está bem.

 

Na manobra dilatória do pai o absoluto é exíguo. Três quartas partes da terra pertencem-lhe.

 

A visão do mar enternece-o — e, ao longe, escuta-se o tango argentino.

 

Vibra e respira nessa morte aparente e ama alguém que longinquamente amou:

alguém fascinado pelo mar e a lua.

 

Alguém que não existe. Alguém que a memória corrompe. Alguém que se perdeu e está vivo

algures, na pura ignorância de todos os lugares e todas as coisas exíguas e absolutas —

I'll always remember how beautiful you're.

 

Ah, o riso do pai é contagiante, nesse afã o vemos, de pé, inerte,

a brancura dos ossos sitiando-O, tocando-lhe a garganta, ferindo-lhe o rosto.

 

A alegria do pai. Como se baba e urina nessa expansão dos sentidos.

 

Como se masturba e expõe: o pénis colossal cortando o ar que brutalmente o asfixia

e onde uma sombra azul, hiante, lhe entrega um nome e o designa para o último combate,

a última redenção.

 

God, o pai está ferido de morte e só a morte o pode redimir.

 

A seta envenenada perfura-lhe os pulmões, a corda aperta em volta do pescoço,

atinge a lâmina o coração iridescente.

 

A manobra dilatória do pai: o pai é hábil com a faca e a sua voz ecoa pelo mundo

e toca-me a cabeça.

 

O cão do pai é um doberman pinscher a que chamam Perseu, Ájax, Prometeu,

conforme o vento, a fúria, a memória, a chama recente que a ausência apaga.

 

A noite do pai é a doença venérea que estiola o amor,

o incêndio do olhar onde uma ave passa e turva a solidão na solidão do homem.

 

O pai procede dessa injustiça última em que todas as coisas são pretéritas, inúteis:

a violação dos sentidos é a maldição dos sentidos, onde o horizonte de bruma aniquila e ulula.

 

O pai é a diáspora. O pai não tem remédio. A salvação é inútil.

 

Todos os enigmas da terra são essa reverberação, a lâmina entre os dedos, o rito.

 

A poderosa infância do pai. A nebulosa infância do pai.

 

A escuridão é total: a memória é um espadarte em fuga

e uma caixa de cartão canelado impressa a vermelho, um rolo compressor.

 

A loucura e a febre. A sede e a vingança.

 

Ah, o rastro de fogo é o pai no céu imponderável.

 

O manejo da faca obstinava e a multidão seguia esse fascínio.

 

O fascínio irrompia de fontes luminosas, flâmulas ao vento, paixões irreversíveis.

 

O pai honra o serviço do talho e a perícia do magarefe. O pai homenageia a precisão do carrasco.

O pai usa navalhas ambivalentes, confere o galardão.

 

Um dos pensamentos do pai: — Escreves, filho? Antes nascesses morto!

 

A ambivalência do pai é substantiva.

 

Quando viaja preenche com ânsia as noites de desespero

e aguarda o milagre com a insónia ancestral dos que o precederam.

 

Ele grita e recria.

 

Na impaciência da mãe, Genebra é longínqua, o circo, a trapezista, a morte, a potente alquimia:

rosto a desvanecer-se no arquétipo primordial, delírio apenas, Monsieur.

 

O amor teme.

 

Entrega-se à noite, beija-me a face, sabe a que nome respondo, a que enigma, luz na luz.

 

A nostalgia da paixão é o pai.

 

Fala avassaladoramente, cúmplice, infernal.

 

Insiste e insiste sobre a intuição da beleza, o desamparo do cão, o gato amarelo, a perfeição,

o livre arbítrio dos deuses invocados.

 

Ah, o pai. O pai. O pai é uma jóia.

 

Fulge na escuridão para um crime a cometer ou que foi já cometido na noite dos tempos.

 

Desse assassínio nascemos.

 

O pai tem as feições do crime e nós temos as feições do pai.

 

Assistimos à escalada violenta do pai.

 

Ele fala obliquamente, fractura o discurso com modulações e registos inapreen­sí­veis, gânglios, arpões, triglicerina.

 

Príncipe persa, breve verdade inefável, fez-se o pai eremita.

 

Ele volta o olhar para essa passagem inextricável, o pénis é imenso,

reduz o silêncio a uma dor profunda onde a sombra de uma cabeça

é o rastro incendiário de alguém que já viveu, um anjo trémulo.

 

Em frente, há um muro branco.

 

Encontramos o pai nesse efémero esplendor: à direita uma coluna de fogo precipita-se dos céus,

à esquerda uma ave suspende o seu voo infinito.

 

Essa ave é o pai e a memória precede o que em essência foi vivido,

dois mundos onde frio e calor são uma única referência.

 

Eis o princípio de tudo, o princípio de todas as coisas,

a sagacidade movimentando-se em torno de um eixo onde o amor e o medo se confundem —

o pai congrega toda a energia das sombras.

 

Há um momento em que o pai é o caos, o sortilégio alcança a plenitude de tudo,

num feitiço guarda esse líquido inerte, fervente,

nas mãos o verte para que a incandescência irrompa.

 

(Haverá sempre algum destroço da memória a que afeiçoar as recordações,

um mínimo sinal de sombra que tudo paralisa para que tudo volte a ter início).

 

O pai queima. É uma máquina de vidro entre o acaso e a necessidade.

 

Fixa-se em cores esdrúxulas, para-normais, larguíssimas.

 

Ao cabo de um minuto é um filho de deus com a vara de laser cravada no coração, a fulguração, as têmporas, o medo.

 

O que quer não dá.

 

Converge em registos altíssimos para o fluxo das migrações, chega

e escolhe uma palavra, a intensidade do acaso, o jogo.

 

(Vês a serpente, o plano inclinado da destruição?)

 

O pai é o malogro, a túnica encarnada cobre-lhe os pés andarilhos, o ar satura-se de incenso,

ele murmura e murmura, levanta as mãos acima da cabeça, ordena a separação das águas,

o êxtase de um triunfo precário, rotundo.

 

O olhar dispara manchas de acusações, agride, dilacera.

 

O fogo evolui sob a ameaça permanente de outro castigo de fogo,

evolui e fascina as cabeças, a terra, o coração.

 

Permanece em sentidos ambíguos de eterno desalento,

casas perdidas em torpes escrutínios, lâmpadas de álcool, gaze, injecções.

 

O pai é a contaminação. O vírus é letal. O pai é letal.

 

No desespero o rosto macerado procura um espelho em que as imagens se perdem.

 

A sarça expande-se para além da treva — e a treva adensa-se, estrangula, destrói.

 

O caos é a infância, essa ordenação perturbadora.

 

O pai age como um profeta, instala o poder entre o brilho da morte, arranca o coração da vítima, acende o incenso.

 

O pai é a infância, essa ordenação perturbadora.

 

O sangue escorre na pedra, a lâmina branca atinge o remorso, trucida, borbulha.

 

O olhar desvairado é o vestígio desse ritual secreto, sagrado.

 

De novo o pai ameaça, de novo vem destruir.

 

A excitação violenta. Avassala a vertigem. A tortura redime.

 

Ah, o sino toca, tudo está bem.

 

O amor e a morte irão arrebatá-lo definitivamente.

 

Maneja de novo a faca, pertencem-lhe três quartas partes da terra, vê no escuro.

 

Ele aspira profundamente o ar purificado pela experiência da dúvida,

ousa cantar no silêncio da noite, transforma a treva em instantâneos de luz,

onde a proliferação do mal é o bem.

 

O exercício que ousa é a loucura e a procura do pai, um sonho petrificado.

 

Prepara o incenso para a celebração: o ritual é um brilho sobre a escuridão atroz,

dentro do coração uma pedra respira.

 

Essa pedra é o pai.

 

O pai molda a memória e tudo é exterior, anterior, futuro, nesses sinais perdura, eternamente, God.

 

Milhões de estrelas, milhões de grãos de areia. E o pénis erecto na solidão infinita.

 

O sino toca, tudo está bem.

 

Um risco iridescente atravessa a cabeça, expande-se, extingue-se, renova-se.

 

A mãe aparece no firmamento.

 

Afasto-me em silêncio e choro em silêncio. O pai acompanha-me -

e sou pequeno perante a sua grandeza.

 

(Continua a nevar.) 

 

 

(imagem ©michele dugan)

 

 

 

 

 

 

Amadeu Baptista (Porto, Portugal, 1953). É membro da Associação Portuguesa de Escritores e do P.E.N. Clube Português. Em 2007, publicou Antecedentes Criminais - Antologia Pessoal 1982-2007, uma selecção de poemas dos seus 20 títulos de poesia publicados. Possui colaboração dispersa em jornais, revistas, livros colectivos e antologias nos seguintes países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, E.U.A., Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, México, Portugal, Roménia e Uruguai. Alguns dos seus poemas foram traduzidos para o alemão, castelhano, catalão, francês, hebraico, italiano, inglês e romeno. Recentemente, foram-lhe atribuídos os seguintes prémios: Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, pelo original O Bosque Cintilante; Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, pelo original Poemas de Caravaggio; Prémio Literário Florbela Espanca, pelo original Outros Domínios e o Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica, pelo original Sobre as Imagens.