Cinema aos domingos

 

a moça espera o rapaz na porta do cinema

o transeunte passa, olha a moça

sorri por entre dentes

 

a sessão começa e a moça espera o rapaz

o transeunte passa, olha a moça

um olhar por entre olhos

 

a sessão termina e a moça espera o rapaz

o transeunte passa, olha a moça

um olhar por entre pernas

 

o vendedor de confeitos se retira

a moça não mais espera o rapaz

 

o transeunte passa, os dois se olham

um olhar por entre coxas

 

o rapaz espera a moça na calçada do cinema

 

 

 

 

 

 

O oriente da cidade

 

entre pombos e putas construí poemas

 

a cidade era lúcida

a radiola de fichas juntava nossas coxas

os retalhos eram enfeites de salão

 

entre pombos e putas construí poemas

 

a cidade era música

cama de loucos e as mulheres livres

para o copo para o corpo para as ruas

 

entre pombos e putas construí poemas

 

a cidade era à prova de balas

a ponte era à prova de sonhos

a dor visitava o capibaribe

 

entre putas e pombos construí poemas

 

 

 

 

 

 

Absoluto

 

quando o tempo do branco chegar

não terei gaiolas

gatos siameses

ou cachorro poodle

com coleira de marfim

 

com certeza

direi poemas indecentes

falarei de revoluções inacabadas

de lugares que mapeei com minha alma

 

 

 

 

 

 

Milena

 

gosto quando milena fala

dos homens

que comeu durante a noite

 

é a única voz soante

nesta cantina de repartição

 

onde todos contam:

do filho drogado do preço do pão

do sapato carmim, exposto na vitrine

da rua sicrano de tal do bairro

de casa amarela

onde você pode comprar

e começar a pagar apenas em abril

 

sem a voz de milena

o café desce amargo

 

 

 

 

 

 

Morte sob carbono

 

a floresta (dentro

da sala)

espia o homem

que se apóia na caneta

 

nomes números nódoas

 

as velhas esperam

o ventilador gira

o café esfria o bigode do funcionário

 

— papel poeira pesares —

       — idades vãs —

 

entre

um documento e outro

um carimbo e outro

uma certidão e outra

as velhas

acertam um grampo na alma

e pactuam um prazo com a morte

 

 

 

 

 

 

Urbe

 

hoje na minha boca

não cabem girassóis

 

cabe um poemapodre

cheiro de mangue capibaribe

 

um poemaponte

galeria esgoto chuvas de abril

 

um poemacidade

fumaça ferrugem fuligem

 

hoje na minha boca

cabe apenas o poema

 

o poema hóspede da agonia

 

 

 

 

 

 

Poema da anunciação

(entre drummond, adélia e chico)

 

quando nasci

os anjos da anunciação

não me disseram nada

 

então saí por aí

a inventar destinos

de vez em quando

a consertar a cara

 
        

 

 

(imagem ©zuks)

 

 

 

  

 

Cida Pedrosa (Bodocó, Sertão de Pernambuco, 1963). É poeta e edita em parceria com Sennor Ramos a Interpoética. Publicou Restos do fim (1982); O cavaleiro da epifania (1986); Cântaro (2000) e Gume (2005). Participou de várias antologias.  É uma das organizadoras da RECITATA – Concurso de Recitação do Festival Recifense de Literatura e vem se dedicando a estudar as interfaces entre a literatura, mídias e tecnologias. Foi uma das coordenadoras do Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco. É uma das Escritoras Suicidas.