Só algum tipo de perversão poderia manter uma obra como a do poeta pernambucano Ascenso Ferreira fora das livrarias — a quinta edição é de 1995, a sexta, de 2008, tempo considerável. Sua consagração pelos escritores modernistas de São Paulo como um dos adeptos do movimento não parece um aval suficiente. Talvez alguém ainda o considere um poeta de interesse apenas local. Mas na verdade aquele aval é dispensável. Seus poemas se impõem pelo que são: peças notáveis de ritmos e cores de uma fascinante realidade antiga, inclusive por causa do distanciamento.
A organizadora desta edição, também responsável pela fixação do texto, Valéria Torres da Costa e Silva, menciona e comenta a polêmica do regionalismo, que poderia ter marcado o poeta de maneira negativa. Regionalismo em seu sentido pequeno, restritivo. Ascenso cantou sua roça, Mário de Andrade, sua cidade — uma não é melhor nem pior do que a outra, menos típica do que a outra, e nenhuma tem poder de veto sobre a outra. Num país de realidades tão diferentes quanto o Brasil, raia o absurdo quando alguém pretende falar em termos de todo o território, ditando regras, como se tudo coubesse num único bolso.
O modernismo paulista pode ter sido uma sinalização importante, mas não nunca foi obrigatório nem a última palavra para coisa nenhuma. No final das contas o movimento virou uma cama de procusto. Quando a vítima não cabe na cama, basta cortar-lhe os pés ou o pescoço e pronto. Felizmente, a leitura em si independe dessas classificações. Descobrir ou reencontrar os poemas de Ascenso significa poder acompanhar, de modo paralelo às vibrações da poesia, uma pensata sobre o papel da expressão cultural implícita na prática poética do escritor. Dizer que ele era nostálgico e inconformado com as mudanças tecnológicas que rapidamente iam alterando os modos de vida habitais de algumas gerações não é suficiente. E, se quisermos rebater esse argumento nele mesmo, podemos observar que poemas do tipo de Sertão poderiam ser lidos como manifestos ecológicos, pureza contra poluição, etc. Isso, deixando a literatura de lado, claro.
O que conta mesmo é que uma poesia como a de Ascenso foi escrita num momento crucial e único, quando a cena de aparência congelada começa a se mover a contragosto e suas formas começam a se transformar em matéria de lamento e celebração. A vaquejada, a vendinha de fim de rua, a menina toda assanhada com a perspectiva de faturar na vida fácil, o trem que até então era o que havia de mais rápido, enquanto o mirabolante desfile celeste do Zeppelin era traduzido na imaginação das pessoas como um fenômeno ao alcance da mão: é mais uma desse tal de Zé Pelin. E do Ascenso.
O poeta tinha olho para flagrar as cintilações da linguagem daquele momento e que só permaneceriam na arquitetura esperta, cantante dos seus textos. A organizadora discute essas questões e fornece elementos para a reflexão e o cálculo estimativo do prejuízo que tais preconceitos causam ao processo cultural. Provocam inibições, acabam funcionando como censura. Desconhecer a poesia de Ascenso Ferreira é ignorar não a "alma brasileira", muito menos a "alma pernambucana", que não passam de clichês ideológicos, mas sim deixar de lado uma das facetas da poesia feita no país, capaz de transcender época e lugar, situando-se num espaço virtual de encantamento.
[Publicado originalmente na Revista 18, de São Paulo]
julho, 2008