© loredano
 
 
 
 
 

 

Apropriando-me (sabiamente, diga-se, porque embebido de mais elevada fonte de conhecimento) de um trecho de frase lapidar elaborada pelo crítico e ensaísta Silviano Santiago, há de se enfatizar com todas as letras que já é tempo de se 'desmascarar' — sim, o termo é esse — a mais do que equivocada e injusta,  retrógrada, leviana e irresponsável imputação a Machado da pecha de "alienado", "alheio às questões de seu tempo", "distante dos problemas de ordem institucional, política, econômica e social".

 

De um lado, soberbo cronista, que fez da crônica muito mais do que um registro pontual do cotidiano, transformando-a em um verdadeiro gênero literário; de outro, (todos sabemos) inovador na ficção, como contista e romancista, impondo na história da literatura brasileira a magistral inflexão estilística, temática e de linguagem executada no final da década de 1870, que abalou e mudou os rumos da narrativa literária, Machado tratou da política brasileira do século XIX em mais de três centenas de crônicas, em mais de duas dezenas de contos, em quase uma dezena de poemas e em três peças teatrais — nelas retratada a história do II Reinado, sob seu olhar acurado, lúcido, irônico, satírico, por vezes claro, nítido e direto; outras  vezes oblíquo, dissimulado, sutil, sobretudo,  por sua incomparável lucidez  crítica, à qual nada escapou dos fatos e assuntos de qualquer natureza de seu tempo — uma época, do advento do Romantismo ao Realismo literário,  Abolição, queda do Império e implantação da República, de grande ebulição, tumultuada e marcante para a história brasileira.    

     

Que se saiba também que a ficção machadiana (quanto à obra não-ficcional, por sua própria natureza, não pairam dúvidas) foi — ao longo do tempo, em maior ou menor grau — de um lado, influenciada e de outro, refletora do fluxo da história brasileira do século XIX; mormente no conto, mais até que no romance, Machado incorporou os elementos proeminentes dessa história, fazendo dela, ainda que em entrelinhas, mais do que pano de fundo e ambiência: leitmotiv e essência dramatúrgica, destacada a presença marcante dos conhecidos e admiráveis 'utensílios' machadianos do disfarce, da dissimulação, do subterfúgio, da sutileza, dos significados ocultos postos como desafios ao leitor, por meio de outras de suas peculiaridades, o uso do anonimato e do pseudônimo, de que ele foi um dos mais profícuos usuários.

 

Mestre dessas 'artes', talvez por isso tenha adquirido —  erroneamente — a imagem da alienação e distanciamento políticos. Ledo e puro engano: Machado de Assis foi um crítico 'avassalador' da sociedade e das instituições brasileiras; tinha opiniões políticas — era um monarquista liberal (mas do liberalismo do segundo estágio, conforme interpreta Raymundo Faoro, quando o 'novo liberalismo' (expressão cunhada por Joaquim Nabuco), na década de 1860, empunhando as bandeiras da eleição direta para o Congresso, dos limites do Senado vitalício e do Poder Moderador, bem como, paulatinamente, da chamada questão servil, iria substituir o "liberalismo oligárquico", oriundo de 1824, como lastro ideológico do novo Estado nacional advindo da Independência), e por meio de sua obra é possível observar a política brasileira de sua época, através do olhar literário. Raymundo Faoro (em A Pirâmide e o Trapézio) sentencia poder-se vislumbrar toda a sociedade brasileira do século XIX na obra  de Machado: tanto como na não-ficção, sua ficção também arrancou da História a própria substância de suas narrativas e textos, utilizando uma série de categorias políticas — escravidão, liberdade, golpe de Estado, censura, aparelho policial, autocracia absolutista, totalitarismo, etc. — na elaboração, em sua  escritura literária, de uma  crítica da ideologia brasileira e de uma teoria política avançada, que no campo dos estudos literários ainda não foi total e adequadamente percebida pelos especialistas.

 

Machado, como ninguém, anteviu que a própria evolução da sociedade nacional e o processo transformador que o País atravessava, ainda na década de 1870 —sintonizado com o mundo industrializado, capitalista e socialmente 'darwinista', sob um mecanismo dinâmico que levaria posteriormente à Abolição e à República —  impunham mudanças, de toda ordem, também em sua criação literária: daí, a significativa 'guinada', para ao mesmo tempo  expor e contrapor, adotar e minar, revelar as contradições — esta a razão primordial da inflexão machadiana que tanto estimula e insufla a historiografia e o pensamento crítico literários, ao contrário da  interpretação de uma "crise dos 40 anos" e  de considerações de outra ordem.

 

Os contos que se reportam à política — expostos aqui em obediência cronológica, justo para permitir o vislumbre da evolução machadiana no trato do tema, em consonância com o desenrolar do pano de fundo histórico — têm como seu primeiro exemplo "Virginius", publicado — observe-se (!) — em 1864, já apresentado  no conjunto "Machado e a Escravidão"; aliás, certas chaves temáticas guardam entre si inter-relacionamentos e interatividades, exemplos desse conto e de todos aqueles  'de escravidão', de "Conto de Escola" e de "Um Ambicioso", ambos  ao mesmo tempo entre os 'políticos' e os 'de dinheiro e moeda' (em dezembro), de "Teoria do Medalhão", tanto 'político' quanto 'filosófico', etc. Evidencia-se, nesse  primeiro grupo, ligeira predominância do Jornal das Famílias como veículo de publicação, a constatar um fato bastante significativo quanto ao modo sutil, e eficaz, sem dúvida, de que Machado se valia para transmitir suas 'mensagens', no caso  por meio de uma publicação de perfil conservador e reservado, eminente e essencialmente dirigida ao público feminino. O lote abrigaria o antológico e canônico "Teoria do Medalhão", já de 1881 — porém já veiculado aqui, entre os "Contos Filosóficos 1" (julho) — que a par de incontáveis elementos não apenas de elevada qualidade literária, mas de reflexão de cunho até mesmo ideológico, é o conto que possivelmente mais expressa a insofismável atualidade de Machado, ao antecipar a cultura da exposição, o culto à imagem e à aparência, o privilegiamento da publicidade e do marketing, a própria 'sociedade do espetáculo' em que vivemos.

 

Convém registrar que também de 1881 é "O Alienista", certamente, o mais 'completo' conto de Machado — talvez uma novela, nem tanto por sua extensão, mas por suas consistência, densidade e complexidade — mais uma vez a reunir o político ao filosófico, ao psicológico, ao cognitivo de crítica à razão e à ciência, etc. Não se encontra nesse grupo porque, justo por esses atributos, merecerá 'edição' exclusiva, mais adiante.

 

 

setembro, 2008