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Além de ser um dos mais conhecidos, estudados, editados e "respeitados", "O Alienista" é um dos mais complexos contos da extraordinária lavra de Machado de Assis. Verdadeira obra-prima da contística brasileira — quiçá universal — é visto por alguns eméritos estudiosos como uma "auto-caricatura" — Simão Bacamarte como uma espécie de alter ego de Machado, que atinge aqui o ápice de seu ceticismo. Muitos são os  elementos e níveis de significação e interpretação que se interpenetram no texto, mas o conto é antes de tudo e por tudo uma sátira demolidora, de um lado, à  ciência, especificamente à psiquiatria, e à razão; de outro lado, às práticas e instituições do poder, a  narrativa se desdobrando nos registros cognitivo e  político.

 

No cognitivo, uma leitura de "O Alienista" conduz para a crítica devastadora à psiquiatria e à instituição psiquiátrica, no Brasil e no mundo, a trama e a narrativa  dominadas pela polaridade razão-loucura, o leitor, inclusive, sem poder "idealizar" a loucura como uma via de acesso à verdadeira sabedoria, como sustentado pela denominada antipsiquiatria de hoje — a loucura vista como a responsável pelo amor, pelo prazer, pela amizade, pela auto-ilusão, que torna suportáveis os próprios defeitos humanos: que permite a vida social, fazendo com que os homens se suportem entre si e o povo suporte seus governantes. A loucura estaria na origem da verdadeira sabedoria, pois tem sob seu domínio as paixões, as quais conduzem à sabedoria. E nisso aparece a primeira manifestação do "terrível" ceticismo machadiano, desdobrado em camadas que se sobrepõem: se de um lado, antecipa certos conceitos e preceitos antipsiquiátricos modernos, contemporâneos, de outro, os desmistifica com contundência.

 

A crítica cética de Machado não oferece "esperanças" em nenhum dos registros em que se desenrola o conto. Sob o registro político, o despotismo da Casa Verde está explícito no comportamento de Simão Bacamarte e seu "olhar metálico, duro, liso, eterno, um olhar de quem observa e interroga", que de fato fazia "uma devassa, como a não faria o mais atilado corregedor". Machado mostra claramente o quanto a corrupção desempenha um papel ativo e determinante, óbvia que é a participação da Casa Verde na manutenção do pacto de dominação, ao desqualificar com o estigma da loucura qualquer tipo de comportamento desviante e puni-lo pela internação compulsória.

 

A Casa Verde é um microcosmo da sociedade exterior — tanto o governo espiritual, dedicado à  ciência e ao tratamento dos loucos, quanto o governo temporal, que se ocupa dos detalhes administrativos, estão com um só homem, Simão Bacamarte; é parte de um sistema de dominação autoritária, que abrange toda a cidade, sendo as  outras peças desse dispositivo de poder a Igreja, representada pelo padre Lopes, a  administração municipal, representada pela Câmara de Vereadores, e a classe dos proprietários, isto é, a elite econômica e social, à qual pertencia o próprio Simão, "filho da nobreza da terra".  E mais: na polaridade entre o despotismo da Casa Verde e a vítima desse despotismo, a população de Itaguaí, Machado deixa claro que essa oposição não é  tão rígida, pois muitas posições são comuns aos dois pólos, todos, em última análise, movidos por interesses materiais e, sobretudo, por sede de poder. Itaguaí — e o conto — não tem personagens nobres, nem entre os que mandam nem entre os que são obrigados a obedecer.

 

É a amarga lição que nos lega o mestre do ceticismo, aqui exibido em dose dupla.

 

A revolução dos loucos e a contra-revolução dos guardas em "O Alienista" expressa concreta e decisivamente um pensamento machadiano: a inanidade da ação política como forma de anular os dados essenciais da condição humana. O que não tem nada de "alienante", nada de postura alienada — como a pecha absurda que um dia impingiu-se a Machado — ao contrário, comprova a incomparável consciência política, do mais alto e avançado nível, de que dispunha.

 

 

 

 

outubro, 2008