© loredano
 
 
 
 
 
 

 

 

 

  

 

(Publicado originalmente em 1876)

 

I

 

A tarde era uma tarde de dezembro — trovejada como elas eram há trinta anos, quando o céu parecia querer vir abaixo, desfeito em raios e água. O calor fora excessivo durante a manhã toda; às duas horas, o céu começou a enegrecer, às três e meia, desfechou a tormenta que pouca gente apanhou na rua, porque esta sagaz população fluminense, contando com ela, houve-se de modo que estava toda recolhida na ocasião. Os que eram sinceramente piedosos acenderam uma vela benta diante do oratório e rezaram uma ladainha puxada pela dona da casa e respondida por toda a família; outros envolviam-se em cobertores de lã, outros viam cair a chuva; ninguém, absolutamente ninguém andava por fora.

 

Ninguém, digo mal; uma só pessoa talvez, aventurara-se a andar na rua, em tão desabrida tarde; era um rapaz de cerca de dezoito anos com princípios de barba, alto e amorenado, que seguia da praia da Gamboa e entrava na Rua do Livramento. Ia embuçado num capote pardo, e tinha um guarda-chuva aberto, felizmente largo, mas que, ainda assim, mal lhe preservava o corpo; todo o capote da cintura para baixo ia alagado; os pés nadavam-lhe dentro de um par de sapatos de bezerro. Vencida a praia da Gamboa, entrou o moço em uma das ruas transversais que vão dar à do Livramento; ali teve que passar contra a corrente, um rio de água barrenta que descia, graças ao declive do solo. Enfim, meteu-se pela Rua do Livramento, e apertando mais o passo pôde chegar a salvo a uma casa assobradada, de três janelas, em cujo corredor entrou. Ao depois de fechar a muito custo o guarda-chuva, pôde ouvir, nos intervalos dos trovões, as vozes da família que cantava uma ladainha a Nossa Senhora. O moço não quis bater à porta, e antes de acabada a reza, deixou-se ficar, no corredor, a ver cair a chuva, a ouvir os trovões, benzendo-se, quando os relâmpagos eram mais fortes.

 

A trovoada daquela tarde não durou muito; trinta e cinco minutos apenas. Logo que acabou, cessou dentro a reza, e o rapaz bateu à porta de mansinho. Havia escrava para abrir a porta, mas a dona da casa veio em pessoa; — não queria saber quem era, porque adivinhava bem quem podia ser, mas abraçar o moço e "passar-lhe uma repreensão".

 

O abraço foi cordial e verdadeiramente de mãe, e não menos cordial e materna foi a repreensão que logo em seguida lhe deu.

 

— Entra, maluco! exclamou a sra. D. Emiliana da Purificação Mendes. Olhem em que estado vem isto?... Deixar-se ficar na rua com semelhante tempo!... E as constipações e as tísicas... Deus me perdoe! Mas cá está a mãe para cuidar da doença... e o dinheiro para a botica... e os incômodos... tudo para que este senhorzinho ande por fora a trocar as pernas, como um vadio que é... Deixa estar! eu não hei de durar sempre, hás de ver depois o que são elas!... Por ora é muito bom cama e mesa...

 

— Mamãe, articulou o rapaz, deixe-me ir mudar a roupa; estou todo molhado.

 

— Vai, vai, troou a sra. D. Emiliana, cá tens a tua criadinha para te dar roupa lavada e enxuta, meias para os pés, e os suadouros. Anda, pelintra! sai daqui!

 

Este monólogo durou ainda cerca de quinze minutos; a diferença era que, se D. Emiliana até então falara somente, dali em diante falava e tirava a roupa dos gavetões da cômoda e ia pôr tudo na alcova do filho, intercalando os adjetivos de censura com algumas recomendações higiênicas, a saber, que não deixasse enxugar a roupa no corpo, que esfregasse os pés com aguardente e não esquecesse calçar as meias de lã. Duas mocinhas, uma de quinze, outra de dezesseis anos, e um menino de oito, ajudavam a mãe, calados e medrosos, posto estivessem acostumados às explosões de dona Emiliana temperadas por enfraquecimentos de ternura.

 

As duas trovoadas passaram de todo; e tanto o céu como o rosto de D. Emiliana voltaram à serenidade anterior. Vestido, calçado e agasalhado, saiu da alcova o rapaz, e foi direitinho beijar a mão da mãe, e dar-lhe um abraço, que ela recusou a princípio, talvez por um sentimento de coquetice materna, que a fazia encantadora.

 

— Mano Pedro não tem juízo, não — dizia uma das moças, ficar por fora com este tempo!... E mamãe a esperar por ele para jantar.

 

— É verdade, nem me lembrava disso! exclamou D. Emiliana. Já não é a primeira vez que me fazes esse desaforo!

 

Pedro viu iminente nova trovoada; e com arte e jeito arredou as nuvens ameaçadoras. O que ele disse foi que, a instâncias do padre Sá, jantara em casa dele.

 

— Fizeste muito bem, aprovou a mãe; mas o que eu duvido é que, se lhe dissesses que eu não gosto de que jantes fora, ele teimasse no convite.

 

— Teimou.

 

— Deixa estar, concluiu a mãe; eu saberei disso na missa de domingo.

 

Com esta ameaça terminou de todo o mau tempo doméstico. O atmosférico havia já acabado. As irmãs de Pedro, Cecília e Luísa, foram para a janela; o irmão pequeno, Luís, fez umas quatro canoas de papel e mandou pô-las na água das sarjetas da rua, indo ele vê-las da porta; enquanto D. Emiliana dava ordem para a merenda, e Pedro relia uma tradução de Gil Brás.

 

II

 

A leitura de Gil Brás não durou muito tempo, se é que durou algum, porque até hoje não está averiguado que o jovem Pedro tivesse naquela tarde o espírito na mesma direção dos olhos. Os olhos corriam pelo papel e a mão voltava tão regularmente a página que era difícil dizer que eles não liam. Há todavia razões para crer que o espírito vagueava distante do livro. Pois é pena que fizesse dessas escapulas, deixando um corpo gentil, como era o dele, forte, sadio, e gracioso sem afetação; sobretudo, não se compreende que o espírito de Pedro não quisesse acompanhar no papel aquele par de olhos rasgados em forma de amêndoa, escuros e luminosos; uns olhos que tinham feito pecar a mais de uma moça do bairro, que o padre Sá namorava para o céu.

 

A noite veio clara e estrelada; e não tardou que a lua batesse de chapa nos telhados e calçadas úmidas da chuva da tarde. D. Emiliana foi fazer meia na sala de costura, à luz de duas velas de espermacete, enquanto Luís recordava a lição, as meninas cosiam, e Pedro lia em voz alta uma novela que a mãe interrompia com reflexões substanciais de moral e disciplina.

 

No meio deste quadro caseiro, bateram à porta, e um escravo veio dizer que estava ali o padre Sá! Leitura e costura foram interrompidas; D. Emiliana tirou os óculos de prata e levantou-se à pressa tanto quanto permitia o anafado das formas, e saiu a receber a visita. Pedro acompanhou-a com igual solicitude.

 

— Seja muito bem aparecido, reverendo! disse D. Emiliana, beijando a mão ao padre e convidando-o a entrar na sala. Há mais de dois meses que não nos dá o prazer e a honra de vir abençoar as suas devotas.

 

— Deus as há de ter abençoado como merecem, respondeu o padre Sá.

 

Já a este tempo tinha o escravo acendido as arandelas da sala de visitas, onde o padre entrou logo depois, encostando a bengala a um canto e pondo o chapéu sobre uma cadeira. As meninas vieram beijar a mão ao sacerdote; D. Emiliana conduziu-o para o sofá; toda a família o rodeou.

 

Passei por aqui, disse o sacerdote, e lembrou-me vir saber se o nosso Pedro apanhou a grande chuva desta tarde.

 

— Toda, padre-mestre, respondeu o moço.

 

— Logo vi; teimou em vir apesar de lhe dizer que não tinha tempo de chegar a casa...

 

— Valeu-me o seu capote.

 

— Não havia de valer muito.

 

— Chegou, deveras, todo molhado, observou D. Emiliana. E uma vez que o sr. padre te pedia que ficasses, devias ter ficado.

 

— A resposta que ele me deu é que a senhora estaria assustada, supondo que algum desastre... Aprovei-o, quando lhe ouvi esta razão.

 

D. Emiliana olhou para o filho com ternura. Aquele olhar vingara-o da repreensão com que fora recebido. A conversa versou sobre assuntos gerais, mas todos de devoção e caridade. Tratou da próxima festa do Natal; veio a pêlo mostrar ao padre Sá a toalha que D. Emiliana pretendia oferecer para o altar de Nossa Senhora das Dores, rica toalha de linho com entremeio de crivo e babadinhos de renda, não bruxelas nem malines, mas obra toda das mãos da prendada devota. Devota, era-o ela no verdadeiro e puro sentido da palavra, e nunca se dera mal com isso.

 

Esgotados aqueles assuntos, o padre Sá disse a D. Emiliana que tinha de lhe falar sobre coisas de igual natureza, mas que pediam menos publicidade. A dona da casa fez retirar os filhos.

 

— Deixe ficar o Pedro, disse baixinho o padre; ele não é demais.

 

Ficaram os três. Dona Emiliana, cuja curiosidade estava aguçada, arregalou os olhos e preparou os ouvidos para saber que assunto era aquele que exigia conferência particular. Algum pecado seria, alguma culpa, embora venial, do seu querido Pedro? O padre Sá não lhe deu muito tempo às reflexões, porque, mal a porta da sala se fechou, concluiu uma pitada começada e falou nestes termos:

 

— D. Emiliana, conheço-a há alguns anos, e tenho-a sempre visto pontual no serviço de Deus, e zelosa no cumprimento dos seus deveres de cristã e católica.

 

— Espero em Deus que me não há de desamparar, disse D. Emiliana, curvando a cabeça.

 

— Não há de quê, ele nunca desampara os bons...

 

— Mas que será, reverendíssimo? Dar-se-á caso que o meu Pedro...

 

Dizendo isto, D. Emiliana voltou a cabeça para o filho, que lhe ficava à esquerda e tinha os olhos no chão.

 

— O seu Pedro, interrompeu o padre Sá, tem coração assaz largo para amar a duas mães; a senhora e a Igreja. A Igreja não obriga ninguém, mas aceita, chama e recebe os homens de boa vontade. Ora, eu tenho visto que há em seu filho tal ou qual tendência para a vida eclesiástica; estuda latim comigo, dou-lhe lições de teologia, que ele ouve com grande aproveitamento; pode seguir curso regular e estou que há de dar um bom padre. Está nas mãos de Deus e nas dele chegar a bispo.

 

As palavras do padre Sá causaram alguma estranheza em D. Emiliana, e a boa senhora não respondeu imediatamente. A educação que dera ao filho fora toda religiosa e pia; contudo, estava longe de supor-lhe tão claros sinais de vocação sacerdotal — isto quanto às antecedências. Quanto às conseqüências, não as pôde calcular logo; mas, além de recear que o filho não desse um bom sacerdote, como ela desejava que fosse, acrescia que tinha assentadas algumas idéias totalmente outras. Um seu irmão, comerciante de grosso trato, prometera-lhe admiti-lo na casa e fazê-lo sócio dentro de alguns anos. D. Emiliana era filha de negociante e viúva de negociante; tinha ardente desejo de continuar a dinastia comercial.

 

Ao cabo de alguns minutos de reflexão, respondeu ao padre Sá que teria imenso gosto em que o filho fosse consagrado ao serviço da Igreja, mas que, entretanto, era obrigada a consultar seu irmão, com quem planeara coisa diferente daquela.

 

— Conheço seu irmão, disse o padre, vi-o algumas vezes; estou persuadido de que dará resposta razoável.

 

— Nem lhe quero negar, continuou D. Emiliana, que não imaginava da parte de Pedro esse desejo de fazer-se padre...

 

— Pergunte-lho.

 

Pedro não esperou a pergunta; confessou que o padre Sá lhe dava lições de teologia e que ele gostava muito de as ouvir.

 

— Mas não quereria dizer a sua missa? perguntou o padre sorrindo benevolamente.

 

— Queria, articulou Pedro.

 

Aceitou-se que a resposta seria dada alguns dias depois; ficando igualmente aprovado um aditivo de Pedro para que, independente da resposta, continuassem as lições teológicas do padre Sá. D. Emiliana aceitou o aditivo com este popular axioma:

 

— O saber não ocupa lugar.

 

O padre Sá extraiu da caixa uma nova pitada e deu as boas noites à família, e mais as bênçãos do costume, sendo acompanhado até à porta pelas senhoras, e até à Gamboa, onde morava, pelo filho de D. Emiliana.

 

— Não quero violência, dizia em caminho o padre; examine-se ainda uma vez e diga-me depois se é resolução sua tomar ordens. O que eu quero é que me saia padre moral, instruído e religioso, entendeu? Parece-me que a sua vocação é essa, e cada um de nós deve seguir a vocação que Deus lhe dá.

 

Pedro deixou o padre Sá à porta da casa e voltou-se para a Rua do Livramento. Da praia, via a lua bater no mar, e ergueu os olhos para o céu coalhado de estrelas. A fronte ficou pensativa; e o moço parou durante alguns instantes. O que ele pensou, naquela ocasião, estando à beira do seu destino, não sei. Se a lua soube, não o segredou a pessoa nenhuma.

 

III

 

O padre Sá subiu as escadas da casa em que morava, depois de fechar a porta da rua, recebeu uma vela das mãos de um preto, seu criado, e foi direito ao gabinete, onde tinha os livros, a escrivaninha, uma rede e alguns móveis mais. Não tirou a batina; era o seu trajo usual, dentro ou fora de casa; considerava-a parte integrante da pessoa eclesiástica.

 

O padre Sá tinha cinqüenta anos; era de estatura mediana, calvo, com alguns cabelos raros e brancos na nuca em volta da cabeça. Os olhos eram azuis, de um azul desmaiado, e ainda com muita luz, mas uma luz suave e penetrante, que dominava e atraía como o sorriso que lhe pairava freqüente nos lábios. Das palavras que lhe ouvimos, no capítulo antecedente, não conclua o leitor que o padre Sá não tinha alguma hora de bom humor na vida. Sua índole era jovial; mas ele sabia conciliar a natureza com a austeridade do cargo. Ria, e amiúde, mas um riso honesto e paternal, que era um encanto mais no sacerdote.

 

Sentou-se o padre em uma vasta cadeira rasa, tirou de cima da mesa o breviário e leu durante alguns minutos. Deram as nove no relógio da casa; veio o criado saber se o padre queria tomar chá; e recebendo resposta afirmativa, voltou pouco depois, trazendo-lho em uma larga bandeja. O chá era para duas pessoas. Onde está o companheiro do padre? perguntaria a leitora, se não visse apontar à porta da saleta a figura risonha e esbelta de uma moça.

 

— Sua bênção, titio, disse a moça caminhando apressadamente para ele; — demorou-se mais do que me disse. Com um ar tão úmido! Aposto que ainda não descalçou os sapatos?

 

— Não, Lulu, nem é preciso, respondeu o padre Sá, pegando-lhe na mão. Estou afeito a temporais e umidades. Anda fazer o chá, que é tempo. Nove horas, não?

 

— Deram agora.

 

Lulu aproximou-se da mesa e preparou o chá para o velho padre que a contemplava satisfeito e feliz.

 

— Veja se está bom de açúcar, disse ela entregando-lhe a xícara.

 

— Há de estar, como está sempre, respondeu o tio; tanto te acostumaste a servir-me, que nunca há açúcar, de mais ou menos. Excelente! continuou ele, levando a colherinha à boca. Agora faze o teu chá e ouve uma notícia.

 

Lulu preparou uma xícara de chá para si e sentou-se do outro lado da mesa, diante do padre. Era uma deliciosa figurinha delgada e quebradiça cintura de vespa, mãos de criança e sobre tudo isto, uma voz angelical e doce, que adormecia o coração. Adormecia é a expressão verdadeira; podia-se viver ao pé dela sem que o coração pulsasse de amor, tão acima e fora da realidade parecia aquela amável criatura. Não havia fogo em seus olhos claros e serenos; havia luz somente, luz branda como a de luar, que se derramava por todo o rosto, alvo e levemente corado. Os cabelos, penteados em bandós, iam juntar-se atrás da cabeça e caíam em duas tranças finas, atadas na ponta por laços de fita azul. Azul era a cor do cinto que trazia destacando sobre o branco do vestido de cassa, cortado e trabalhado com extrema simplicidade. Nenhum enfeite mais; e quadrava-lhe tanto aquela ausência de adornos, que parece lhe destoaria o menor deles que se lembrasse de pôr.

 

O padre Sá admirou durante alguns instantes a sobrinha, não ostensivamente, mas à socapa, com uma reserva e discrição, cujo sentido era fácil de adivinhar. Ele não queria acordar-lhe o sentimento da vaidade, que faria desmerecer-lhe a natural beleza, cujo maior encanto era ser inconsciente e singela. Além disso, e antes disso, a alma vaidosa ficaria mais perto do pecado; e o padre Sá tinha posto todo o seu zelo em educar aquela alma na prática das virtudes cristãs.

 

— A tia Mônica onde está? perguntou o velho sacerdote, depois de alguns instantes.

 

— Deitou-se hoje mais cedo, respondeu a moça, dói-lhe a cabeça, creio eu. Mas que notícia é a que me quer dar, titio?

 

— Curiosa! murmurou o tio sorrindo.

 

— A culpa é sua.

 

— Uma notícia agradável a Deus, disse o padre reassumindo o seu ar grave; um servo do altar alcançado por mim. O Pedro Mendes...

 

— Quer ser padre? interrompeu a moça admirada.

 

— Parece-me que sim. Há algum tempo notei nele certa vocação eclesiástica; ouve-me com tanta atenção e respeito, é tão curioso das coisas sagradas, aprende tão depressa as lições que lhe dou nas minhas horas vagas, que me pareceu ver nele um bom levita do Senhor. Ontem, falei-lhe francamente nisso; e obtive boa resposta... Deita mais chá.

 

O padre estendera a xícara; a moça obedeceu prontamente.

 

— Mas parece tão criança, para padre! observou Lulu, restituindo a xícara ao tio.

 

— Oh! mas daqui até lá! Pensas que eu tomei ordens com esta calva e estes cabelos brancos ? Certamente que ele não vai tomar ordens amanhã. A resposta que obtive foi que tinha vontade de servir a Igreja; fiquei de falar à mãe, e agora mesmo venho de lá!

 

— Ah!

 

— D. Emiliana não me deu resposta definitiva, mas creio que não haverá obstáculo sério. Imagina tu a minha satisfação. Os que são verdadeiramente dedicados ao serviço do altar, como eu, têm um gosto infinito em colher bons servidores para ele, almas cândidas, vocações sinceras, fortes e puras! Se me sai naquele um pregador! Um Sampaio! um Mont'Alverne! Se me sai um bispo! Talento tem ele; muita compreensão e vontade de saber...

 

O padre Sá continuou a louvar o futuro colega e a falar das vantagens da vida eclesiástica, a melhor de todas, dizia ele, se há vocação. Lulu tinha acabado o chá e ouvia-o com muito menos interesse do que a princípio. Educada pelo tio, compreendia e aprazia-se naquele gênero de conversação, contudo, era necessário que ela não durasse muito para poder estar atenta. O tio percebeu finalmente, e tratou de coisas menos austeras. Veio um tabuleiro de damas, jogo inocente em que os dois concorriam às vezes alguns minutos. Jogaram até às dez horas; despediram-se e foram dormir.

 

— Ah! disse o padre, depois de abençoar a sobrinha; sabes se o Alexandre estará doente?

 

— Não sei.

 

— Há dois dias que não aparece; é preciso mandar saber dele amanhã. Bela alma, aquele rapaz!

 

Lulu corou um pouco; beijou-lhe outra vez a mão e saiu. O tio acompanhou-a com olhos namorados, e ficou durante algum tempo concentrado e pensativo. Depois murmurou em latim este versículo dos Cantares:

 

Eu me assentei debaixo da sombra daquele a quem tanto tinha desejado; e o seu fruto é doce à minha garganta.

 

IV

 

Lulu retirou-se à sua alcova, fechou a porta, e preparou-se para dormir. Antes, porém, de despir-se, foi direito ao toucador, abriu uma gavetinha, tirou de dentro um bilhetinho e releu-o. O bilhete dizia assim: "Prima. Ainda hoje não posso ir lá. Deus Nosso Senhor a abençoe e guarde. Seu Alexandre".

 

Não havia muito que reler neste bilhete, que naturalmente estava decorado pela formosa prima. Ela o releu, contudo, não uma, mas três vezes; depois guardou de novo, abriu a janela que dava para a praia e deixou-se ir ao sabor das suas reflexões. Naturalmente, eram reflexões de alma saudosa; mas eram ainda outra coisa, dúvida, receios, tal ou qual despeito de moça bonita e namorada, enfim ciúmes, ciúmes que ela sentia roerem-lhe o coração.

 

— Que razão terá ele para não vir? dizia ela. Pouco caso, ou talvez...

 

O espirito não chegou a formular o pensamento todo; não era preciso; estava escrito no coração. Lulu agitou impaciente a ponta do pé; mordeu o lábio, fechou a janela. Sentou-se, depois, para escrever um bilhete; escreveu-o e rasgou-o quase imediatamente. Enfim, deitou-se. O sono não veio logo; a sombra daquele esquivo Alexandre ocupava-lhe todo o pensamento. Durante uma hora, a moça rolou inutilmente na cama; chamou-se tola a si mesma, insensata, e boa demais. Ouviu dar meia-noite; enfim, dormiu.

 

A aurora seguinte raiou límpida e bela. O padre Sá acordava cedo; fazia as suas orações; e lia depois até a hora do almoço, se porventura não tinha alguma missa. Nesse dia, teve missa; e às sete horas, saiu de casa sem ver a sobrinha, o que era raríssimo, porque a moça levantava-se igualmente cedo. A noite, porém, fora mal dormida; Lulu acordou tarde e doente. Quando saiu do quarto batiam oito horas.

 

A doença era uma enxaqueca moral, que se curou alopaticamente com a esperança de Alexandre. Às oito horas e meia, voltou o padre Sá, pelo braço de um rapaz de vinte anos, que era nem mais nem menos o Alexandre de que se trata.

 

— Cá está o mariola, disse o padre abençoando o sobrinho; foi ouvir a minha missa, evitando assim o castigo que mereceu com toda a certeza, e de que só o pôde livrar a sua piedade religiosa. Já não há sobrinhos; há uns peraltas que tratam os tios como se fossem indiferentes.

 

— Não diga isso! protestou Alexandre.

 

— Nem digo outra coisa, insistiu o padre. Dois dias! Verdade é que a companhia de um velho padre rabugento...

 

— Prima, faça calar titio, suplicou o moço com um leve sorriso que imediatamente se lhe apagou.

 

— A maneira mais segura de fazer-me calar é mandar pôr o almoço.

 

— Está na mesa.

 

— Já!

 

— Ou quase. Dei as ordens necessárias apenas o vi de longe.

 

Lulu concentrou no coração toda a alegria que lhe causava a presença do primo; o rosto mostrava ressentimento e frieza. Alexandre não pareceu notá-lo. Aceitou o almoço que o tio lhe ofereceu, sentando-se ao lado deste e em frente da prima.

 

O rosto de Alexandre, sem embargo do seu ar juvenil, tinha certa austeridade, não comum em tão verdes anos. Os olhos eram modestos e repousados. Toda a figura estava em oposição com a viveza natural da mocidade. O tio amava-o justamente por lhe ver aquela gravidade precoce.

 

— Cada idade, dizia ele, tem o seu ar próprio; mas o mais perfeito moço é aquele que, às graças juvenis, reúne a seriedade e a reflexão da idade madura.

 

Durante alguns instantes, ficaram sós os dois primos. Houve um intervalo de silêncio, em que ambos pareciam acanhados. Alexandre foi o primeiro que falou:

 

— Recebeu ontem o meu bilhete? disse ele.

 

— Recebi.

 

— Tenho andado muito ocupado estes dias.

 

Lulu abriu um sorriso de amorável escárnio, se estes dois termos podem estar juntos, mas em todo o caso aí ficam, para exprimir uma coisa melhor de entender que de dizer. Era escárnio, porque a moça achava ridícula a razão dada pelo primo; e era amorável, porque não vinha eivado de ódio ou desprezo, mas de certa ternura e misericórdia. Escárnio de namorada, que já perdoou tudo ou não tarda a perdoar.

 

Alexandre nada respondeu ao sorriso da moça; estavam à mesa; começou a contar os fios da toalha e a moça a brincar com um palito, toalha e palito que eram os compassos da situação. Mas o palito quebrou-se entre os dedinhos raivosos da moça, e a vista de Alexandre turvou-se de tanto olhar para o tecido. Afinal, foi Lulu quem rompeu o silêncio.

 

— Continuam ainda os seus trabalhos? disse ela com ironia.

 

— Agora não.

 

— Ah!

 

— Agora estou mais livre.

 

— Tem casado então muita gente nestes últimos dias?

 

A pergunta da moça aludia ao emprego de Alexandre, que era na câmara eclesiástica. Ocupava o moço um lugar de escriturário naquela repartição, lugar que obteve por influência do tio.

 

Lulu não esperou resposta do primo; ergueu-se logo da mesa e Alexandre imitou-a.

 

— Está mal comigo? perguntou ele com meiguice.

 

— Estou, respondeu a prima, com um modo tão benévolo e doce que desdizia da sequidão da resposta.

 

Efetivamente, a moça estava contentíssima. Desde que o vira, acreditou logo que só por motivo forte deixaria ele de vir ali. Antes de se separarem, as mãos tocaram-se, e os olhares do mesmo modo, e tudo acabou num sorriso, amoroso da parte de Lulu, acanhado e severo da parte de Alexandre.

 

O padre Sá esperava o sobrinho no gabinete.

 

— Sabes que fiz uma conquista? disse ele logo que o viu entrar. E referiu o pedido feito a D. Emiliana, a disposição de Pedro para a vida eclesiástica, a quase certeza que tinha de obter o consentimento da mãe, notícia que Alexandre ouviu com muita atenção e interesse, confessando no fim que o caso era inesperado para ele.

 

— Não o era para mim, respondeu o tio; o Pedro tem verdadeira vocação para a vida da Igreja e caiu em boas mãos. Apenas receber a resposta de D. Emiliana darei todos os passos necessários para que ele siga estudos regulares, e os meus dois sonhos...

 

O padre Sá estacou. Tinha um livro aberto nas mãos, fez descair os olhos na página, como para continuar a leitura; mas nem a leitura continuou, nem o sobrinho lhe deu tempo.

 

— Os seus dois sonhos? repetiu ele como pedindo o resto da frase.

 

O tio fechou o livro.

 

Houve um curto instante de silêncio entre ambos. O padre parecia hesitar na resposta que o sobrinho lhe pedia, e que desejava dar. Tinha a tapar-lhe a boca certa ordem de conveniências; mas o padre queria explicar tudo, e rapidamente refletiu que no que ia dizer nada havia que, em rigor, se pudesse censurar.

 

— Os meus sonhos são dois, disse ele enfim. O primeiro é que o Pedro tome ordens; o segundo...

 

Estacou de novo sorrindo; mas desta vez foi interrogado somente pelos olhos do sobrinho.

 

— Dize-me primeiro... amas a tua prima ? Não precisas corar; é amor legítimo, santo e puro. Os meus dois sonhos são esses; fazer do Pedro um sacerdote, e de ti marido de minha Lulu. Cada um seguirá a sua vocação; tu serás excelente esposo, e ele excelente padre.

 

Alexandre ouviu calado a explicação do tio. Este levantou-se, um pouco acanhado com o silêncio do sobrinho, e foi colocar o livro na estante. Ia repetir a interrogação, quando Lulu assomou à porta. O rumor dos passos da moça fez estremecer Alexandre, e o acordou da meditação em que ficara. O padre pôs os olhos na sobrinha, uns olhos ternos e paternais; chamou-a a si, sem lhe dizer nada e apertadamente a abraçou. Lulu não compreendeu logo o motivo daquela expansão do tio; mas o silêncio acanhado de Alexandre mais ou menos lhe deu idéia do que se havia passado. Sorriu então, e toda a sua alma se lhe entornou dos olhos em um olhar de agradecimento e de amor.

 

V

 

Naquela mesma tarde, dirigiu-se Pedro à casa do padre Sá, levando na ponta da língua uma lição latina que o padre lhe dera na véspera, e saboreando de antemão os aplausos do mestre. Ia lépido e risonho, pela Gamboa fora, com a alma ainda mais azul do que estava o céu naquele momento, e o coração a bater-lhe tão forte como as vagas na areia da praia. O padre Sá, se o visse naquele estado, se pudesse adivinhar todo o júbilo daquele coração, daria graças ao céu pela rara pérola que lhe fora dado achar para a coroa mística da Igreja.

 

Entretanto, o discípulo tinha outra cara, quando ali entrou. A comoção ou acanhamento ou o que quer que fosse tirava-lhe o tom expansivo do semblante.

 

— Ora, venha cá, meu futuro bispo! exclamou o padre Sá, logo que o viu entrar; — não core que ainda o há de ser, se tiver juízo e Deus o ajudar. Resposta, nenhuma?

 

— Nenhuma.

 

— Oh! mas eu estou certo de que há de ser favorável. Seu tio é homem de juízo.

 

Pedro fez um gesto de assentimento, e estendeu a mão à sobrinha do padre que entrava nesse momento no gabinete. A moça assistiu à lição de Pedro; e a sua presença foi antes prejudicial que benéfica. O discípulo sentiu-se acanhado, esqueceu o que sabia, e recebeu alguns conselhos paternais do padre, sem ousar dar nenhuma desculpa.

 

— Não o censure, titio, disse a moça; fui eu a causa de alguns esquecimentos do sr. Mendes; devia ter-me retirado.

 

— Oh! não! murmurou Pedro.

 

— Devia.

 

— Confesso que ontem não pude estudar a lição, disse Pedro com voz trêmula.

 

— Basta, declarou enfim o padre; sair-se-á melhor amanhã.

 

Havia já dois meses que o filho de D. Emiliana freqüentava a casa do padre Sá, e ia regularmente receber as lições que ele lhe dava. A compostura do moço era exemplar; o gosto com que o ouvia, a facilidade com que retinha o que ele lhe ensinava, a vocação enfim que o padre lhe achou, foram outros tantos laços que mais intimamente os prenderam, um ao outro. Além daquelas qualidades, Pedro era bom conversador, dotado de maneiras afáveis, e tinha a pachorra (dizia o padre Sá) de aturar uma companhia aborrecida como a dele.

 

Verdade é que a companhia era aumentada com a de Lulu, que, se raras vezes assistia às lições do moço, vinha conversar com eles o resto do tempo, bem como Alexandre que um dia teve igualmente idéia de acompanhar o curso particular do padre Sá. O padre deliciava-se com aquele quadro; e as suas lições de filosofia ou de história sacra, de teologia ou de latim, saíam-lhe menos da cabeça que do coração.

 

É de crer que se o padre Sá soubesse que o seu discípulo Pedro, futuro bispo, gastava alguma hora vaga na leitura do Gil Brás ou outros livros menos piedosos, é de crer, digo eu, que lhe fizesse amigável repreensão; mas o padre nada via nem sabia; e o discípulo não ia mal de todo. Demais, um por um ia-lhe Pedro lendo grande número de seus livros, que eram todos de boa doutrina e muita piedade. Ultimamente emprestara-lhe um Santo Agostinho; Pedro devorara-o e deu boa conta de suas impressões. A alegria do padre era sem mescla.

 

Naquela tarde, não houve trovoada; Pedro conservou-se lá até a noite. Às ave-marias chegou Alexandre; os dois moços estavam ligados pela afeição do mestre e tal ou qual analogia de sentimentos. Alexandre deu os parabéns a Pedro, que os recebeu com um modo modesto e grave. Saíram juntos, mau grado os olhares de Lulu, que pediam ao primo ficasse alguns minutos mais.

 

Iam calados a princípio; ao cabo de alguns minutos, Pedro rompeu o silêncio; louvou a alma, os sentimentos e as maneiras do padre, a felicidade que se respirava naquela casa, a boa educação de Lulu, finalmente, tratou do seu futuro e da carreira que se lhe ia abrir.

 

Alexandre ouviu-o calado, mas não distraído; concordou em tudo com ele, e quando veio o ponto da carreira eclesiástica, perguntou:

 

— Aceita essa profissão por seu gosto?

 

Pedro hesitou um minuto.

 

— Aceito, disse enfim.

 

— Pergunto se por seu gosto, tornou Alexandre.

 

— Por meu gosto.

 

— É vocação?

 

— Que outra coisa seria? observou Pedro.

 

— Tem razão. Sente um pendor irresistível para a vida da Igreja, uma voz interior que lhe fala, que o atrai violentamente...

 

— Como o amor.

 

— Oh! deve ser mais forte do que o amor! emendou Alexandre.

 

— Deve ser tão forte. O coração humano, quando alguma força o solicita, qualquer que ela seja, creio que recebe igual impressão. O amor é como a vocação religiosa; como qualquer outra vocação, exerce no homem o mesmo poder...

 

— Não, não creio, interrompeu Alexandre. A vocação religiosa, por isso mesmo que chama o homem a uma missão mais elevada, deve exercer influência maior. O amor divino não pode comparar-se ao amor humano. Soube de algum sacrifício igual ao dos mártires da fé?

 

Pedro refutou, como pôde, a opinião do companheiro; e este redargüiu com argumentos novos, falando ambos com igual calor e interesse. A conversa parou, quando ambos chegaram à porta da casa de dona Emiliana; Pedro entrou e o outro seguiu caminho.

 

D. Emiliana não pôde atinar com a razão por que o filho naquela noite parecia tão preocupado. A verdade é que Pedro tomou o chá distraidamente; não leu nem conversou, retirou-se cedo para o quarto, e só muito tarde conseguiu dormir.

 

— Vou hoje decidir o teu negócio, disse-lhe D. Emiliana no dia seguinte.

 

— Ah!

 

— Teu tio vem cá hoje, continuou ela. Entender-me-ei com ele...

 

— Sim, o amor divino...

 

— O amor divino? repetiu D. Emiliana espantada.

 

— E o amor humano, continuou Pedro.

 

— Que é?

 

— A vocação religiosa é superior a qualquer outra.

 

— Compreendo; tens razão.

 

Pedro só ouvira estas últimas palavras da mãe; e olhou para ela com ar de quem saía de um estado de sonambulismo. Procurou lembrar-se do que acabava de dizer; e só muito confusamente repetiu mentalmente as palavras vocação religiosa, amor divino e amor humano. Viu que a conversa da noite anterior lhe ficara gravada na memória. Entretanto, respondeu à mãe que efetivamente o estado eclesiástico era o melhor e mais puro de todos os estados.

 

Suas irmãs aplaudiram de coração a idéia de fazer-se padre o rapaz; e o irmão mais moço aproveitou o caso para manifestar o desejo de ser sacristão, desejo que fez rir a toda a família.

 

Restava a opinião do tio, que se não fez esperar e foi de todo o ponto conforme com o gosto dos demais parentes. Estava padre o moço; só lhe restavam os estudos regulares e a sagração final.

 

A notícia foi recebida pelo padre Sá com verdadeira satisfação, tanto mais sincera quanto que recebeu a resposta de dona Emiliana em momentos dolorosos para ele. Sua sobrinha jazia na cama; fora acometida de uma intensa febre de caráter grave. O velho padre deu um apertado abraço no moço.

 

— Oh! eu bem sabia que não havia nenhuma dúvida! exclamou ele.

 

Pedro soube que a moça estava enferma, e empalideceu quando o padre lhe deu esta triste notícia.

 

— Doença de perigo? perguntou o futuro seminarista.

 

— Grave, respondeu o padre.

 

— Mas ainda ontem...

 

— Ontem estava de perfeita saúde. Era impossível contar com semelhante acontecimento. Entretanto, que há mais natural? Seja feita a vontade de Deus. Estou que ele há de ouvir as minhas orações.

 

O padre Sá, dizendo isto, sentiu uma lágrima borbulhar-lhe nos oLhos, enxugou-a disfarçadamente. Contudo, Pedro viu-lhe o gesto e abraçou-o.

 

— Descanse, não há de ser nada, disse ele.

 

— Deus te ouça, filho!

 

VI

 

A tia Mônica, de quem se falou em um dos capítulos anteriores, era uma preta velha, que havia criado a sobrinha do padre e a amava como se fora sua mãe. Era liberta; o padre deu-lhe a liberdade logo que morrera a mãe de Lulu, e Mônica ficou servindo de companheira e protetora da menina, que não tinha outro parente, além do padre e do primo. Lulu nunca adoecera gravemente; ao vê-la naquele estado, a tia Mônica ficou desatinada. Passado o primeiro momento, foi um modelo de paciência, dedicação e amor. Velava as noites junto da cabeceira da doente, e apesar de estar toda entregue aos cuidados de enfermeira ainda lhe sobrava tempo para tratar da direção da casa.

 

A doença foi longa; durou cerca de quinze dias. A moça ergueu-se enfim da cama, pálida e abatida, mas livre ele todo o mal. A alma do tio sentiu-se renascer. A certeza dera-lhe vida nova. Ele padecera muito durante aqueles quinze mortais dias; e Pedro fora testemunha de sua longa aflição. Não foi só testemunha impassível, nem o consolou com palavras triviais; tomou boa parte nas dores do velho, fez-lhe companhia durante as noites de maior perigo.

 

Alexandre não foi menos assíduo nem menos dedicado à família; seu rosto austero e frio não revelava a dor íntima; mas ele sentia, decerto, a doença da prima e a aflição do padre. Suas consolações eram antes religiosas do que puramente humanas.

 

— Descanse que ela há de viver, dizia ele; mas dado que o Senhor a leve, podemos ter a certeza de que leva um anjo mais para o coro celeste. De lá veio, para lá tornará, tão puro como os que rodeiam o trono de Deus.

 

Pedro repeliu esta idéia.

 

— Muitos são os anjos que estão no céu — dizia; e poucos, raríssimos, os que Deus consente que desçam a este mundo. Por que há de levar aquele, que é a felicidade e a glória de nosso bom mestre?

 

As palavras de ambos entravam no coração do padre; mas por mais cristão que ele fosse, e era-o muito, as do filho de dona Emiliana, egoísmo da afeição humana, dominavam por instantes o sentimento religioso e a resignação cristã.

 

No dia em que a moça foi declarada sem perigo, Pedro chegara à Gamboa, não estando o padre em casa. A tia Mônica deu-lhe a agradável notícia. O rosto do moço expandiu-se; sua alegria fê-lo corar.

 

— Livre! exclamou ele.

 

— Livre.

 

— Quem o disse ?

 

— O doutor...

 

— Ela está mais animada?

 

— Muito animada.

 

— Oh! diga-lhe de minha parte que dou graças a Deus pelo seu restabelecimento.

 

Cinco dias depois, Lulu saiu do quarto. A figura delicada da moça parecia mais bela e adorável depois da enfermidade. Um largo roupão branco envolvia-lhe o corpo emagrecido pela doença; os olhos amortecidos e a palidez do rosto davam-lhe um aspecto delicado e triste ao mesmo tempo. Vivia a moça; e não só a saúde voltara, mas com a saúde uma alegria não sentida até aquele dia, alegria toda filha do regozijo das pessoas que a amavam, da dedicação e zelo de que fora objeto durante os dias de perigo.

 

A convalescença foi rápida; durou cerca de oito dias. Durante esse tempo, freqüentou Pedro a casa do mestre, como nos dias anteriores, sem nada lhe perguntar acerca de seus próprios negócios, não só porque era indiscrição fazê-lo em momento como aquele, e quando o padre apenas começava a saborear o restabelecimento da sobrinha, como porque esta fazia que as horas passassem depressa. Não se tratam negócios sérios sem tempo, e Pedro não tinha tempo.

 

Lulu não podia ler; e nem sempre a entretinham as histórias da tia Mônica. Pedro lia para ela ouvir alguns livros morais que achava na estante do padre, ou algum menos austero, ainda que honesto, que de casa levava para aquele fim. Sua conversa, além disso, era extremamente agradável; a dedicação sem limites. Lulu via nele uma criatura boa e santa; e o hábito de todos os dias veio a torná-lo necessário.

 

No primeiro dia em que ela pôde chegar à janela, Pedro arrastou para ali uma poltrona de couro, deu o braço à moça e fê-la sentar-se. Eram onze horas da manhã; a atmosfera estava limpa e clara e o mar tranqüilo. A moça respirou a largos haustos, enquanto Pedro ia buscar o banquinho em que ela pousasse os pés.

 

— Pensei nunca mais ver isto, disse ela, agradecendo-lhe com um sorriso que fez baixar os olhos ao moço.

 

— Não fale assim! suplicou este depois de algum tempo.

 

— Agora não há perigo; estou boa. Haviam de sentir a minha morte, creio; mas eu sentiria igualmente se deixasse a vida. Morrer moça deve ser triste!

 

Pedro pediu-lhe que mudasse de assunto, ameaçando-a ele ir dizer tudo ao tio.

 

— Não é preciso! exclamou uma voz.

 

Voltaram-se.

 

Era o padre que entrara na sala desde algum tempo e ouvia a conversa dos dois.

 

— E não lhe parece que tenho razão? perguntou Pedro.

 

— Toda. Agora só se deve pensar na vida.

 

— Vê? disse o moço, voltando-se para Lulu.

 

— O Alexandre já veio? perguntou o padre Sá, depois de beijar a testa à sobrinha e abençoá-la como de costume.

 

Lulu ficou séria.

 

Aquela pergunta avivou-lhe a tristeza que lhe causava a ausência do primo, ausência de dezoito horas, o que era enorme, se atendermos ao estado da moça e às relações de suas almas. O tio notou-lhe a impressão e ficou igualmente sério.

 

— Nem tudo sai à medida dos nossos desejos, pensou ele; não verei realizados os meus dois sonhos! Se sai dali um peralta...

 

O pensamento foi interrompido pela entrada de Alexandre.

 

Lulu sorriu de contentamento ao ver o primo; mas reprimiu aquela expressão para de algum modo puni-lo do esquecimento em que a deixara.

 

O velho padre foi menos diplomata; recebeu-o com a alma nas mãos.

 

Alexandre não reparou nem na dissimulação dela, nem na expansão dele; seus olhos foram direitos ao filho de D. Emiliana. Pedro sustentou o olhar com tranqüilidade; e se houvesse menos comoção da parte das testemunhas daquele olhar, veriam que ambos pareciam querer sondar um ao outro.

 

A moça esperou que o primo, em desconto de seus pecados, a tratasse com a ternura a que o seu coração tinha jus; mas Alexandre parecia preocupado; e ela entregou-se toda à conversação do outro. Uma canoa que cortava as águas tranqüilas do mar serviu de pretexto e começo à palestra. O que eles disseram da canoa, do mar, da vida marítima, e mais idéias correlativas dificilmente caberia neste capítulo, e com certeza exigia alguns comentários, visto que algumas frases tinham tanto com o assunto como o doge de Veneza. Alexandre contemplava-os sem morder o lábio com raiva, nem dar o menor sinal de despeito. Seu rosto marmóreo não revelava o que se passava no coração. Não tardou que ele próprio interviesse na conversa. O padre Sá aproveitou a ocasião para chamar o filho de D. Emiliana à explicação de um ponto teológico. Pedro afastou-se do grupo com dificuldade; mas a conversa entre os dois morreu, como lâmpada a que faltou óleo.

 

VII

 

Lulu notou a esquivança do primo e a frieza que lhe mostrava. Certo é que nunca lhe achara a expansão, nem a ternura, que era natural exigir de um namorado. Alexandre era sóbrio de palavras e seco de sentimentos. Os olhos com que a via eram sérios, sem flama, sem viveza — “olhos de imagem”, dizia-lhe ela um dia gracejando. Mas se ele fora sempre assim, agora parecia mais frio do que nunca, e a moça procurou saber a causa daquela agravação de impassibilidade.

 

— Ciúmes, pensou ela.

 

Ciúmes de Pedro, devia dizer; mas nem ela nem a leitora precisam de nada mais para completar o pensamento. De quem seriam os ciúmes senão daquele rapaz, que se mostrava assíduo, afável, dedicado, que a tratava com esmero e afeição?

 

A moça riu da descoberta.

 

— Um quase padre! exclamou ela.

 

Daí a poucos dias, o padre Sá disse ao filho de D. Emiliana que os seus negócios iam perfeitamente e que dentro de pouco tempo devia dizer adeus a quaisquer ocupações estranhas aos preparatórios eclesiásticos.

 

— Faça exame de consciência, disse a moça, que estava presente à conversa dos dois; e prepare-se para...

 

— Para casar? perguntou sorrindo o tio.

 

Lulu corou ouvindo aquelas palavras. Sua idéia não era casamento; era um gracejo fúnebre e tão descabido que a frase lhe morrera nos lábios. O que ela queria dizer era que Pedro se preparasse para rezar-lhe o responso. A interrupção do tio desviou-lhe o pensamento do gracejo para dirigi-lo ao primo. Corou, como disse, e refletiu um instante.

 

— Oh! se ele me amasse com o mesmo ardor com que este ama a Igreja! pensou ela.

 

Depois:

 

— Falemos de coisas sérias, continuou ela em voz alta. Desejo vê lo em breve cantar uma missa ao lado de titio.

 

Na noite desse mesmo dia, Alexandre foi à casa do padre Sá. Ia preocupado e pouco se demorou. O tio notou-lhe a diferença e ficou apreensivo. Conjecturou mil coisas para aquela mudança do sobrinho, sem atinar qual delas era a verdadeira. Lulu ficou igualmente triste; não digo bem, havia tristeza, mas havia outra coisa também, havia despeito; e menos o amor do que o amor-próprio começava a sentir-se ofendido.

 

Pedro aproveitou a primeira ocasião em que o padre saiu da sala para lhe perguntar o motivo daquela súbita melancolia.

 

A moça estremeceu como se acordasse sobressaltada de um sono.

 

— Não ouvi, murmurou ela.

 

— Perguntava-lhe por que motivo ficou assim pensativa.

 

— Um capricho, respondeu a moça.

 

— Um capricho satisfaz-se.

 

— Nem todos.

 

— Quase todos. Não pede decerto a lua?

 

— A lua... não, respondeu ela procurando sorrir e esquecer; mas alguma coisa que tem relação com ela.

 

— Diga o que é.

 

— Estava desejando... que o senhor ficasse esta noite ali fora a contemplar a lua e a fazer-lhe versos, disse ela rindo. Nunca fez versos?

 

— Um hexâmetro apenas.

 

— Não sei o que é; mas não importa. Era capaz disso?

 

— Suprima os versos e a coisa é fácil, respondeu Pedro sorrindo.

 

— Fácil! exclamou Lulu.

 

E depois de alguns instantes de silêncio:

 

Não era bem isso que eu desejava, continuou ela; mas alguma coisa análoga, algum sacrifício... tolice de moça...

 

Lulu ergueu-se e foi à janela para disfarçar a comoção. Pedro deixou-se ficar na cadeira. Daí a pouco, ouviram-se os passos do padre Sá; o moço pegou num livro, abriu-o ao acaso e entrou a ler. A tristeza de Lulu foi observada pelo tio, que assentou de si para si convidar o sobrinho a uma conferência, resoluto a conhecer o estado das coisas.

 

— Amam-se, não há dúvida, pensava o velho; mas há alguma coisa, decerto, que não posso descobrir. É necessário sabê-lo.

 

Pedro demorou-se em casa do padre até depois de nove horas. A moça presidiu ao chá com a graça habitual, e um pouco mais livre das comoções daquela noite. Acabado o chá, Pedro despediu se do velho sacerdote e da sobrinha. A moça acompanhou-o até à porta do gabinete, enquanto o tio preparava o tabuleiro das damas para a partida de costume.

 

— Boa noite, disse Lulu apertando a mão ao filho de D. Emiliana.

 

— Boa noite, respondeu ele.

 

E mais baixo:

 

— Verá hoje mesmo que lhe satisfaço o capricho.

 

Lulu ficou estupefata ao ouvir aquelas palavras; mas não pôde pedir maior explicação, não só porque o tio ficava a poucos passos, como porque o moço só lhe dera tempo de ouvi-lo; saíra imediatamente.

 

A partida de damas foi aborrecida e não durou muito. Ambos os contendores estavam preocupados de coisas sérias. Às nove e meia, despediram-se para ir dormir.

 

— Vê se o sono te dá melhor aspecto, disse o padre Sá dando a mão a beijar à sobrinha.

 

— Estou hoje mais feia que de costume?

 

— Não; mais triste.

 

— Não é tristeza, é cansaço, respondeu a moça; dormi pouco a noite passada.

 

Despediram-se.

 

Lulu, apenas entrou no quarto, correu à janela; fê-lo com a curiosidade vaga de saber se o filho de D. Emiliana realizara a promessa de satisfazer-lhe o capricho. A praia estava deserta.

 

— Naturalmente! disse ela consigo. Para obedecer a uma tolice minha era necessário cometer tolice maior.

 

Lulu entrou, destoucou-se, deixou os vestidos, envolveu-se em um roupão e sentou-se ao pé da janela. Ali ficou cerca de meia hora absorvida em seus pensamentos; a figura de Alexandre flutuava-lhe no espírito, confundindo-se às vezes com a de Pedro. Ela comparava a assiduidade de um com a frieza do outro; frieza que ela atribuía ora a um sentimento de ciúme, ora ao amortecimento da antiga afeição. Esta mesma afeição a moça entrou a analisá-la, a estudá-la no passado sem lhe achar intensidade igual à sua. Nunca duvidara do amor de Alexandre; mas agora que o dissecava reconhecia que era um amor grave e refletido demais, sem aquela exuberância própria da mocidade e do coração.

 

Lulu não reparava que esta mesma segurança de vista com que apreciava o estado do coração do primo era prova de que o seu estava menos alienado pela paixão. O que ela de todo ignorava era que aquele primeiro afeto, nascido do costume, nutrido da convivência, era menos espontâneo e irresistível do que parecia. Suas alegrias e tristezas não vinham das raízes do coração, não lhe estremeciam a alma, nem a cobriam de luto.

 

Nisto não pensava ela; mas começou-o a sentir naquela noite, e pela primeira vez o coração pediu alguma coisa mais do que um afeto mal sentido e mal correspondido.

 

No meio dessas sensações vagas, sonhos indecisos, aspirações e ânsias sem objeto, ergueu-se a moça disposta a recolher-se. Ia cerrar as venezianas da janela, quando viu um vulto na praia, a passear lentamente, parando às vezes de costas para o mar. Apesar da lua, que então começava a surgir brilhante e clara, Lulu não pôde conhecer quem era, todavia as palavras de Pedro estavam-lhe na memória. Afirmou a vista; e o talhe e o andar pareceram-lhe do moço. Seria ele? A idéia era tão extravagante que a moça repeliu-a imediatamente; esperou algum tempo à janela. Quinze minutos decorreram sem que o vulto, quem quer que fosse, se retirasse dali. Tudo parecia dizer que era o filho de D. Emiliana; contudo, a moça quis prolongar a experiência; fechou a janela e retirou-se.

 

Meia hora decorreu — meia hora de relógio, mas uma eternidade para a alma curiosa da moça, lisonjeada com aquele ato do rapaz, lastimando e desejando o sacrifício.

 

— Impossível! dizia ela. É impossível que uma brincadeira... Mas aquela é a figura dele; e demais quem viria colocar-se ali, a esta hora, a passear solitário...

 

Lulu abriu de novo a janela; o vulto lá estava, desta vez sentado em uma pedra, fumando um charuto. Logo que ela abriu a janela, o vulto, que parecia olhar para lá, ergueu-se e entrou a passear de novo, com o mesmo passo tranqüilo de um homem disposto a velar a noite na praia. Há de ser por força um passo diferente dos outros; pelo menos, assim o achou a sobrinha do padre Sá.

 

A certeza de que era o filho de D. Emiliana produziu no espírito da moça uma revolução. Que razão havia para aquele sacrifício, sacrifício incontestável, tão ridículo havia de parecer aos olhos dos outros, sacrifício solitário e estéril? Lulu acostumara-se a ver no moço um futuro padre, um homem que ia romper com todas as paixões terrenas, e surgia-lhe, quando menos esperava, uma figura de novela antiga, cumpridor exato de uma promessa fútil, obediente a um capricho manifestado por ela em uma hora de despeito.

 

Lulu fechou de novo a janela e dispôs-se a dormir; fê-lo por pena do rapaz; uma vez fechada a casa, era provável que o seu fiel cavalheiro se fosse deitar também, apesar do calor que fazia e da vantagem que há em passear à lua numa cálida noite de fevereiro. Foi esta a esperança; mas nem por isso a moça dormiu logo. A aventura espertara-a. Contudo, não se atreveu a erguer-se de novo, com medo de animar o sacrifício do moço.

 

Dormiu.

 

O sono não foi seguido nem tranqüilo; ela acordou dez vezes; dez vezes reconciliou o sono a muito custo. Sobre a madrugada, ergueu-se e foi à janela. Não a abriu: enfiou os olhos por uma fresta. O vulto lá estava na praia sentado, a fumar, com a cabeça nas mãos como a ampará-la de pesada que havia de estar com a longa vigília.

 

A leitora poderia achar extravagante a ação do rapaz, mas estou convencido de que não conseguiria mais reconciliar o sono.

 

Foi o que aconteceu à sobrinha do padre Sá.

 

VIII

 

Com a manhã, retirou-se o passeador, que (desta vez não havia dúvida para a moça) era o filho de D. Emiliana. Imagine o estado em que ambos ficaram; ele moído e sonolento, ela com o espírito transtornado, e o coração... o coração agradecido, lisonjeado, satisfeito enfim de haver encontrado uma alma menos austera que a do primo.

 

A primeira coisa que a moça devia concluir é que o rapaz tinha-lhe mais amor a ela do que à vida eclesiástica; mas, posto o sentisse, não formulou o espírito esta natural descoberta. Pedro não foi lá na manhã nem na tarde desse dia; foi à noite. Se lhe custara a vigília, recebeu logo ali a paga que foi um olhar de agradecimento, não meditado e intencional, mas espontâneo e quase inconsciente; o primeiro olhar de mulher que o filho de D. Emiliana recebera em sua vida. O padre Sá estava presente; Alexandre chegou pouco depois. Não achando logo ocasião propícia para dizer o que queria, Pedro resolveu dizê-lo em voz alta.

 

— Padre-mestre, há alguma oposição entre a poesia e a vida religiosa ?

 

— Nenhuma... O padre Caldas fez versos, mas versos pios...

 

— Pois eu fiz mais do que prometi, tornou o moço, sublinhando estas palavras, também fiz versos.

 

— Versos?

 

— E à lua.

 

O padre Sá coçou a ponta do nariz com ar de pouca aprovação; mas o rapaz, sem embargo disso, sacou da algibeira um papelinho dobrado, que deu a Lulu.

 

— Leia para si ou para todos, disse ele; e peça ao padre-mestre que me perdoe o pecado.

 

Não transcrevo aqui os versos do rapaz, que eram melhores de intenção que de execução. A moça leu-os trêmula e comovida; e estendeu depois o papel ao tio, que o não quis receber.

 

— Não quero, disse ele; perdôo-lhe; vá lá; mas ainda em cima ler uma obra de intenção profana, que lhe desdoura talvez a sua vocação... daí, quem sabe? podem dizer-se coisas bonitas à lua, como obra do Criador...

 

— Não foi nesse sentido que ele escreveu, disse Alexandre, que recebera o papel recusado pelo padre Sá, e lia os versos para si. Não foi nesse sentido; fala em suspiros à lua, a quem pede que seja testemunha de que nada há no mundo mais doce do que o sentimento que o domina e nem maior do que o alvo de suas aspirações santas.

 

— Aprovo, disse o padre Sá; mas para dizer isso, não precisava falar à lua e era indiferente a prosa ou o verso.

 

Lulu recebera de novo o papel que o primo lhe dera; e o padre notou nessa noite a preocupação e acanhamento da sobrinha, e a singular alegria de Alexandre. Era a primeira vez que o seu rosto severo se expandia; a primeira que lhe ouviam o riso franco e jovial.

 

Aqueles versos foram lidos e relidos na alcova pela inspiradora deles, que com eles sonhou durante a noite inteira, e acordou com eles na memória. No coração, leitor, no coração devo eu dizer que eles estavam, e mau é quando os versos entram pelo coração, porque atrás deles pode ir o amor. Lulu sentiu alguma coisa que se parecia com isso.

 

O que é triste e prosaico, o que eu devia excluir da novela, é a constipação do filho de D. Emiliana, uma forte constipação que apanhou nos seus passeios noturnos, e que o reteve em casa no dia seguinte. Fazê-lo adoecer de incerteza ou de qualquer outra coisa moral era talvez mais digno do papel; mas o rapaz constipou-se, e não há remédio senão admitir a coriza, suprimindo todavia as mezinhas que a mãe lhe deu e os discursos com que as temperou.

 

Os tais discursos não eram agradáveis de ouvir. Pedro não saíra ostensivamente de casa na noite sacrificada ao capricho de Lulu; deitou-se à hora de costume e meia hora depois, quando sentiu a família acomodada, levantou-se e, graças à cumplicidade de um escravo, saiu à rua. De manhã voltou, dizendo que saíra cedo. Mas os olhos com que vinha, e o longo sono que dormira em toda a manhã até às horas do jantar, descobriram toda a verdade aos olhos perspicazes de D. Emiliana.

 

— Padre! dizia ela; e um mariola destes quer ser padre!

 

Constipado o rapaz, deixou de sair dois dias; e não saindo ele, a moça deixou de rir ou sorrir sequer, enquanto o primo temperava a gravidade do seu aspecto com desusada alegria e singular agitação, que nada pareciam ter com Lulu. O tio aborreceu-se com esta aparência de arrufos; achou pouca generosidade da parte de Alexandre, em mostrar-se jovial e descuidado, quando a moça parecia preocupada e triste, e resolveu acarear os dois corações e dizer-lhes francamente o que a respeito deles pensava, na primeira oportunidade que se lhe oferecesse.

 

IX

 

A noite seguinte foi de amargura para Lulu, que ouviu ao primo dizer baixinho ao filho de D. Emiliana:

 

— Preciso falar-lhe.

 

— Pronto.

 

— A sós.

 

— Quando quiser.

 

— Esta mesma noite.

 

Pedro fez um gesto de assentimento.

 

O tom da voz de Alexandre não revelava cólera; todavia, como ele dizia gravemente as coisas mais simples, Lulu estremeceu ao ouvir aquele curto diálogo e teve medo. Que haveria entre os dois logo que dali saíssem? Receosa de algum ato de vingança, a moça tratou nessa noite o primo com tamanha afabilidade que as esperanças do padre Sá renasceram, e Pedro cuidou ter perdidas todas as que ele tinha. Ela tentou prolongar a visita dos dois; mas reconheceu que era inútil o meio e que, uma vez saídos dali, qualquer que fosse a hora, podia dar-se o que ela receava.

 

Teve outra idéia. Saiu repentinamente da sala e foi direito a tia Mônica.

 

— Tia Mônica, disse a moça; venho pedir-lhe um grande favor.

 

— Um favor, nhanhã! Sua preta velha obedecerá ao que lhe mandar.

 

— Quando meu primo sair daqui com o senhor Pedro você vai acompanhá-los.

 

— Jesus! Para que?

 

— Para ouvir o que eles dizem, e ver o que houver entre eles, e gritar por socorro se houver algum perigo.

 

— Mas...

 

— Por alma de minha mãe, suplicou Lulu.

 

— Mas não sei...

 

Lulu não ouviu o resto; correu à sala. Os dois rapazes, já de pé, faziam as suas despedidas ao padre e despediram-se dela até ao dia seguinte; este dia seguinte ecoou funebremente no espírito da moça.

 

Tia Mônica vestira à pressa uma mantilha e desceu atrás dos dois rapazes. Ia resmungando, receosa do que fazia ou do que podia acontecer, nada compreendendo daquilo, e entretanto, cheia do desejo de obedecer à vontade de sinhá moça.

 

O padre Sá estava mais jovial do que nunca. Logo que ficou a sós com a sobrinha, disse-lhe dois gracejos paternais, que ela ouviu com um sorriso à flor dos lábios; e o serão acabou logo depois.

 

Lulu recolheu-se ao quarto, sabe Deus e imagina o leitor com que medos no coração. Ajoelhou diante de uma imagem da Virgem e orou fervorosamente... por Pedro? Não, por um e outro, pela vida e paz dos dois moços. O que não se sabe é se pediu alguma coisa mais. Provavelmente, não; o maior perigo naquela ocasião era aquele.

 

A oração pacificou-lhe a alma; recurso poderoso que só conhecem as almas crentes e os corações devotos. Aquietada, esperou a volta de tia Mônica. As horas, entretanto, correram lentas, e desesperadoras. A moça não saiu da janela salvo duas ou três vezes para vir de novo ajoelhar-se diante da imagem. Meia-noite bateu e começou a primeira hora do dia seguinte sem que o vulto da boa preta aparecesse ou o som de seus passos interrompesse o silêncio da noite.

 

O coração da moça não pôde resistir mais; as lágrimas brotaram dela ardentes, precipitadas e ela atirou-se à cama toda entregue ao seu desespero. Sua imaginação pintava-lhe os quadros mais tristes; e pela primeira vez sentiu ela toda a intensidade do novo sentimento que a dominava.

 

Era uma hora, quando o som pausado e seco de uma chinela soou nas pedras da rua. Lulu adivinhou o passo da tia Mônica; foi à janela; um vulto aproximava-se da porta, parou, abriu cautelosamente com a chave que levava e entrou. A moça respirou, mas à primeira incerteza sucedia uma segunda. Era muito ver a preta de volta; restava saber o que acontecera.

 

Tia Mônica subiu as escadas, e já achou no patamar a sinhá moça, que a fora esperar ali.

 

— Então? perguntou esta.

 

A resposta da preta foi nenhuma; travou-lhe da mão e encaminhou-se para o quarto da moça.

 

— Ah! sinhá Lulu, que noite! exclamou tia Mônica.

 

— Mas diga, diga, que aconteceu?

 

A preta sentou-se com a liberdade de uma pessoa cansada, e velha, e quase mãe daquela filha. Lulu pediu-lhe que dissesse tudo e depressa. Depressa, era exigir muito da pobre Mônica, que além da idade, tinha o sestro de narrar pelo miúdo os incidentes todos de um caso ou de uma aventura, sem excluir as suas próprias reflexões e as circunstâncias mais alheias ao assunto da conversação. Gastou, portanto, a tia Mônica dez compridíssimos minutos em dizer que nada ouvira aos dois rapazes desde que dali saíra; que os acompanhara até ao Largo da Imperatriz e subira com eles até a um terço da ladeira do Livramento, onde morava Alexandre, em cuja casa ambos entraram e se fecharam por dentro. Ali ficou, do lado de fora, cerca de meia hora; mas não os vendo sair, perdeu as esperanças e voltou para a Gamboa.

 

— Fui e vim com o credo na boca, terminou tia Mônica; e dou graças à Virgem Santíssima por me ver aqui sã e salva.

 

Pouco sabia a moça; ainda assim aquietou-se-lhe o espírito. Tia Mônica era um tanto curiosa, e em prêmio do seu trabalho achou natural saber a razão daquela excursão noturna.

 

— Oh! não me pergunte nada, tia Mônica! respondeu Lulu; amanhã lhe direi tudo.

 

— Já sei mais ou menos o que é, disse a preta; negócio de paixãozinha de moça. Não faz mal; eu adivinhei tudo...

 

— Tudo? perguntou maquinalmente a sobrinha do padre Sá.

 

— Há muito tempo; continuou tia Mônica; há seis meses.

 

— Ah!

 

— Seu primo de vosmecê...

 

— Oh! cale-se!

 

— Está bom, não digo mais nada. Só lhe digo que espere em Nossa Senhora, que é boa mãe e há de fazê-la feliz.

 

— Deus a ouça!

 

— Agora sua preta velha vai dormir...

 

— Vá, tia Mônica; Deus lhe pague!

 

Neste momento, ouviu-se no corredor o ruído de uns passos que se afastavam cautelosamente.

 

— Que foi? disse Lulu.

 

— Não sei... Abrenúncio! Ouviu alguma coisa?

 

A moça foi resolutamente à porta, abriu-a; o corredor estava escuro. Tia Mônica saiu com a vela e não viu nada. Deram-se as boas noites; a moça voltou ao seu leito, onde, sobre a madrugada, conseguiu enfim dormir. Tia Mônica dormiu logo o sono dos anjos, ia eu dizer, e o digo porque ela foi verdadeira angélica naquela aventurosa noite.

 

X

 

De quem seriam os passos ouvidos no corredor, senão do padre Sá que percebera movimentos desusados na casa, ouvira a entrada da tia Mônica e quis saber a razão de tal saída a desoras? Alguma coisa soube, quanto bastou para que no dia seguinte acordasse com a resolução feita de concluir dentro de poucas semanas o casamento da sobrinha com o sobrinho.

 

— Ou se a não ama, que o diga logo de uma vez, pensou o bom padre; é melhor do que fazer padecer a minha pobre Lulu.

 

Ao mesmo tempo, pensou que não houvera prudência da parte da sobrinha em mandar emissários atrás do primo e fazer intervir criados em coisas de tanta monta.

 

— É preciso repreendê-la, porque não andou em bom caminho, nem a eduquei para leviandades tais.

 

Isto disse o padre Sá, mas foi só dizer, porque logo que viu a sobrinha e lhe leu no rosto todas as amarguras da noite e os sinais de longa vigília, ficou tomado de comiseração e a severidade cedeu o passo à ternura.

 

Preferiu repreender a tia Mônica, depois de a interrogar acerca dos sucessos da véspera. A preta negou tudo, e mostrou-se singularmente admirada com a notícia de que ela havia saído de noite; o padre, porém, soube fazê-la confessar tudo, só com lhe mostrar o mal que havia em mentir. Nem por isso ficou sabendo muito; repreendeu a preta, e foi dali escrever uma cartinha ao sobrinho.

 

A carta foi escrita, mas não foi mandada. Daí a meia hora, anunciava-se nada menos que a rotunda pessoa da senhora D. Emiliana, que veio até à Gamboa arrastando a sua paciência e a idade, com grande espanto do padre Sá que nunca a vira ali; D. Emiliana pediu muitas desculpas ao padre da visita importuna que lhe fazia, pediu notícias da sua obrigação, queixou-se do calor, beijou três ou quatro vezes a face de Lulu, deitando-lhe duas figas para a livrar do quebranto, e só depois destes prólogos expôs o motivo do passo que acabava de dar.

 

— Não admira, padre-mestre, disse ela, não admira que eu aqui venha, porque enfim... ora, que há de ser? Coisas de rapazes...

 

— De rapazes?

 

— De rapazes e moças; ou antes, desta única moça, bonita como ela só!... Que olhos que ela tem! Dá cá outro beijo, feiticeira.

 

Lulu beijou a boa velha, e ficou ainda mais ansiosa que o tio por ouvir o resto da exposição. O padre fez sinal à sobrinha que se retirasse; não o consentiu D. Emiliana.

 

— Oh! ela pode ficar aqui! Não vou dizer nada que ela não deva ouvir.

 

— O que eu desejava saber antes de tudo, padre-mestre, é se tem feito alguma coisa para que o meu Pedro tome ordens.

 

— Bom. Tenho, decerto... E que mais ?

 

— E se é ainda intenção casar este anjinho com o senhor Alexandre... Alexandre, creio que é o nome dele?

 

— Mas... não sei a que propósito...

 

— A propósito de que estive hoje de manhã com o futuro esposo e o futuro padre, e ambos me pediram que interviesse por eles, de maneira que não houvesse demora nem no casamento nem na entrada no seminário.

 

— Nenhuma demora, D. Emiliana, disse o padre; é o meu maior desejo. Acho até esquisito que, por uma coisa tão simples...

 

— É menos simples do que parece.

 

— Ah!

 

— Menos simples, porque eles oferecem uma condição.

 

— Uma condição?

 

— Sim, reverendíssimo; ambos estão prontos a satisfazer os seus desejos, com a condição de que os há de trocar, passando o marido a ser padre, e o padre a ser marido.

 

O dono da casa deu um pulo na cadeira. D. Emiliana assustou-se vendo o gesto, mas voltou logo os olhos para a moça, cujo olhar, radiante de prazer, mostrou à boa velha a excelente impressão que lhe fazia a notícia. Lulu beijou a mão de D. Emiliana, e este simples gesto revelara ao tio o estado do seu coração. O padre esteve algum tempo calado. Depois sorriu e disse:

 

— De maneira que tive a perspicácia de enganar-me até hoje; e ia fazer, sem consciência, um mau padre e um mau marido.

 

— Justamente, disse D. Emiliana.

 

— E cuidava ter-lhes adivinhado a vocação! Sempre lhe direi contudo que são dois velhaquetes os rapazes... Mas não importa; terei o padre e o esposo de Lulu, e direi a Deus como Salomão: "Duas coisas te pedi; não mas negues antes que morra!".

 

Não lhas negou Deus; o esposo e o padre foram exemplares; um está cônego; o outro trata de fazer o filho ministro de Estado. É possível que, a fazer as coisas como as queria o padre Sá, não houvesse nem cônego, nem ministro.

 

Segredo de vocação.

 

Mas que tem com esta história o título que lhe pus? Tudo; são umas vinte páginas para encher tempo. Em falta de coisa melhor, lê-se isto, e dorme-se.

 

 

 

FIM

 

 

 
julho, 2008