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Maio — também "mês das noivas", sim, mas que, sobretudo, reporta-se a uma das mais significativas questões de toda a História brasileira, 'oficialmente' solucionada pela decretação da Abolição da Escravatura no dia 13, há exatos 120 anos: na verdade, culminante de um processo emancipatório que teve início ainda em 1850, com a proibição do tráfico negreiro (Lei Eusébio de Queiroz), sedimentado em 1871 (Lei do Ventre Livre). Importante o delineamento desse pano de fundo histórico para situar o conjunto dos contos machadianos relativos à escravidão.

 

Machado de Assis nunca deixou de exprimir seu mais absoluto horror à escravatura, fosse como funcionário da Diretoria da Agricultura do Ministério da Agricultura — (órgão que tratava da política de terras e da aplicação da Lei do Ventre Livre, de 1871), na qual  emitiu centenas de pareceres e réplicas no sentido de fazer cumprir a Lei e o preceito de liberdade para os filhos de escravos nascidos —, fosse em artigos e crônicas e, em especial, em romances e contos. Exatamente ao  contrário da equivocada e distorcida interpretação difundida ao longo dos anos, no sentido de não ter ele se integrado à causa abolicionista (sic) nem ter inserido o negro, ou a negritude, ou a condição do negro, em seus escritos, nem ter nenhum 'herói negro' entre os protagonistas de sua ficção. Ledo e puro engano: os detratores teimam em julgar o homem com base nos raramente compreendidos e assimilados artifícios do ficcionista e do cronista — ainda mais quando este utiliza ad nauseam os recursos da sutileza,do subterfúgio, da dissimulação.

 

Machado fez da escravatura objeto crítico — por vezes desenhada pelas tintas da sutileza, do subterfúgio, da 'entrelinha', por vezes direta, nada oblíqua ou dissimulada — de crônicas, de poemas, de peças teatrais e, especialmente, de contos, além de torná-la pano de fundo de alguns romances, tanto os primeiros como aqueles pós-1880.

 

Certamente, pelo uso do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza, do disfarce, Machado de Assis recebeu, indevidamente, a pecha de omisso, indiferente às questões importantes de seu tempo — mas justamente os recursos da ficção literária, sempre propícia a esse fim, foram os instrumentos que lhe permitiram expressar com nitidez, seu total e visceral repúdio ao sistema escravocrata do Brasil do século XIX. Por meio de alguns de seus contos, por exemplo, é possível observar as relações inter-raciais de sua época através do olhar literário, arrancando da realidade crua da sociedade imperial (e da História) a própria substância de suas narrativas — e, especificamente, seis deles, abordando  as tensas relações, inclusive, as de ordem afetiva e sexual, entre os membros da família patriarcal típica do século XIX e seus criados negros, abrigam tema, trama, ambiência, personagens e 'ideologia' inerentes à questão, escritos sob o mesmo clamor crítico-satírico do olhar machadiano feito testemunho incomparável  sobre a vida política, social  e institucional brasileira nas cinco últimas décadas do século XIX.  

 

Importante notar que se o tema é pouco, ou apenas 'tangencialmente' e superficialmente tratado nas obras do período pré-Abolição, depois — isto é, em "O Caso da Vara" (1891), a 2ª versão de "Mariana" (1891), "Pai contra Mãe" (1906) — adquire tamanho vigor temático, tramático, narrativo e de linguagem, que induzem a considerar uma espécie de 'desforra' de Machado quanto a uma questão que não pudera até então abordar como merecia, e como ele almejava.

 

"Frei Simão" — publicado originalmente no Jornal das Famílias em 1864 — se nas linhas narra uma história de amor, traçada em termos melodramáticos — um jovem de família rica que se apaixona pela criada, negra — traz as tinturas subjacentes do comentário machadiano às relações entre indivíduos, mais que de classes sociais, de etnias diferentes, e mais: a aparente simplicidade da narrativa embute um teor de modernidade (isso em 1864!) expressa no expediente da fragmentação das memórias inéditas de Simão, a revelar  uma história verdadeira, até então oculta nas linhas — como que significando a impossibilidade do autor em utilizar a linguagem adequada para exprimir o autoritarismo patriarcal do pai de Simão e a crueza/crueldade da condição do escravo (Helena).

 

"Virginius" — também publicado originalmente no Jornal das Famílias em 1864 — encarna com sutileza a dificuldade — quase impossibilidade — de expressão literária de tema tão delicado, mas exibe com todas as tintas a brutalidade e desumanidade do regime escravista, personificadas na violência e covardia de Carlos, ironicamente filho do pai de todos, um dono de escravos bondoso. Machado expõe com todas as letras e cores a representação da crueldade inerente a relações inter-raciais de seu tempo — inclusive, deixando implícito o entendimento do estupro como formas de escravidão.

 

"Mariana" abriga, de modo mais incisivo, o assunto escravidão — e de forma tão mais realista, que veio a ser publicado em duas versões — a primeira, em 1871 — no  Jornal das Famílias — na qual Machado utiliza muito mais contundência no tratamento do tema "perigoso" que nas obras anteriores (afinal, o ano é o da publicação da Lei do Ventre Livre, a permitir talvez que algo mais pudesse ser dito...), mas aliado, esse tom mais contundente, à contumaz estratégia da dissimulação, aqui temperada de  sarcasmo: o homem branco tem a palavra para  ele mesmo expor sua insensibilidade e descaso com relação aos negros, o autor (Machado) denunciando explicitamente a má consciência dos senhores no momento de uma crise "histórica" que mobilizava toda a nação — inclusive, a protagonista, assim como a personagem Elisa, personificando a submissão tanto feminina quanto étnica; a segunda versão, em 1891 — na Gazeta de Notícias — com o texto totalmente reelaborado, expressando a maior liberdade então concedida a se escrever sobre o assunto (além do fato de ser publicado no jornal que, por todos os motivos e aspectos, permitia maior 'autonomia' a Machado).

 

 

 

maio, 2008