© loredano
 
 
 
 
 
 

 

 

 

  

 

 

(Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1873)

 

 

Queres tu saber, meu rico irmão, a notícia que achei no Rio de Janeiro, apenas pus pé em terra? Uma crise ministerial. Não imaginas o que é uma crise ministerial na cidade fluminense. Lá na província chegam as notícias amortecidas pela distância, e além disso completas; quando sabemos de um ministério defunto, sabemos logo de um ministério recém-nato. Aqui a coisa é diversa; assiste-se à morte do agonizante, depois ao enterro, depois ao nascimento do outro, o qual muitas vezes, graças às dificuldades políticas, só vem à luz depois de uma operação cesariana.

 

Quando desembarquei estava o C. à minha espera na Praia dos Mineiros, e as suas primeiras palavras foram estas:

 

— Caiu o ministério!

 

Tu sabes que eu tinha razões para não gostar do gabinete, depois da questão de meu cunhado, de cuja demissão ainda ignoro a causa. Todavia, senti que o gabinete morresse tão cedo, antes de dar todos os seus frutos, principalmente quando o negócio do meu cunhado era justamente o que me trazia cá. Perguntei ao C. quem eram os novos ministros.

 

— Não sei, respondeu; nem te posso afirmar se os outros caíram; mas desde manhã não corre outra coisa. Vamos saber notícias. Queres comer?

 

— Sem dúvida, respondi; vou residir no Hotel da Europa, se houver lugar.

 

— Há de haver.

 

Seguimos para o Hotel da Europa que é na Rua do Ouvidor; lá me deram um aposento e um almoço. Acendemos charutos e saímos.

 

À porta perguntei-lhe eu:

 

— Onde saberemos notícias?

 

— Aqui mesmo na Rua do Ouvidor.

 

— Pois então na Rua do Ouvidor é que?

 

— Sim; a Rua do Ouvidor é o lugar mais seguro para saber notícias. A casa do Moutinho ou do Bernardo, a casa do Desmarais ou do Garnier, são verdadeiras estações telegráficas. Ganha-se mais em estar aí comodamente sentado do que em andar pela casa dos homens da situação.

 

Ouvi silenciosamente as explicações do C. e segui com ele até um pasmatório político, onde apenas encontramos um sujeito fumando, e conversando com o caixeiro.

 

— A que horas esteve ela aqui? perguntava o sujeito.

 

— Às dez.

 

Ouvimos estas palavras entrando. O sujeito calou-se imediatamente e sentou-se numa cadeira por trás de um mostrador, batendo com a bengala na ponta do botim.

 

— Trata-se de algum namoro, não? perguntei eu baixinho ao C.

 

— Curioso! respondeu-me ele; naturalmente é algum namoro, tens razão; alguma rosa de Citera.

 

— Qual! disse eu.

 

— Por quê?

 

— Os jardins de Citera são francos; ninguém espreita as rosas por fora...

 

— Provinciano! disse o C. com um daqueles sorrisos que só ele tem; tu não sabes que, estando as rosas em moda, há certa honra para o jardineiro... Anda sentar-te.

 

— Não; fiquemos um pouco à porta; quero conhecer esta rua de que tanto se fala.

 

— Com razão, respondeu o C. Dizem de Shakespeare que, se a humanidade perecesse, ele só poderia compô-la, pois que não deixou intacta uma libra sequer do coração humano. Aplico el cuento. A Rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A certas horas do dia, pode a fúria celeste destruir a cidade; se conservar a Rua do Ouvidor, conserva Noé, a família e o mais. Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto da cidade fluminense é esta rua, rosto eloqüente que exprime todos os sentimentos e todas as idéias...

 

— Continua, meu Virgílio.

 

— Pois vai ouvindo, meu Dante. Queres ver a elegância fluminense. Aqui acharás a flor da sociedade — as senhoras que vêm escolher jóias ao Valais ou sedas a Notre-Dame —, os rapazes que vêm conversar de teatros, de salões, de modas e de mulheres. Queres saber da política? Aqui saberás das notícias mais frescas, das evoluções próximas, dos acontecimentos prováveis; aqui verás o deputado atual com o deputado que foi, o ministro defunto e às vezes o ministro vivo. Vês aquele sujeito? É um homem de letras. Deste lado, vem um dos primeiros negociantes da praça. Queres saber do estado do câmbio? Vai ali ao Jornal do Commercio, que é o Times de cá. Muita vez encontrarás um coupé à porta de uma loja de modas: é uma Ninon fluminense. Vês um sujeito ao pé dela, dentro da loja, dizendo um galanteio? Pode ser um diplomata. Dirás que eu só menciono a sociedade mais ou menos elegante? Não; o operário pára aqui também para ter o prazer de contemplar durante minutos uma destas vidraças rutilante de riqueza — porquanto, meu caro amigo, a riqueza tem isto de bom consigo — é que a simples vista consola.

 

Saiu-me o C. tamanho filósofo que me espantou. Ao mesmo tempo agradeci ao céu tão precioso encontro. Para um provinciano, que não conhece bem a capital, é uma felicidade encontrar um cicerone inteligente.

 

O sujeito que estava dentro chegou à porta, demorou-se alguns instantes, e saiu acompanhado por outro, que então passava.

 

— Cansou de esperar, disse eu.

 

— Sentemo-nos.

 

Sentamo-nos.

 

— Fala-se então de tudo aqui?

 

— De tudo.

 

— Bem e mal?

 

— Como na vida. É a sociedade humana em ponto pequeno. Mas por enquanto o que nos importa é a crise; deixemos de moralizar.

 

Interessava-me tanto a conversa, que pedi ao C. a continuação das suas lições, tão necessárias a quem não conhecia a cidade.

 

— Não te iludas, disse ele, a melhor lição deste mundo não vale um mês de experiência e de observação. Abre um moralista; encontrarás excelentes análises do coração humano; mas se não fizeres a experiência por ti mesmo pouco te valerá o teres lido. La Rochefoucauld aos vinte anos faz dormir; aos quarenta é um livro predileto...

 

Estas últimas palavras revelaram no C. um desses indivíduos doentes que andam a ver tudo cor de morte e do sangue. Eu, que vinha para divertir-me, não queria estar a braços com um segundo volume de nosso padre Tomé, espécie de Timon cristão, a quem darás a ler esta carta, acompanhada de muitas lembranças minhas.

 

— Sabes que mais? disse eu ao meu cicerone, vim para divertir-me, e por isso acho-te razão; tratemos da crise. Mas por enquanto nada sabemos, e...

 

— Aqui vem o nosso Abreu, que há de saber alguma coisa.

 

O dr. Abreu, que entrou nesse momento, era um homem alto e magro, longo bigode, colarinho em pé, paletó e calças azuis. Fomos apresentados um ao outro. O C. perguntou-lhe o que sabia da crise.

 

— Nada, respondeu misteriosamente o dr. Abreu; apenas ouvi ontem de noite que os homens não se entendiam...

 

— Mas eu já hoje ouvi dizer na praça que havia crise formal, disse o C.

 

— É possível, disse o outro. Saí agora mesmo de casa, e vim logo para aqui... Houve Câmara?

 

— Não.

 

— Bem; isso é um indício. Estou capaz de ir à Câmara...

 

— Para quê? Aqui mesmo saberemos.

 

O dr. Abreu tirou um charuto de uma charuteira de marroquim encarnado, e fitando muito os olhos no chão, como quem está seguindo um pensamento, acendeu quase maquinalmente o charuto.

 

Soube depois que era um meio inventado por ele para não oferecer charutos aos circunstantes.

 

— Mas que lhe parece? perguntou-lhe o C. passando algum tempo.

 

— Parece-me que os homens caem. Nem podia deixar de ser assim. Há mais de um mês que andam brigados.

 

— Mas por quê? perguntei eu.

 

— Por várias coisas; e a principal é justamente a presidência da sua província...

 

— Ah!

 

— O ministro do Império quer o Valadares, e o da Fazenda insiste pelo Robim. Ontem houve conselho de ministros, e o do Império apresentou definitivamente a nomeação do Valadares... Que faz o colega?

 

— Ora, vivam! Então já sabem da crise?

 

Esta pergunta era feita por um sujeito que entrou pela loja mais rápido que um foguete. Trazia na cara uns ares de gazeta noticiosa.

 

— Crise formal? perguntamos todos.

 

— Completa. Os homens brigaram ontem de noite; e foram hoje de manhã a S. Cristóvão...

 

— É o que dizia, observou o dr. Abreu.

 

— Qual o verdadeiro motivo da crise? perguntou o C.

 

— O verdadeiro motivo foi uma questão da guerra.

 

— Não creia nisso!

 

O dr. Abreu disse estas palavras com um ar de tão altiva convicção, que o recém-chegado replicou um pouco enfiado:

 

— Sabe então o verdadeiro motivo mais do que eu que estive com o cunhado do ministro da Guerra?

 

A réplica pareceu decisiva; o dr. Abreu limitou-se a fazer aquele gesto com que a gente costuma dizer: Pode ser...

 

— Seja qual for o motivo, disse o C., a verdade é que temos crise ministerial; mas será aceita a demissão?

 

— Eu creio que é, disse o sr. Ferreira (era o nome do recém-chegado).

 

— Quem sabe?

 

Ferreira tomou a palavra:

 

— A crise era prevista; eu há mais de quinze dias anunciei ali em casa do Bernardo, que a crise não podia deixar de estar iminente. A situação não podia prolongar-se; se os ministros não concordassem a Câmara os obrigaria a sair. Já a deputação da Bahia tinha mostrado os dentes, e até sei (posso dizê-lo agora), sei que um deputado do Ceará estava para apresentar uma moção de desconfiança...

 

Ferreira disse estas palavras em voz baixa, com o ar misterioso que convém a certas revelações. Nessa ocasião ouvimos um carro. Corremos à porta; era efetivamente um ministro.

 

— Mas então não estão todos em S. Cristóvão? observou o C.

 

— Este vai naturalmente para lá.

 

Ficamos à porta; e o grupo foi-se pouco a pouco aumentando; antes de um quarto de hora éramos oito. Todos falavam na crise; uns sabiam a coisa de fonte certa; outros por ouvir dizer. O Ferreira saiu pouco depois dizendo que ia à Câmara saber o que havia de novo. Nessa ocasião apareceu um desembargador e indagou se era exato o que se dizia relativamente à crise ministerial.

 

Afirmamos que sim.

 

— Qual seria a causa? perguntou ele.

 

O Abreu, que dera antes como causa a presidência lá da província, declarou agora ao desembargador que uma questão da guerra produzira o desacordo entre os ministros.

 

— Está certo disso? perguntou o desembargador.

 

— Certíssimo; soube-o hoje mesmo do cunhado do ministro da Guerra.

 

Nunca vi maior facilidade em mudar de opinião, nem maior descaro em colher as afirmações alheias. Interroguei depois o C. que me respondeu:

 

— Não te espantes; em tempo de crise é sempre bom mostrar que se anda bem informado.

 

Dos presentes eram quase todos oposicionistas, ou pelo menos faziam coro com o Abreu, que fazia diante do cadáver ministerial o papel de Bruto diante do cadáver de César. Alguns defendiam a vítima, mas como se defende uma vítima política, sem grande calor nem excessiva paixão.

 

Cada personagem novo trazia uma confirmação ao trato; já não era trato; evidentemente havia crise. Grupos de políticos e politicões estavam parados às portas das lojas, conversando animadamente. De quando em quando surgia ao longe um deputado. Era logo cercado e interrogado; e só se colhia a mesma coisa.

 

Vimos ao longe um homem de trinta e cinco anos, meão na altura, suíças, luneta pênsil, olhar profundo, acompanhando uma influência política.

 

— Graças a Deus! agora vamos ter notícias frescas, disse o C. Ali vem o Mendonça; há de saber alguma coisa.

 

A influência política não pôde passar de outro grupo; o Mendonça veio ao nosso.

 

— Venha cá; você que lambe os vidros por dentro há de saber o que há?

 

— O que há?

 

— Sim.

 

— Há crise.

 

— Bem; mas os homens saem ou ficam?

 

Mendonça sorriu, depois ficou sério, corrigiu o laço da gravata, e murmurou um: não sei; assaz parecido com um: sei demais.

 

Olhei atentamente para aquele homem que parecia estar senhor dos segredos do Estado, e admirei a discrição com que os ocultava de nós.

 

— Diga o que sabe, sr. Mendonça, disse o desembargador.

 

— Eu já disse a V. Excia. o que há, interrompeu o Abreu; pelo menos tenho razão para afirmá-lo. Não sei o que sabe lá o sr. Mendonça, mas creio que não estará comigo...

 

Mendonça fez um gesto de quem ia falar. Foi cercado por todos. Ninguém ouviu com mais atenção o oráculo de Delfos.

 

— Sabem que há crise; a causa é muito secundária, mas a situação não podia prolongar-se.

 

— Qual é a causa?

 

— A nomeação de um juiz de direito.

 

— Só!

 

— Só.

 

— Já sei o que é, disse Abreu sorrindo. Era negócio pendente há muitas semanas.

 

— Foi isso. Os homens lá foram ao paço.

 

— Será aceita a demissão? perguntei eu.

 

Mendonça abaixou a voz.

 

— Creio que é.

 

Depois apertou a mão ao desembargador, ao C. e ao Abreu e retirou-se com a mesma satisfação de um homem que acaba de salvar o Estado.

 

— Pois, senhores, eu creio que esta versão é a verdadeira. O Mendonça anda informado.

 

Passa defronte um sujeito.

 

— Anda cá, Lima, gritou Abreu.

 

O Lima aproximou-se.

 

— Estás convidado para o ministério?

 

— Estou; você quer alguma pasta?

 

Não penses que este Lima era alguma coisa; o dito de Abreu era um gracejo que se renova em todas as crises.

 

A única preocupação do Lima eram umas senhoras que passavam. Ouvi dizer que eram as Valadares — a família do indigitado presidente. Pararam à porta da loja, conversaram alguma coisa com o C. e o Lima, e seguiram viagem.

 

— São lindas estas moças, disse um dos circunstantes.

 

— Eu era capaz de as nomear para o ministério.

 

— Sendo eu presidente do Conselho.

 

— Também eu.

 

— A mais gorda devia ser ministro da Marinha.

 

— Por quê?

 

— Porque parece mesmo uma fragata.

 

Ligeiro sorriso acolheu este diálogo entre o desembargador e o Abreu. Viu-se ao longe um carro.

 

— Quem será? Algum ministro?

 

— Vejamos.

 

— Não; é a A...

 

— Como vai bonita!

 

— Pudera!

 

— Ela já tem carro?

 

— Há muito tempo.

 

— Olhem, ali vem o Mendonça.

 

— Vem com outro. Quem é?

 

— É um deputado.

 

Passaram os dois juntos de nós. O Mendonça não nos cumprimentou; ia conversando baixinho com o deputado.

 

Houve outra trégua na conversa política. E não te admires. Nada mais natural do que entremear aqui uma discussão sobre crise política com as sedas de uma dama do tom.

 

Finalmente surgiu de longe o já citado Ferreira.

 

— Que há? perguntamos quando ele chegou.

 

— Foi aceita a demissão.

 

— Quem é o chamado?

 

— Não se sabe.

 

— Por quê?

 

— Dizem que os homens ficam com as pastas até segunda-feira.

 

Dizendo estas palavras, o Ferreira entrou, e foi sentar-se. Outros o imitaram; alguns se foram embora.

 

— Mas de onde sabe isso? disse o desembargador.

 

— Soube na Câmara.

 

— Não me parece natural.

 

— Per quê?

 

— Que força moral deve ter um ministério já demitido e ocupando as pastas?

 

— Realmente, a coisa é singular; mas eu ouvi ao primo do ministro da Fazenda.

 

Ferreira tinha a particularidade de andar informado pelos parentes dos ministros; pelo menos, assim o dizia.

 

— Quem será chamado?

 

— Naturalmente o N.

 

— Ou o P.

 

— Já hoje de manhã se dizia que era o K.

 

Entrou o Mendonça; o caixeiro deu-lhe uma cadeira, e ele sentou-se ao lado do Lima, que nesse momento descalçava as luvas, ao mesmo tempo que o desembargador oferecia rapé aos circunstantes.

 

— Então, sr. Mendonça, quem é o chamado? perguntou o desembargador.

 

— O B.

 

— Com certeza?

 

— É o que se diz.

 

— Eu ouvi que só na segunda-feira se organizará ministério novo.

 

— Qual! insistiu Mendonça; afirmo-lhe que o B. foi ao paço.

 

— Viu-o?

 

— Não; mas disseram-mo.

 

— Pois acredite que até segunda-feira...

 

A conversa ia-me interessando; eu já tinha esquecido o interesse que ligava à mudança dos ministros, para atender simplesmente ao que se passava diante de mim. Não imaginas o que é formar um ministério na rua antes que ele esteja formado no paço.

 

Cada qual expôs a sua conjectura; vários nomes foram lembrados para o poder. Às vezes aparecia um nome contra o qual se apresentavam objeções; então replicava o autor da combinação:

 

— Está enganado; pode o E. ficar com a pasta da Justiça, o M. com a da Guerra, K. Marinha, T. Obras Públicas, V. Fazenda, X. Império, e C. Estrangeiros.

 

— Não é possível; o V. é que deve ficar com a pasta de Estrangeiros.

 

— Mas o V. não pode entrar nessa combinação.

 

— Por quê?

 

— É inimigo do F.

 

— Sim; mas a deputação da Bahia?

 

Aqui coçava o outro a orelha.

 

— A deputação da Bahia, respondia ele, pode ficar bem metendo o N.

 

— O N. não aceita.

 

— Por quê?

 

— Não quer ministério de transição.

 

— Chama a isto ministério de transição.

 

— Pois que é mais?

 

Este diálogo em que todos tomavam parte, inclusive o C. e que era repetido sempre que um dos circunstantes apresentava uma combinação nova, foi interrompido pela chegada de um deputado.

 

Desta vez íamos ter notícias frescas.

 

Efetivamente soubemos pelo deputado que o V. tinha sido chamado ao paço e estava organizando gabinete.

 

— Que dizia eu? exclamou Ferreira. Nem era de ver outra coisa. A situação é do V.; o seu último discurso foi o que os franceses chamam discurso-ministro. Quem são os outros?

 

— Por ora, disse o deputado, só há dois ministros na lista: o da Justiça e o do Império.

 

— Quem são?

 

— Não sei, respondeu o deputado.

 

Não me foi difícil ver que o homem sabia, mas era obrigado a guardar segredo. Compreendi que aquele é que lambia os vidros por dentro, expressão muito usada em tempo de crise.

 

Houve um pequeno silêncio. Conjecturei que cada qual estivesse a adivinhar quem seriam os nomeados; mas, se alguém os descobriu, não os nomeou.

 

O Abreu dirigiu-se ao deputado.

 

— V. Excia. acredita que o ministério fique organizado hoje?

 

— Creio que sim; mas daí pode ser que não...

 

— A situação não é boa, observou Ferreira.

 

— Admira-me que V. Excia. não seja convidado...

 

Estas palavras, naquela ocasião inconvenientes, foram pronunciadas pelo Lima, que trata a política como trata as mulheres e os cavalos. Cada um de nós procurou disfarçar o efeito de semelhante tolice, mas o deputado respondeu direitamente à pergunta:

 

— Pois não me admira nada disso; deixo o lugar aos componentes. Estou pronto a servir como soldado... Não passo disso.

 

— Perdão, é muito digno!

 

Entrou um homem esbaforido. Fiquei surpreso. Era um deputado. Olhou para todos, e dando com os olhos no colega, disse:

 

— Podes dar-me uma palavra?

 

— Que é? perguntou o deputado levantando-se.

 

— Vem cá.

 

Foram até à porta, depois despediram-se de nós e seguiram apressadamente para cima.

 

— Estão ambos ministros, exclamou Ferreira.

 

— Acredita? perguntei eu.

 

— Sem dúvida.

 

Mendonça foi da mesma opinião; e foi a primeira vez que o vi adotar uma opinião alheia.

 

Eram duas horas da tarde quando saíram os dois deputados. Ansiosos por saber mais notícias, saímos todos e descemos a rua vagarosamente. Grupos de quatro e cinco se entretinham com o assunto do dia. Parávamos; combinávamos as versões; mas não retificavam as dos outros. Um desses grupos já estavam os três ministros nomeados; outro acrescentava os nomes dos dois deputados, pela única razão de os ter visto entrar num carro.

 

Às três horas já corriam versões de todo o gabinete, mas era tudo vago.

 

Determinamos não voltar para casa sem saber do resultado da crise, salvo se a notícia não viesse até às cinco horas, pois era de mau gosto (disse-me o C.) andar na Rua do Ouvidor às cinco horas da tarde.

 

— Mas qual será o meio de saber? perguntei eu.

 

— Eu vou ver se colho alguma coisa, disse Ferreira.

 

Vários incidentes nos iam detendo a marcha: algum amigo que passava, uma mulher que saía de uma loja, uma jóia nova em uma vidraça, um grupo tão curioso como o nosso, etc.

 

Nada se soube nessa tarde.

 

Voltei para o Hotel da Europa a fim de descansar e jantar; o C. jantou comigo. Conversamos muito do tempo da academia, dos nossos amores, das nossas travessuras, até que a noite veio e resolvemos voltar à Rua do Ouvidor.

 

— Não era melhor irmos à casa do V., pois que é ele o organizador do gabinete? perguntei.

 

— Principalmente, não temos tamanho interesse que justifique esse passo, respondeu o C.; depois, é natural que ele não nos possa falar. Organizar um gabinete não é coisa simples. Finalmente, apenas o gabinete estiver organizado cá saberemos na rua qual ele é.

 

A Rua do Ouvidor é lindíssima à noite. Estão os rapazes às portas das lojas, vendo passar as moças, e como tudo está iluminado, não imaginas o efeito que faz.

 

Confesso que me esqueceu o ministério e a crise. Havia então menos quem cuidasse de política; a noite da Rua do Ouvidor pertence exclusivamente à fashion, que é menos dada aos negócios do Estado que os freqüentadores de dia. Todavia, achamos alguns grupos onde se dava como certa a organização do gabinete, mas não se sabia ao certo quem eram os ministros todos.

 

Encontramos os mesmos amigos da manhã.

 

Ora, justamente quando o Mendonça se dispunha a ir colher alguma coisa certa, apareceu o desembargador com o rosto alegre.

 

— Que há?

 

— Está organizado.

 

— Mas quem são?

 

O desembargador tirou do bolso uma lista.

 

— São estes.

 

Lemos os nomes à luz do lampião de um mostrador. O Mendonça não gostou do gabinete; o Abreu achou-o excelente; o Lima, fraco.

 

— Mas isto é certo? perguntei eu.

 

— Deram-me agora esta lista; creio que é autêntica.

 

— O que é? perguntou por trás de mim uma voz.

 

Era um sujeito moreno e bigode grisalho.

 

— Sabe quem são? perguntou-lhe o Abreu.

 

— Tenho uma lista.

 

— Vejamos se combina com esta.

 

Costearam-se as listas; havia engano num nome.

 

Mais adiante encontramos outro grupo lendo outra lista. Divergiam em dois nomes. Alguns sujeitos que não tinham lista copiavam uma deles, deixando de copiar os nomes duvidosos, ou escrevendo-os todos com uma cruz à margem. Corriam assim as listas até que apareceu uma com ares de autêntica; outras foram aparecendo no mesmo sentido e às nove horas da noite sabíamos positivamente, sem arredar pé da Rua do Ouvidor, qual era o gabinete.

 

O Mendonça ficou alegre com o resultado da crise.

 

Perguntaram-lhe por que razão.

 

— Tenho dois compadres no ministério! respondeu ele.

 

Aqui tens o quadro infiel de uma crise ministerial no Rio de Janeiro. Infiel digo, porque o papel não pode conter os diálogos, nem as versões, nem os comentários, nem as caras de um dia de crise. Ouvem-se, contemplam-se; não se descrevem.

 

 

 

FIM

 

 

 
setembro, 2008