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Este é o primeiro conto de Machado de Assis, publicado originalmente em "A Marmota", em 5 de janeiro de 1858, depois integrado à coletânea Páginas Recolhidas, 2ª edição, por W.M. Jackson, em 1937, na "Coleção Machado de Assis", em 31 volumes (a 1ª edição desta coletânea, H. Garnier, 1899, não contém o conto).

 

Denota-se nitidamente os elementos, quer estéticos quer formais e estruturais, quer temáticos do  Romantismo, então no auge de sua vigência na literatura brasileira (o ano anterior tivera, p.ex., o lançamento de O Guarani, de José de Alencar ) — mas convém notar que, ao lhe conferir um evidente teor anedótico, Machado formaliza um desvio de viés "ideológico" no diapasão romanesco, quase uma "subversão" de ordem moral, uma vez que se trata explicitamente de um caso de  traição conjugal — prenunciando, em seu debut ficcional, um elemento temático (a infidelidade conjugal, o adultério) que habitaria muito de seus contos e romances.

 

Nas obras iniciais — pelo menos até 1871/73 (um período per se crucial na história brasileira e de significância na literatura machadiana) —, suas personagens são  donzelas conformadas com os casamentos, em geral ao sabor de conveniências ou por vontade dos pais, por mais contrárias que fossem a seus sentimentos e inclinações, ou por mais inesperadas e surpreendentes que se dessem as decisões; era um Machado "amável, cheio de cuidados com suas leitoras...", o que não o impediu,  logo no primeiríssimo conto, e no decorrer ainda de sua denominada "primeira fase", vez por outra, aqui e ali, sutil e sub-repticiamente, de contrariar em parte esse figurino, nem de por isso escapar de críticas por parte de pseudo-defensores da moralidade (como ocorreu, e tornou-se famoso, no caso em torno do conto "Confissões de uma viúva moça", publicado em 1865.).

 

Neste "Três tesouros perdidos", com o adultério como tema — e é o único, rigorosamente o único, entre todos os contos machadianos que tratam do tema em que o adultério se consuma: nos demais, fica a intenção, os preparativos, mas sem concretizar-se — a  narrativa se faz em terceira pessoa que não dá nome aos personagens, apenas siglas, como se fosse o relato de um fato verídico em que se pretende deixar os participantes subentendidos: o sr. F..., o personagem central, paga dois contos para um desconhecido deixar a corte, pensando tratar-se de um amante de sua esposa; entretanto, é um amigo o amante com quem sua esposa foge; ela não é descrita e também não tem voz, a não ser pelo bilhete deixado ao marido; dona E... está na contramão da mulher tradicional, inclusive, o casamento não parece ser para ela um laço mais forte que as inclinações do coração. Apesar disso, não é condenada por seu marido, nem pelo narrador... [Mauro Rosso]

 

 

 

 

 

Uma tarde, eram quatro horas, o sr. X... voltava à sua casa para jantar. O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolé1

que estava parado à sua porta. Entrou, subiu a escada, penetra na sala e... dá com os olhos em um homem que passeava a largos passos como agitado por uma interna aflição.

Cumprimentou-o polidamente; mas o homem lançou-se sobre ele e com uma voz alterada, diz-lhe:

— Senhor, eu sou F..., marido da senhora Dona E...

— Estimo muito conhecê-lo, responde o sr. X...; mas não tenho a honra de conhecer a senhora Dona E...

— Não a conhece! Não a conhece!... quer juntar a zombaria à infâmia?

— Senhor!...

E o sr. X... deu um passo para ele.

— Alto lá!

O sr. F..., tirando do bolso uma pistola, continuou:

— Ou o senhor há de deixar esta corte, ou vai morrer como um cão!

— Mas, senhor, disse o sr. X..., a quem a eloqüência do sr. F... tinha produzido um certo efeito, que motivo tem o senhor?...

— Que motivo! É boa! Pois não é um motivo andar o senhor fazendo a corte à minha mulher?

— A corte à sua mulher! não compreendo!

— Não compreende! oh! não me faça perder a estribeira2 .

— Creio que se engana...

— Enganar-me! É boa!... mas eu o vi... sair duas vezes de minha casa...

— Sua casa!

— No Andaraí3 ... por uma porta secreta... Vamos! ou...

— Mas, senhor, há de ser outro, que se pareça comigo...

— Não; não; é o senhor mesmo... como escapar-me este ar de tolo que ressalta de toda a sua cara? Vamos, ou deixar a cidade, ou morrer... Escolha!

Era um dilema. O sr. X... compreendeu que estava metido entre um cavalo e uma pistola4 . Pois toda a sua paixão era ir a Minas, escolheu o cavalo. Surgiu, porém, uma objeção.

— Mas, senhor, disse ele, os meus recursos...

— Os seus recursos! Ah! tudo previ... descanse... eu sou um marido previdente.

E tirando da algibeira da casaca uma linda carteira de couro da Rússia, diz-lhe:

— Aqui tem dois contos de réis para os gastos da viagem; vamos, parta! parta imediatamente. Para onde vai?

— Para Minas.

— Oh! a pátria do Tiradentes5! Deus o leve a salvamento... Perdôo-lhe, mas não volte a esta corte... Boa viagem!

Dizendo isto, o sr. F... desceu precipitadamente a escada, e entrou no cabriolé, que desapareceu em uma nuvem de poeira.

O sr. X... ficou por alguns instantes pensativo. Não podia acreditar nos seus olhos e ouvidos; pensava sonhar. Um engano trazia-lhe dois contos de réis, e a realização de um dos seus mais caros sonhos. Jantou tranqüilamente, e daí a uma hora partia para a terra de Gonzaga6, deixando em sua casa apenas um moleque encarregado de instruir, pelo espaço de oito dias, aos seus amigos sobre o seu destino.

No dia seguinte, pelas onze horas da manhã, voltava o sr. F... para a sua chácara de Andaraí, pois tinha passado a noite fora.

Entrou, penetrou na sala, e indo deixar o chapéu sobre uma mesa, viu ali o seguinte bilhete: "Meu caro esposo! Parto no paquete7 em companhia do teu amigo P... Vou para a Europa. Desculpa a má companhia, pois melhor não podia ser. — Tua E...".

Desesperado, fora de si, o sr. F... lança-se a um jornal que perto estava: o paquete tinha partido às oito horas.

— Era P... que eu acreditava meu amigo... Ah! maldição! Ao menos não percamos os dois contos!

Tornou a meter-se no cabriolé e dirigiu-se à casa do sr. X..., subiu; apareceu o moleque.

— Teu senhor?

— Partiu para Minas.

O sr. F... desmaiou.

Quando deu acordo de si estava louco... louco varrido!

Hoje, quando alguém o visita, diz ele com um tom lastimoso:

— Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem igual, um amigo a toda prova, e uma linda carteira cheia de encantadoras notas... que bem podiam aquecer-me as algibeiras8!...

Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo.               

 

 

FIM

 

 

 

Notas

 

 

 

março, 2008