Assim como as civilizações se pretendem universais, as artes que delas emanam têm-se como categorias para todos os homens. Camões e Fernando Pessoa diziam de Portugal ser o porta voz do próprio Deus. Camões insistia em que a parte mais ocidental da Europa, o Cabo da Roca — não por casualidade situado em Portugal — era "donde a terra se acaba e o mar começa". Portugal como começo e fim? Sem tirar nem pôr. E não só entre os artistas eruditos parece ser assim. Há um samba que canta a destruição de uma praça, no Rio de Janeiro, em que o compositor, depois de constatar que "vão acabar com a Praça Onze" anuncia que "chora o mundo inteiro". Nos filmes norte-americanos o herói é sempre o salvador não só da pátria, mas do universo. Ao que fica, na pretensão, arte e política — neste sentido amplo da palavra — sempre se equivalem. Mas a arte convence que as coisas realmente são como ela quer que sejam. Quem vai a exposições ou freqüenta concertos, não necessariamente acredita em Deus. Difícil, porém, não conceder que ele não exista na sinceridade de uma cantata de Bach. Ou no presépio de uma igreja do século XVIII, em Portugal.
O problema talvez seja de saber uma coisa e outra num mundo em que as coisas só se fazem conhecidas pelo domínio de certas culturas sobre as outras. Visto exclusivamente pela ótica da indústria do turismo, que se estriba na visão hegemônica dos EUA e de parte da Europa, a história contada pelos ingleses e norte-americanos só contempla o resto do mundo, enquanto o mundo lhes diz respeito. Ou quando eles descobrem esse outro mundo. São poucos os historiadores, como Eric Hobsbawm, que concedem algumas palavras a países como o Brasil. Ou mesmo ao passado que legou ao mundo uma outra face do universo, como foi com Portugal, por mais estranho que pareça à maioria que o ignora. Há nisso, sem dúvida a inestimável colaboração dos jornais, dos jornalistas, mas também de professores, intelectuais e políticos. Partem deles as concessões às histórias oficiais. Só que nem sempre por sua culpa, sua "máxima culpa" como diziam os antigos cristãos. Há exemplos recentes. Graças à ditadura salazarista, de mais de cinqüenta anos, Portugal viveu um período de obscuridade do qual até hoje não parece ter se recuperado plenamente. Não obstante, há historiadores militares ingleses, por exemplo, que concedem que sem a batalha naval de Diu, nas costas da Índia, quando os portugueses trucidaram os turcos e árabes num confronto em que com não mais que umas centenas de caravelas, destroçaram várias centenas de embarcações do Império Otomano, o Ocidente retardaria sua hegemonia sobre o Oriente. Não é senão mais um capítulo de sangue em que a artilharia dos navios portugueses mostrou ao que veio. Mas os portugueses se impuseram ao mundo de então, em pleno século XV. Não se estima que isso valha grande coisa para os produtores de Hollywood. Ou mesmo para a história que os próprios portugueses aprendem nas escolas e em que a Inglaterra e os Estados Unidos como que sempre foram hegemônicos, ou que isso, afinal, poderá ter um fim como tudo mais.
Igreja de São Francisco de Assis, altar e retátulo dos Santos Mártires de Marrocos (1750-51). Porto, Portugal.
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Claro que no terreno da cultura as coisas são sempre mais complicadas. Há sempre que se saber se os estudiosos concordam que uma cidade como o Porto, em Portugal não possui tantos monumentos quanto Bruges, na Bélgica, ou que o chamado estilo manuelino — algumas igrejas e mosteiros que nasceram com as grandes descobertas de Portugal (conquistas, na verdade) não são valorizadas por se ignorar mais Portugal do que outros países da mesma dimensão, como a Bélgica ou a Holanda. E por todo o restoquese imagina. Aliás, todos aprendemos na escola que o Brasil nasceu glorioso já nas guerras contra os holandeses. Patriotada? Não exatamente, se se considerar que a Holanda era, na época, a única nação européia que disputava com a marinha inglesa o primeiro lugar nos mares só "dantes" navegados pelos portugueses.
Um dos primeiros compêndios de história da arte traduzido para o Brasil, foi de um francês chamado Pierre de Colombier. O livro era de divulgação, provavelmente escrito durante a Segunda Guerra e tinha boas informações, principalmente sobre o Gótico nórdico e francês — mas no capítulo referente a Portugal, o francês desancava o Mosteiro dos Jerônimos, maior exemplar justamente do estilo manuelino. Considerava-o uma "monstruosidade". A obra fez o sucesso previsível entre os interessados e muitos brasileiros não consideraram notável a nota do tradutor — português — que dizia ser duvidoso que o autor conhecesse o mosteiro. Ou que soubesse qualquer coisa sobre o manuelino. O tradutor tinha excelentes razões para levantar o problema. Mas Portugal, mercê de Adolfo Salazar, um ditador fascista, bem mantido pelos EUA e que ainda tem nostálgicos no mundo "lusitano' no qual os brasileiros nos contamos, não mereceu que outros especialistas esclarecesse mais as coisas e dissessem, com todas as letras, a maravilha única que é o Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa.
Mosteiro dos Jerônimos (1501-1601), Lisboa, Portugal.
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A história é escrita pelos vencedores, diz um lugar comum. Pena que os vencidos não se dêem conta de que talvez não tenham sido vencidos.
março,
2008