Dísticos dialéticos (ou Soneto espelhado)

 

 

A poesia não precisa do homem:

As rimas, como carvão, se consomem

 

E o que sobra desta metamorfose

De homem em verso, e então, celulose

 

É só um espirro num dia chuvoso,

Que se confunde no esdrúxulo gozo

 

De ser também como a chuva lá fora.

Nariz de "poeta" é dáctilo: ora

 

Escorre-espirra, ora se cala.

A poesia não pertence a esta mala

 

Sem alça que é o homem, que é a caneta.

Não. A poesia não é maçaneta

 

    De porta ou de parte alguma, de todo:

    É o homem que é na água esse lodo.

 

    Todo mundo sabe que é o eletrodo,

    E não o coração, a pulsar. De modo

 

Contundente — sonoro, ele bate.

E só se confundem por que há quem ate

 

Em uma só coisa: janela e sala.

Não.Nada no mundo ao olhar se iguala.

 

Não existe "cheiro" sem antes faro

(Nem fogo sem antes fumaça, é claro...)

 

Por isso é sempre tão embaraçoso

Lançar-se em busca do “misterioso”:

 

Não há nada além de um vazio ileso.

Pois é... O mundo permanece preso

 

A nós, como epiderme no abdômen.

Da poesia?Não... não precisa o homem.

 

 

 

 

 

 

Onça pintada (paisagem à noite)

 

 

Que numa pintura tua esteja você

toda — esse é o mistério. Feita de matéria

alguma, você flutua com todo o resto,

perfeitamente em casa com todas as coisas.

 

De longe é uma estrutura apoiada em três

pontos, com frutas e vestidos pendurados

pelos galhos — e curvas de lua na água,

distorcendo a tinta escura em formas cheias

 

de nada: nuvens vagando no céu à noite.

Mas de perto não há a tinta, nem a tela:

só o teu corpo e as marcas que fiz com as mãos.

Do vermelho ao roxo — o espectro de cores

 

do desejo. Eu pintei de volta em você

as noites que antes eu havia tirado —

o teu corpo, marcado na carne com vários

eu te amo eu te amo eu te amo eu te amo

 

agora descansa emoldurado na cama.

Ainda assim, o mistério maior continua,

pois és minha como um quadro é de um artista:

mesmo o mais fiel auto retrato carrega

 

a mais selvagem alteridade da tinta.

 

 

 

 

 

 

De que as chuvas de verão são a maior prova da existência divina

 

 

Que meu ódio fique impresso em pegadas na praia do Leblon,

Enquanto passeio com os cachorros depois da chuva —

Quero poder olhar para trás e me ver marcado na areia

Úmida e marrom: ver como arrasto os pés, derrotado

 

Por ainda estar vivo e querer estar vivo, envergonhado

De me contentar com uma trepada por semana e um cd

Do caetano no repeat do meu som, colocando em palavras

Uma dor que nem é minha. Enfim — eu quero ferir

 

A cidade com meus rastros ridículos (eu acho inclusive

Que até os dois bichos cansarem de latir e correr

Em círculos, pode ser que eu ainda tenha tempo o bastante —

 

Tempo suficiente pra talhar com a lâmina do meu corpo

Um corte fundo e insignificante, engolfando a praia

Em nada, pra que depois o mar venha e lave tudo com a água.).

 

 

 

 

 

 

Sem título e

 

 

de pé, contra a privada — esse fosso

de água morna, rasa superfície

em que me vejo refletido: um vaso

de osso que contém estranhas flores.

 

Ainda escuto ela dedilhando

o violão no quarto enquanto tento   

me concertar pra não molhar a porra

do tampo todo — Volta e meia eu

      

penso que os tempos verbais não estão

fundados no presente, mas no instante

anterior: Quando eu estava lá

e as curvas do seu corpo se estendiam

no escuro como uma escarpa de pedra

que corta o mar, lembro que questionei

qual seria a metáfora de qual.

 

Agora, com a descarga, eu imagino

por que que os moradores dos atóis

guardam os restos de naufrágios antigos

do gozo diabólico da maré

(essa língua molhada que carrega

beijo após beijo, os cacos, as partes,

barcos despidos de cascos, de velas,

meu corpo quebrado e também a idéia

de um corpo inteiro — meu nome e o avesso

de mim). Essa maré é uma mulher

e ela despedaçou meu coração.

 

Agora eu estou pronto pra você.

 

 

 

 

 

 

 

, quando fechados, não são nada desiguais.

 

 

1. E retirada a criatura, vimos

que não havia jeito de caber

a cauda toda no corpo do cara.

 

2. Certos tons de cobre

não escondem tanto

a palavra negra

que sustenta todas

as outras palavras.

 

3. Semanas se passaram sem que descobrissem

que os dois ficaram lá, soterrados na neve.

 

4. É difícil

colocar

Kierkegaard

num poema

sem fazer

dele o último.

 

5. Sem nunca cortar os pulsos —

ainda que o sangue sempre

procure saída pelas

pupilas já dilatadas.

 

 

 

 

 

 

Canibalismo de 7 pedaços

 

"é um corpo sutil, mas é corpo"

J. Lacan

"mas na carne é imortal"

W. Stevens

I

 

Perdestes teu biquíni numa onda

na praia de Copacabana

e te descaldastes do mar bem quando

passava eu na minha ronda

 

habitual. As tuas vestes (mínimas)

pararam aos meus pés. Surpreso e

um tanto assustado com o que via,

rezei baixinho contra a besta:

 

"ó vazio das cascas de urucu,

velho pai uivando dentro das árvores,

dissolve essa miragem contra o fundo e

dá-lhe um nome qualquer, como Juçara,

 

Raimunda ou Maria Conceição.

Transforma essa angústia — esse nu —

no Bispo Sardinha, ou num salmão,

pra que eu possa escrevê-la no menu"

 

 

II

 

Mas permanecestes estatuada

no sal do mar — Teus seios mansos

aninhados sob os braços, a água

te vestindo a cintura e então

 

descendo a saia invisível aos teus pés.

Eu quis morrer e me esconder

atrás dos olhos, confrontar de viés

o teu corpo — tampouco sendo

 

tudo o que há e nem por isso uma parte

menor que o todo — a violência

de não reduzires quem és a nada

que eu já tivesse visto, gente ou

 

bicho. Meus lábios, não mais meus (de deus

ou do diabo — não sei qual

dos dois é capaz de tomar por seu

o que é dos homens), descolaram.

 

 

III

 

Que a carne pode vir a ser saliva —

ainda que as ondas precisem

de anos pra dissolver a pele fina e

chupar os ossos até o fim —

 

é dado. É claro que um caldo só

não levaria nunca nada

além de um biquíni e dos meus olhos:

Eu tinha a boca escancarada

 

e isso me bastava. Isso e a lenta

baba escorrendo até o mar,

formulando nós dois numa sentença

eterna à falta de sintaxe.

 

E lá estávamos nós, tu e eu,

o maiô e os olhos na areia,

e duas bocas partilhando a mesma

água, o mesmo sal, sem saber.

 

                

IV

 

Mulher, tu que carregas enrolados

na língua os nomes de deus:

por que que justo o auge do embaraço, o

teu jeito de quem se perdeu

 

das roupas me lembrava mais do mar

do que olhar pro mar? Por quê?

Nathália, conta-me, se sabes, qual

de nós dois é o Jaguaretê?

 

Por que que tudo o que não era carne

estava agarrado nos galhos

dos postes, rosnando alto para a tarde,

cego e com as asas fechadas?

 

Ah, os corpos cheios de porra, amor,

as constelações elas mesmas

olhando com impulso nomeador

pro céu, dando nome às estrelas!

 

 

V

 

Anatomicamente, o inverso

de falar é comer, e não

escutar. O teu perfume disperso

pela orla e uma profusão

 

de acidentes de trânsito, mas tudo

revolvia mesmo é entorno

da crueza pulsante dos teus músculos

de gazela. O caçador,

 

na verdade, não era eu, mas quem

quer que seja que por debaixo

da tua pele me chamava 'vem!

vem que o inverso de falar

 

é comer e etcetera..' — eu que era

a presa. Eu que era o alvo.

Acuado, te ataquei, fui aos teus pés,

ao invés de ir na jugular.

 

 

VI

 

Com o tempo se aprende a descolar

da cabeça o couro e os cabelos.

Com o tempo, porque o tempo é que dá

a impressão de haver consistência e

 

consciência nesse bando de órgãos

embrulhados para presente —

amarrado com laço para fora

em uns, e, em outros, ausente.

 

Sacrifício é entender que o nó é cego

e que o jeito mesmo é rasgar

o papel. E eu tinha o teu — hm-hm — ego

entre os dentes, já mastigado

 

e sem tinta, teu corpo desmanchado

nos meus braços. Mas tu, tão quieta e

bela, já sabias não se tratar

do teu sangue, das tuas pétalas.

 

 

VII

 

O resto dá o nome de todo o resto:

O estômago cheio de água,

os olhos cheios d'água, e pela fresta

da boca escorriam palavras.

 

Da tua imagem só o ponto cego,

que era eu, sobrou. O resto.

Um homem de pé, bem onde o eco

daquele instante entorta o verbo,

 

onde o espaço se curva, e se aninha

nos traços sujos e modestos

do calçadão. Copacabana, assim,

fica de mensagem, um resto,

 

para os passantes. Um fiapo resta

nos dentes e é a prova última,

final, de tudo. Mas eu mastigo esta

carne, e ela não acaba nunca.

 

 

 

 

 

 

até (essas

 

 

Preocupada ainda com uma carta

ao mundo, eu sei. E, embora tudo

continue parecendo absurdo —

tedioso até (essas piruetas

incontáveis, esses giros sem fim

num espaço que — convenhamos — não

comporta lá tanta animação

(às vezes parece que essa palavra

funciona mais como motivo para

tornar o conceito de ordem mais

colorido (deus! Será mesmo isso?

 

 

 

 

 

 

7 hrönir isoldinos

 

 

O primeiro: sob a cama.

No banheiro — o segundo.

Um dentro do violão e

outro no criado mudo.

O quinto está entre os livros e

o sexto não está visível.

O último, eu não sei.

 

Certamente dois acordes:

ré menor e si bemol.

Uns pés descalços dançando.

Talvez um pouco de sangue.

Talvez um pouco de tinta.

Nenhuma fotografia e

o melhor verso que fiz.

            

O sol seria uma escolha.

A melancolia, outra.

Uma saída é a cova ou

outro cigarro vazio ou

outra lição de poesia ou

um prato cheio de cinzas.

Enfim, a sétima escolha:

 

Tinha uma que dormia e

uma outra só deitada.

Tinha aquela de vestido e

aquela quase sem nada.

Uma comia uma rosa e

outra mentia e outra

não sabia mais meu nome.

 

 

 

 

 

 

*

 

Primeiro: abrir persiana

e ligar ventilação.

Depois, limpar todo sangue

de paredes e de chão.

Substituir lençol

e margaridas no vaso.

Por fim, rasgar meu bilhete.

 

Se foi e bateu a porta,

abriu e virou a chave

e viu que estava na hora e

levantou do chão a mala e

abriu devagar os olhos.

Beijou com muita saudade e

então me disse: eu te amo.

 

Paris engoliu a Maga

e na vitrola tocava:

"Black eyed angels swam with me"

e as estrelas e os sinais

piscavam entre as pessoas

e havia ali também outras

vitrolas, sinais e estrelas.

 

 

 

 

 

 

The End has no End

 

 

Última casa do tabuleiro, na beira

do mundo: torres, bispos e peões em bando.

A rainha negra e o rei branco dançando

sozinhos  — A caça de amor é altaneira.

 

Então o rei come a rainha que, sufocando,

engole o tabuleiro e se engole inteira:

o jogo de xadrez é só uma distração do

fato de que todos são peças de madeira.

 

 

(imagem ©lindesmon)
 

 

Gabriel Tupinambá (Rio de Janeiro, 1985). Estuda Belas Artes em Londres. Antes, cursou Literatura e Filosofia no Rio e, mais tarde, fez curso de Cinema em Londres. Seus curta-metragens têm conseguido boa projeção em festivais internacionais, entre eles Study On Repetition, And the Colours Are Like Summer e Das Dores, especialmente. Publicou, em 2008, na Inimigo Rumor número vinte, dois de seus poemas — "The End Has No End" e "7 hrönir isoldinos".