©brad wilson
 
 
 
 
 
 

 

Livrarias, claro, são dos meus ambientes favoritos, sejam elas grandes, espaçosas, iluminadas e recheadas de estandes e cartazes, sejam pequenas, estreitas, cubículos como certos sebos, onde o cheiro de livros velhos já é um tremendo excitante. Mas, percebo que as livrarias de maior atração para o público, hoje em dia, não são exatamente lugares onde se pode conhecer os melhores e mais refinados leitores.

 

Como freqüentador, tenho tido a tristeza de constar que quase não se procura mais livros de ficção, a menos que sejam daquele gênero que freqüenta as listas dos best-sellers (que alguns consumidores rebarbativos levam até nas mãos para fazer suas compras), estrangeiros em maioria e destinados a entreter, tudo bem, mas dificilmente obras que poderão levar a reflexões maiores e mais interessantes sobre o mundo. Quando um livro até bem corajoso como Deus — Um delírio, de Richard Dawkins, faz sucesso, percebe-se que é menos pela força e a riqueza da argumentação do que pelo escândalo que vem suscitando um autor ateu confesso que e ataca as religiões — isso, grosso modo, é o que chega aos ouvidos do comprador superficial, um apetite pelo sensacionalismo. As razões que o levam a comprar um livro não são as melhores, infelizmente.

 

É possível (e é mesmo observável) que muitos livros que se vem comprando a esse preço escandaloso na faixa dos 50 a 60 reais ou mais, acabem sendo pouco lidos e encostados (há sebos com livros praticamente novos, deixados de lado por compradores apressados que não encontraram neles a excitação esperada).

 

Fala-se mal dos livros de auto-ajuda, e realmente é quase impossível defendê-los. A onda de há muito ultrapassou as fronteiras do ridículo, e criou um desvio perverso no comprador: o objeto livro passou a ser visto como uma espécie de remédio para esta ou aquela frustração ou de manual de sobrevivência no mundo dos negócios e empregos, e aí vale até a religião, caiu ao nível mais raso, como uma espécie de serviço — a mistura de Deus com capitalismo o mais utilitário e calculista é particularmente intragável. Deus se tornou, grosso modo, o mais óbvio recurso para fazer sucesso no mundo material, numa total inversão dos valores, já que, sabem os mais estudiosos e os religiosos mais refinados, que a chegada verdadeira a Ele demanda caminhos muito mais severos, despojados e espinhosos.

 

Mas o que a onda de livros de auto-ajuda faz de pior é encobrir o gosto pela Literatura como arte, como ficção. Não se perdoa e não se quer de jeito nenhum que um escritor seja uma criatura artística, voltada para a criação e a imaginação. É preciso que o que ele esteja contando seja, de algum modo, autobiográfico ou apresente alguma utilidade para o comprador. Por isso o grande sucesso das biografias: é como se as pessoas estivessem procurando o segredo, por trás da vida do famoso, que o fez se tornar famoso, não importa o que exatamente ele tenha feito, porque a fama passou a ser um absoluto. Qualquer vidinha comum pode, assim, alcançar certas elevações heróicas, já que o nível de exigência se fez tão ralo.

 

A boa literatura tem uma tendência natural a apresentar uma visão questionadora das coisas, valores, sociedades e sonhos, e já chega ao mercado como perdedora. O autor mais sério é rotulado como um pessimista, um propositor de becos sem saída, um sujeito que se deleita com o sofrimento e quer fazer o leitor sofrer.

 

Não há mais uma valorização da Beleza, no plano estético (o que inclui, claro, necessariamente, melancolia e sofrimento, porque a vida é isso, independente de nossos desejos), esquece-se facilmente que a melancolia, o sofrimento e a dor podem ser indissociáveis da reflexão e que a Beleza é um caminho acidentado, um caminho de apesares.

 

Para concordar com isso, é preciso uma visão madura que as pessoas não parecem ter ou parecem não querer, ter mais. Assim, não é de espantar que trombemos com cinquentões pueris obstinados em ler histórias adolescentes de magia. Ou mulheres solitárias que, a despeito de todas as lições que já receberam da realidade, continuam à espera de um livro que lhes conte como encontrar seus príncipes ou amores masculinos idealizados.Desconfio que as pessoas jamais desistem de certos sonhos, apenas os mascaram e disfarçam habilmente à medida que vão percebendo que são realmente inexeqüíveis.

 

Os livros precisam ter "lições de vida", serem engraçadinhos, sensacionais (não importa a inverdade do que estejam proclamando), escandalosos, eufóricos. É comum que as pessoas perguntem o que a gente está lendo para que sigam nossos gostos e que fiquem desanimadas ao perceber que não indicamos aquilo que elas esperam ler: coisas fáceis, humorísticas, leves para serem rapidamente esquecidas e recicladas no mercado. Dizer de um autor que ele é "pesado", hoje em dia, vem até com uma aura de condenação moral, como se o autor, e não o seu tema, fosse um desmancha-prazeres deliberado.

 

Mas quero deixar claro que a crítica que faço não significa que eu ache que os livros de entretenimento sejam todos desprezíveis; há muita coisa destinada a entreter, com competência e profissionalismo, no mercado. Há excelentes livros policiais, de aventura, mistério, magia, infanto-juvenis e de qualquer gênero, em oferta por vezes até atordoante. O que é preciso é entender que reivindico para os livros não só o prazer escapista que o leitor deve encontrar ao lê-los, mas, sobretudo, o prazer estético, de ler coisas bem escritas.

 

O que quero criticar é essa tendência insidiosa a ir tornando os livros aceitáveis só na medida em que compactuam com fantasias reles e imediatistas, necessidades de compensação, riso ou prosperidade material. Comprar só isso acaba sendo um rito neurótico/obsessivo, a repetição indefinida de um tranquilizante: a maior parte dessas produções diz que a vida melhor está ao nosso alcance, desde que rebaixemos nossa inteligência crítica praticando a mais rasteira auto-sugestão em doses maciças.

 

 

ONETTI, QUIROGA, SCHOPENHAUER E OUTRAS MALDIÇÕES

 

Diante da realidade aí exposta, fico pensando na dificuldade que encontram os escritores de temas malditos, tristes ou "politicamente incorretos" e no que perde o público leitor ao fazer o pacto fáustico com a Euforia e a Facilidade, desdenhando certos títulos. Um autor como o uruguaio Juan Carlos Onetti, difícil, árido, mas cheio de uma beleza compensadora quando bem lido, tem um livro de contos cujo título, Tão triste como ela, deve ser evitado como a peste. Outro livro onde encontrei contos fantásticos, de uma beleza pungente, foi A galinha degolada e outras histórias, do também uruguaio Horácio Quiroga. Mas com um título desses, deve ser desanimador de fato para essa horda.

 

Já tive toda espécie de problema por ter escrito um livro, o meu primeiro de contos, chamado Nó de sombras. Certo número de leitores me rotulou como sombrio e macabro e desdenhou todo o resto que eu mostrava em histórias sofridas, que propunham um olhar menos concessivo sobre a realidade. Fico imaginando o que deve pensar o consumidor do tipo descrito ao se deparar com um livro básico da filosofia de Schopenhauer, As dores do mundo.

Condensado em edições populares, podendo ser encontrado a preços reduzidos, é um livro que releio sempre que quero me entender melhor com a vida, o mundo, o sofrimento. Alguém aí poderá estar pensando que sou um refinado masoquista. Nada disso: o que Schopenhauer, basicamente, diz, é que estamos presos ao desejo e que o desejo leva ao sofrimento. Que a vida é sofrimento e que ninguém escapa disso. Suas reflexões são maravilhosamente lúcidas e dão um prazer único: o de encontrar uma inteligência que resiste à besteira e às falsificações de filosofias consoladoras e enganadoras. Para mim, ainda que pareça estranho, um pessimista radical como Schopenhauer (que, no entanto, apontou ao Ocidente os caminhos de verdades serenas e desapegadas do Budismo), tem muito mais de tônico que um otimista que insista em que eu engula sua visão falsa e edulcorada do mundo.

 

A mistificação não me tonifica. A esperança como "urubu pintado de verde, parafraseando Mario Quintana, não me interessa; a desesperança exposta com razões lúcidas, que nos fazem compreender melhor o mundo em que estamos, tem um efeito serenizador sobre mim. Sinto que fui tratado como um ser humano respeitável e adulto, quando leio e releio As dores do mundo. Porque creio firmemente que a verdade nos liberta muito mais do que as fantasias consoladoras, estas sim insatisfatórias e peçonhentas.

 

Fora daí, os livros me interessam — independentes se seus temas são alegres ou sombrios — como fruição estética, a começar pelas capas bem feitas e orelhas sugestivas, que têm um papel fundamental na minha decisão de adquiri-los. Meu preceito favorito é "a thing of beauty is a joy forever", de Keats. A "coisa bela", que deve ser "uma alegria para sempre", tanto pode vir nas epifanias da prosa de Rosa, que nos remetem à transcendência e à Beleza redentora, quanto nos duríssimos aforismos de um pessimista que levou as lições de Schopenhauer a um extremo radical como E.M Cioran.

 

Livros terríveis como Misto quente, do americano Charles Bukowski e Viagem ao fundo da noite, do francês Céline, têm uma beleza especial, feita de uma poderosa onda de desilusão quanto a coisas, instituições e pessoas, mas é uma desilusão que, com sua drasticidade, tem um efeito purificador sobre nosso intelecto e nossas bobas indulgências quanto à vida, que pode ser sim — e é, por vezes — absurdamente cruel.

 

Mas essa crueldade, esse aspecto trágico da vida, é decididamente pouco comercial, e, assim — com a finalidade clara de poupar o leitor de coisas mais cortantes e impiedosas que são umas quantas realidades incontornáveis —, tome desvio, eufemismo, cuidado, coisas duras apresentadas com atenuantes, suavizações, despistes, mentiras. A velhice, a doença, a frustração amorosa, a morte — que fazem parte de nossa vida de modo decisivo — são embelezadas, mistificadas, escamoteadas. Decididamente, há uma conspiração generalizada para que permaneçamos alheios à vida verdadeira.

 

Quanto à morte, não faltarão livros sobre as consolações do tipo sobrevivência dos "entes queridos" em melhores condições no "plano astral" ou sandices que tais, patético e inútil esforço de, através do sentimentalismo, evitar o aspecto irremediável e assustador do assunto e criar um Éden muito conveniente e oportuno para nossas mentiras e fraquezas (já que, em vida, a consideração que cerca os nossos afetos familiares nunca é isenta de hostilidade e ressentimento).

 

O melhor livro sobre esse assunto é ainda o belíssimo A morte de Ivan Illich, de Tolstoi, mostrando um alto funcionário russo que cai doente e descobre toda a mentira, toda a hipocrisia da família falsamente afetiva que o cerca, todo o absurdo e o mistério da vida, ao sentir que vai morrer, inexoravelmente. A única compreensão, ele encontrará num sujeito socialmente desqualificado, um humilde camponês, que o carrega nas costas, ajuda-o nas suas necessidades fisiológicas, não se enoja de sua condição.


Em suma, o que há de tônico nos livros deve nos vir da arte com que são escritos, não de outras fontes. A arte literária de grande estatura leva em conta o fato de que o ser humano não é coisa pouca, de que suas alegrias e terrores devem ser registrados com justeza, tocando no nervo da mistura de exaltação e queda em que vivemos.


O que nos cega para o luto nos cega para a realidade e até nos impede de ver a luz possível, o que nos faz evitar a frustração evita que amadureçamos.

 

Apreciar os livros esteticamente, independentemente de eles tratarem de temas desanimadores, é realizar uma operação muito salutar para o espírito, já que a arte pressupõe, ela sim, um controle do homem sobre suas limitações e falhas, ainda que seja, claro, um controle relativo. Os fatos desagradáveis da vida não deixarão de existir só porque damos as costas deliberadamente para eles e decidimos ser "positivos" até contra as mais óbvias evidências em contrário. Positivismo algum nos dota de superpoderes.


Sem que queiramos reconhecer as verdades de nossa humana condição, tudo que somos é pueris. E manipuláveis por industriais do torpor que adulam nossas ignorâncias e preconceitos e nos mantém nessa puerilidade por tempo indefinido.

 

 

 

julho, 2008