Ultimamente, diante da dificuldade para se comprar livros devido aos preços assustadores, tenho me inclinado para títulos que sempre quis ler disponíveis em sebos e promoções (basta ter paciência e sair à procura) ou para edições que têm preços mais justos para um brasileiro comum, de poder aquisitivo claramente limitado. Entre esses livros, comecei a comprar os da editora L&PM, pockets de gêneros muito diversificados, capazes de atrair, pela fama dos autores e mesmo pela audácia de certas edições. De cara, mergulhei nos muitos Bukowskis que a editora oferece. Depois, fui vendo outros títulos, e decidi que tinha que ler um clássico que todo mundo parece conhecer, mas no qual eu nunca pegara: On the road, de Jack Kerouac. O livro andava sendo de novo comentado por conta de uma adaptação cinematográfica que teria, sob direção de Walter Salles, nos EUA. O filme estaria sendo produzido e seria lançado neste 2008. Mas, de nada mais sei. Em todo caso, valeu o clima de comentário, porque isso me fez ir ao livro, que é de fato fundamental, ainda que muita coisa tenha envelhecido.

 

Daí, dos Bukowskis, fui para os Kerouacs que a editora também oferece. Li Os vagabundos iluminados, constatando que nele, infelizmente, Kerouac é derivativo, quando não desigual, auto-indulgente (o budismo devocional do livro é particularmente cansativo e redundante) ou simplesmente chato. Mas, não desanimei, porque a prosa de Kerouac, cheia desses defeitos, é também marcada por lampejos de uma força poética sempre considerável, e comprei O viajante solitário, em que o clima de On the road dá melhor as suas caras. A impressão que se tem é que Kerouac foi vítima da tremenda fama adquirida por On the road do ponto de vista do mercado editorial e acabou tendo muita coisa sua, informe e sem interesse, publicada por questões mercadológicas, já que seu nome passou a valer ouro. Estas leituras me fizeram ter a curiosidade de saber melhor da vida dele, e, para isso, a L&PM também oferece um título: a sua biografia, escrita por Yves Buin. Basta lê-la e se descobrirá que Kerouac foi mesmo vítima da fama de seu maior livro. E que, infelizmente, não é um ser humano muito agradável. Ler esta biografia pode ser de uma tremenda importância para seus admiradores neófitos, e suponho que os tenha aos montes no Brasil, devido à lenda, que atravessa gerações.

 

O livro de Buin me deixou impressões contraditórias. Não gostei muito de conhecer o Kerouac biográfico, para falar a verdade. O homem que, no fim da vida, vaga pelos bares gritando que é o maior escritor do mundo como um bêbado implacavelmente chato, embora autor de On the road, confesso, é alguém de quem eu também teria fugido, aderindo aos freqüentadores que deviam correr cada vez que ele entrava. Kerouac, como Truman Capote, foi vítima de uma celebridade descomunal, coisa que parece afetar os escritores americanos com uma virulência que no Brasil (cuja mídia se volta para outro tipo de famosos) parece estranha. Um escritor de fama é de fato alguém nos EUA, e, no caso de Kerouac, visto facilmente como oráculo. O mesmo se deu com Capote em outra época, em outros meios. Capote, aliás, um prosador de outra espécie, superior a ele, não gostava de Kerouac e ironizou sua prosa: não seria writing, mas typewriting (não escrita, mas datilografia, tradução em que o trocadilho se perde).

 

Faz certo sentido. Kerouac, com seu espontaneísmo, aquelas frases quilométricas, "inspiradas", emendadas com conjunções em quantidade exasperadora, negligentes, fez muito mal a uma quantidade enorme de escritores sem talento influenciados por ele e epígonos. Muito livro ruim que lemos e já esquecemos se deve a essa influência — gente pretensiosa, achando que sua preciosa "alma" valia mais que do que o talento literário verdadeiro, derramando-se numa nova retórica vazia, mas ornamentada por "stream of consciousness" etc e tal. Isso não desapareceu de modo algum do cenário.

 

Não sei se recomendo a biografia de Buin para quem gostou de On the road. Pode ter alguns efeitos salutares de desmistificação, mas é triste que a gente não possa admirar um escritor sem ter que sofrer malogros com sua "vida real". Kerouac se drogou e bebeu demais, entregou-se a um misticismo pessoal confuso, teve muitas mulheres (e alguns homens), e foi se enrijecendo, ficando um paranóico quase típico de direita americana, anti-semita e anti-negros a tal ponto que até com a Ku-klux-Khan andou flertando (logo ele, tão apaixonado pelo jazz, expressão musical negra que recebe tantas loas em On the road). Todo fim é melancólico, mas o fim de Kerouac é particularmente doloroso e inspira compaixão, repulsa e incômodo ideológico em quem ficou fã do escritor por On the road. É o luto do herói, e luto que começou muito cedo, numa vida de autodestruição, egocentrismo e megalomania.

 

 

 

ENGOLIDO PELO TÉDIO E A MESQUINHEZ

 

Como leio muita coisa ao mesmo tempo, andei também relendo uma outra biografia da L&PM, esta em edição de tamanho padrão, de uma época mais recuada, 1988 — a de Rimbaud, por Pierre Matarasso e Henri Petitfils.

 

Rimbaud foi ídolo de Kerouac, naturalmente, como é ídolo de muita, muita gente. Mas desconfio que haja um bom número de  pessoas, como no caso de Kerouac, idolatrando-o e sabendo pouco sobre sua vida, exceto em alguns pontos muito comentados e mitificados: o gênio precoce, o abandono da Literatura, trocada por uma vida mercenária na África etc.

 

Isso não é de espantar: mesmo entre escritores ou gente dita "culta" no Brasil, grassa a preguiça mental, a aceitação fácil de rótulos e estereótipos, cultuados em grupinhos de militância X ou Y, e de certos grandes nomes o que se sabe por vezes é dolorosamente superficial, tipo resumo para "conversa inteligente" de boteco. Para quem quiser ter um retrato mais preciso e matizado de Rimbaud, este livro é um bom início (certamente há biografias mais completas, mas esta me satisfez).

 

Rimbaud, sim, me parece ter uma estatura de herói, e herói trágico. Ainda que tenha tido aquele caso de amor com Verlaine que, comentado com graça por Matarasso e Petitfills, parece mais patético e acanalhado do que divertido, é possível compreendê-lo. Precocemente dotado, escrevendo a poesia e a prosa poética fulgurantes das quais nem é preciso falar muito, parece natural que detestasse a vida no interior da França  e os círculos literários onde era mal visto, porque tratava os medalhões como mereciam: com desprezo. Em alguns dos trechos dessas brigas de Rimbaud com os literatos rançosos, a gente se arrepia pensando em academias literárias, loas e poetas/bacharéis pomposos e medíocres antigos, mas nunca completamente desaparecidos, no contexto literário do Brasil. Claro que ele estava tragicamente certo. E Verlaine parece é pusilânime, dividido entre lar e estrada, gostando de poesia, mas também com um pé bem fincado nas comodidades da vida burguesa, merecendo ser chacoalhado com violência. São repulsivas as brigas com sua mulher, Matilde, decidida a mantê-lo longe da vida escandalosa com o amigo, e, por fim, embora violento, radical ou ausente, Rimbaud parece mais íntegro ou mais convicto de um desesperado destino pessoal, não se sabe. Ele, com sua vontade de sol africano, liberdade e fim daquela vida chatíssima entre embolorados literatos franceses ou na província de um tédio infinito de Charleville, arriscou o pescoço mais do que ninguém e aí está a tragédia.

 

Esse é um livro que me comove e, sempre que o releio, sinto que, através da vida desesperada de Rimbaud, estou vislumbrando nessa personalidade alguma coisa maior, de uma estatura muito mais ampla e verdadeiramente heróica. Porque, embora a vulgarização de sua imagem insista em que Rimbaud largou a literatura e virou um negociante desprezível de armas, bradando que com a poesia não queria mais nada, não é isso que se percebe no livro de Matarasso e Petitfils.

 

Percebe-se é um homem de talento e refinamento muito grandes que encontra na África não a vida que sonhava, mas uma existência ainda mais mesquinha, sofrida e dolorosa que a que tinha na Europa. Rimbaud, vivendo entre tribos primitivas, traficando fuzis, brigando com negociantes mal-intencionados e sórdidos, lidando com estúpidos terminais, perdendo dinheiro para gente feroz em sua baixeza, é ainda um europeu desesperado, e, quando encontra amizade, é entre outros europeus. Quando escreve relatórios de viagens ou cartas, é ainda um poeta que se lê nas entrelinhas da prosa. É ainda uma sensibilidade elevada metida em mundos os mais pragmáticos e filisteus — a literatura, desprezada, está nele, não adianta. Ele é maior que ele mesmo. E nada é tão doloroso quanto as muitas voltas que faz a Charleville, forçado pelos negócios fracassados, renovando seu ódio ao tédio da província sem poder escapar dela. Isso chega ao paroxismo quando não poderá mais andar, quando terá as suas pernas amputadas, ele, que a vida toda fora um caminhante obstinado, adorando os prazeres do ar livre e das viagens audaciosas a pé. Um castigo particular do Destino para essa figura que, mesmo quando nos inspira compaixão, inspira um respeito e tanto. Esta sim é uma grande personalidade, cujo mistério não se encerra ou cai numa relatividade mais para lastimável quando fechamos a última página de sua biografia.

 

 

 

março, 2008