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A despeito das campanhas e dos apelos para que o objeto livro se torne mais popular e difundido, o velho problema continua: brasileiro não lê nada ou lê pouco e mal.  Que se pode pensar de um povo aversivo a placa de trânsito? Tudo indica, pelo grau de grosseria e primitivismo das ruas, que somos um povo oral, que duvida da escrita.

 

É muito comum a gente se deparar com pessoas que, mesmo alfabetizadas, preferem se esclarecer com outra pessoa sobre o que está escrito numa receita de médico, num documento qualquer ou num letreiro de ônibus. É como se a relação com a escrita fosse inspiradora de desconfiança e só mesmo através de uma conversa personalizada pudesse haver uma garantia de verdade. Naturalmente, um povo assim possui um atavismo infeliz, derivado das experiências com aqueles sujeitos que, através de letrinhas, sempre o manipularam com um misto de paternalismo e crueldade. Vistos como símbolos de cultura inacessível, os livros são vistos como intimidadores e restritivos. A leitura como prazer democrático, que poderia ser tão banal quanto tomar um refrigerante, é associada a uma suspeita de elitismo ("é coisa de doutor"), e se os preços dos livros afastam até gente que tem bons ordenados e algum gosto pela leitura, imagine os pobres e mal-instruídos.

 

Além dos preços abusivos (entre 40 e 60 reais, em geral), fomos ensinados a não gostar de livros — as escolas sempre fizeram deles objetos antipáticos, associando a leitura a dever penoso (quem não se lembra de quantas vezes teve que resumir burocraticamente o infalível Iracema ou Memórias de um Sargento de Milícias?). Isso mudou, há hoje práticas mais libertárias e prazerosas entre professores de Português e Literatura, mas a penetração do objeto livro segue sendo problemática: ela é recheada de "boas intenções" e se esboroa facilmente na prática. Claro que estatísticas mentirosas, por conveniência, podem dizer o contrário, justificando a existência de alguns grupos armados para se perpetuar com certos privilégios e fechados em patotinhas que passam por cultas. A realidade da pouca ou nenhuma leitura, no entanto, acaba se impondo. O Brasil, nesse aspecto, é um país notoriamente infeliz: quem tem cultura se elitiza, inevitavelmente, e acaba adquirindo desprezo por quem não tem (vasta maioria) ou, quando é preciso descer do pedestal para mantê-lo, adulando massas sem cérebro com paternalismo demagógico. É uma alternância fatal: ou se despreza ou se adula. Educar, nunca.

 

Um leitor fanático como eu, que costuma carregar livros para ler em ônibus, sofre com os olhares de estranhamento e discriminação. Quando há algum reconhecimento, é do tipo: "O senhor é pastor?". Naturalmente, acham que qualquer livro está mais para a Bíblia. Mas o que mais me espanta, nessas ocasiões, é o olhar desconfiado e perplexo: é aquela cara de alguém que está te achando esquisito, mas não diz. Não se pensa o óbvio: que a esquisitice dá prazer. Não se associa a leitura a algo assim mais ligeiro e normal. É um hábito praticado por minorias pequenas demais.

 

Tanto é assim que uma vez um jornalista paulistano, não me lembro quem, disse que teve seu carro depenado por ladrões, que lhe levaram tudo que havia dentro dele. Tudo, exceto uma boa pilha de livros. Ele comentou: "O ladrão é o brasileiro típico. Acha que livro não tem valor algum". É triste, mas é verdadeiro. E a sociedade de consumo frenético em que vivemos transformou o livro numa mercadoria atraente também, mas não para o grosso da população que, como cultura, consome televisão e olhe lá.

 

E a televisão, em geral, pouco se importa em dar qualquer espécie de refinamento letrado ao público. É precisamente o avesso disso, e, se às vezes gosta de "prestigiar a Cultura" àquele modo arrogante de quem manda e escolhe o que a massa deve ler e apreciar, às vezes deixa cair a sua máscara. É precisamente o que acontece quando algum televisivo vem a público dizer, com orgulho, que jamais pegou um livro. Um país que chega ao extremo de encontrar uma espécie de valor numa declaração tão cabal e insana de incultura é, de fato, um caso alarmente sobre que meditar. Talvez nada seja pior que a ignorância proclamada e assumida com orgulho, porque pressupõe que o sujeito que a declara, na verdade, representa um grande número de pessoas.

 

O prazer da leitura é escasso, e, assim, os livros têm vivido a reboque de outras mídias, tentando tirar proveito de outros produtos bem mais sucedidos junto ao público: tornam-se extensões e linhas auxiliares empobrecidas de sucessos da televisão e do cinema. Mas o sinal mais evidente desse desvio é a proliferação dos livros de auto-ajuda, que, trocando em miúdos, reduzem a nada o prazer estético: fazem do objeto livro remédio, manual para fazer sucesso seja de um jeito, seja de outro, dizendo sempre a mesma coisa: que o incauto pode, através da auto-sugestão mais banal, mudar a sua vida. Como se injeções obstinadas de otimismo nos dessem poderes mágicos e suprimissem a realidade, como se afirmar "eu me amo" fosse resposta para todos os problemas. Aí o livro tem um aspecto utilitário dos mais rasos. A incultura semi-letrada cresceu muito, o mundo cultural se tornou refém do entretenimento (os próprios cadernos de Cultura dos grandes jornais caíram na futilidade) e os livros, atualmente, já não são objetos que reflitam refinamento, necessariamente: podem significar é adesão a uma bobagem passageira qualquer. A cultura se rebaixou em busca do faturamento.

 

Enfim, sofra a perversão que sofrer, o objeto livro, quando devidamente dignificado, é ainda das melhores coisas desta vida, seja como fonte de informação indispensável, seja como fonte de prazer. E há algo de positivo que o mercado, com todas as suas contradições, continue soltando tantos títulos, abacaxis utilitários e caça-níqueis na maior parte. No meio da enxurrada, sempre há coisas nas quais vale prestar atenção. Lendo, lendo e aprendendo, talvez o consumidor de lixo ou de mediania e modismo acabe descobrindo — se não for otimismo demais de minha parte — o que é bom e necessário. Mas se tornará solitário, à medida que for se refinando. É o inevitável num país de massas tragicamente devoradas ora pela futilidade ora pelos vernizes de cultura.

 

 

 

março, 2008